Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

PROMOTOR DA UNIDADE

Judas batiza? É Cristo quem batiza!

Quando nos referimos à África em que viveu Santo Agostinho, não podemos falar da Igreja sem acrescentar mais qualquer coisa. Como conseqüência da perseguição de Diocleciano deu‑se uma cisão na Igreja Africana. A faísca saltou ao ser consagrado Ceciliano, bispo de Cartago, consagração essa efetuada por alguém que, para evitar o martírio, tinha entregue os Livros Sagrados, sabendo que iam ser lançados às chamas. Por isto, um grupo de bispos negou o valor de tal consagração e separou‑se da unidade da Igreja formando a pars Donati, a Igreja donatista, assim chamada pelo nome do segundo bispo cismático, Donato.

A partir daquele momento, em quase todas as cidades do Norte de África, apesar de todas adorarem o mesmo Deus, crerem no mesmo Jesus, proclamarem a mesma esperança, lerem as mesmas Escrituras, administrarem os mesmos sacramentos, etc., existiam duas igrejas, dois bispos, dois cleros, duas celebrações simultâneas do culto divino. Por outras palavras, não existia a unidade. E foi assim que Agostinho encontrou Hipona, quando chegou para exercer o ministério sacerdotal e episcopal. Como em tantos outros lugares, também ali o donatismo era a Igreja com mais força, enquanto os católicos constituíam uma minoria.

"Somos a Igreja pura, imaculada, sem mancha". Assim diziam os donatistas. Auto‑proclamavam‑se a Igreja dos mártires devido às perseguições que sofreram, por parte do imperador, como hereges e cismáticos. Consideravam‑se como o povo eleito, que se tinha preservado sem se contaminarem com o mundo impuro. Portanto, a única Igreja de Cristo, a única que possuía o Espírito Santo, a única que podia dá-Lo na administração dos sacramentos. Só seria válido o batismo se fosse administrado por um donatista, porque pertencia a uma Igreja pura, que possuía o Espírito Santo.

Ao mesmo tempo, consideravam a Igreja Católica como a Igreja dos pecadores, dos "traidores", dos que entregaram os Livros Sagrados, Igreja perseguidora, porque o imperador a apoiava, não a perseguida como o tinha sido a de Cristo anteriormente. Portanto, encontrava‑se desprovida do Espírito. Os sacramentos administrados pelos católicos eram, em conseqüência, nulos. Quem pode dar o que não tem? Como é que um, que não é santo, pode fazer outro santo? Daqui, que todo o católico que, desertando, se passava para as fileiras de Donato, fosse por eles rebatizado.

A restabelecer a unidade do redil de Cristo dedicou Agostinho muitos dias e muitos anos da sua vida. Pregava, escrevia livros, rebatia os dos contrários, procurava debates com eles, na presença dos fiéis de um e outro grupo; escrevia folhetos e colocava‑os à porta da basílica para que todo aquele que entrasse pudesse tomar conhecimento do assunto; escrevia poesias para que deste modo, com música, as pessoas retivessem melhor a posição dos católicos, etc. Valia‑se de todos os meios que a sua rica inteligência e imaginação lhe ofereciam, para afastar os católicos dos donatistas e atrair estes à Igreja Católica.

Aos católicos informava, com documentos na mão, como se tinham passado, na realidade, as coisas. Mostrava‑lhes as calúnias dos adversários. Demonstrava‑lhes que aquilo de que eram acusados pelos donatistas, estes o haviam cometido anteriormente. Mas, acima de tudo, o seu afã era devolver a unidade a quantos se gloriavam do nome de cristãos, restituir à Igreja a unidade que Cristo desejou para ela e pela qual tinha orado ao Pai.

Mostrou aos donatistas que Cristo redimiu todo o mundo com o seu sangue, não apenas aos africanos e que, portanto, a Igreja de Donato não podia ser a verdadeira. Tentou fazer‑lhe ver como a Escritura tinha anunciado a expansão da Igreja por todo o globo, haviam de querer todos os povos e raças. Esforçou‑se por lhes demonstrar que era um sonho a Igreja pura, sem mancha, que eles pretendiam; que isso só se realizará na vida futura, enquanto aqui, segundo o Evangelho, a cizânia está sempre misturada com o trigo; que na pesca do Senhor sempre houve peixes bons e maus.

Sobretudo pôs‑lhes ante os olhos a sua presunção: querer fazer depender a obra de Cristo da liberdade humana. Porque um homem é pecador, já Cristo não pode atuar por meio dele? Não pode Ele, todo poderoso, escolher o instrumento que deseje? Cristo é superior a tudo e serve‑se mesmo dos pecadores para conceder a sua graça. Os católicos possuem o Espírito com mais direito que os donatistas, porque não se separaram do Corpo de Cristo, porque têm amor e não romperam a unidade. Quando os católicos administram os Sacramentos, estes são válidos. Porque, "Pedro batiza? É Cristo quem batiza. Judas batiza? É Cristo quem batiza." Quem batiza é sempre Cristo, por meio dos homens, mesmo pecadores. Como Ele é Santo, Ele faz santos. Quem dirá que é inválido o sacramento administrado por Cristo? Quem se atreverá a declará‑lo nulo? Tal é a doutrina de Agostinho. Portanto não se deve repetir. Cristo ao batizar pôs na alma do cristão um selo que não se apagará jamais, ainda que ele renegue a Cristo. Cristo tomou posse dele para sempre.

Agostinho estava disposto a tudo com o fim de restabelecer a unidade. Disposto até a deixar o episcopado de Hipona ou a compartilhar a cátedra com o colega donatista. A pergunta surge: conseguiu o seu objetivo? Em Hipona, conseguiu, em poucos anos, que os católicos fossem maioria; foi reduzindo ao silêncio os seus opositores. A sua atuação incansável no resto de África preparou o caminho para a desaparição que teve lugar, oficialmente, em 411, depois de um século de luta, com a ajuda da autoridade imperial. Agostinho era temido por todos e por todos evitado. Até lhe prepararam armadilhas para o matar, das quais se livrou graças a um erro do guia.

"Falem o que quiserem contra nós: nós amamo‑los ainda que não queiram. Compreendem que não têm fundamento na sua causa e dirigem as suas línguas contra mim. Muitas são as coisas que sabem e muitas as que ignoram. As que sabem são já passadas, pois fui algum tempo néscio, incrédulo, afastado de qualquer boa obra. Não nego que, louco e insensato, estive em erro perverso, mas quanto não nego a minha vida passada tanto mais louvo a Deus que me perdoou. Por quê, ó herege abandonas a tua causa e te enfrentas com o homem? Que sou eu? Que sou? Acaso sou eu a Católica? Por ventura sou eu a herança de Cristo estendida por todas as nações? Basta‑me estar dentro dela. Censuram‑me as minhas maldades passadas, que fazer de extraordinário? Mais severo sou eu com os meus vícios que tu; o que tu vituperaste, eu condenei. Oxalá quisesses imitar‑me para que o teu erro se fizesse nalgum tempo passado! Aqui vivi mal, confesso. E enquanto gozo da graça de Deus, que direi das minhas iniqüidades passadas? Doem‑me? Doer‑me‑ia se ainda permanecesse nelas. Mas que direi então? Alegro‑me? Também não posso dizer isso. Oxalá nunca tivesse cometido tal coisa!" (Comentário ao Salmo 36, III, 19).

Sempre foi benévolo com eles. Sempre esperou levá‑los à unidade sem o uso da força. Recusava que se os obrigasse a passar para a Católica. Sempre pediu misericórdia para eles. Sempre foi contrário à pena capital, mesmo para os delitos comuns. Nunca queria vê‑la aplicada. A sua atividade foi ininterrupta para conseguir que se mitigassem as penas dos que estavam sob o rigor da justiça.

Contudo, no final da luta aceitou o uso da força para conduzi‑los á unidade da Igreja. Mas só depois de ter visto que de outro modo os êxitos eram muito relativos. Depois de conhecer que muitos não passavam para a Católica, apesar de convertidos, por medo aos seus antigos companheiros e suas vinganças. Depois de ter observado a alegria de algumas aldeias que tinham sido obrigadas a abandonar o donatismo. Se aceitou o apoio da força imperial deve‑se, antes de mais, a sentir‑se pressionado pelos pareceres de muitos dos seus companheiros no episcopado. Estes, por sua vez, com tal atitude, procuraram salvar a sua própria vida que viam ameaçadas por uma parte dos donatistas: os fanáticos circunceliões.

Depois de 411, o donatismo deu‑lhe menos trabalho. A Igreja tinha conseguido a unidade. Não só pela força. A situação estava já preparada pela intensa atividade de Agostinho. Assim, o bispo de Hipona conseguiu restabelecer o que mais amava para a Igreja de Cristo: a unidade. Se não existe unidade não há amor. Se não há amor, ali não está Cristo e por tanto não se pode falar da Igreja de Cristo. E onde não está Cristo, que resta?

Das muitas obras escritas contra os donatistas recordamos:

Salmo contra os donatistas

Réplica à carta de Parmeniano

O batismo contra os donatistas

Réplica ás cartas de Petiliano

A unidade da Igreja.

AGOSTINHO E A ESCRITURA

De aquela cidade a que nos dirigimos foram‑nos enviadas cartas,

as Santas Escrituras nos exortam a viver bem

Para Agostinho, viver cristãmente significa relacionar‑se com Deus. A vida de um cristão tem de ser um diálogo ininterrupto com Ele. O homem fala a Deus com os seus afetos, os seus bons desejos, as suas palavras, com a sua oração: "quando oras, falas com Deus" (Comentário ao Salmo 87, 7). Por sua vez, Deus fala com o homem de infinitas maneiras: com a própria vida, com as coisas que nos rodeiam, com chamamentos interiores, com o exemplo dos outros; mas acima de tudo, pela sua palavra, a Sagrada Escritura: "quando lês, Deus fala‑te" (id..). Qualquer leitura pode ser uma palavra de Deus; ler a Bíblia é sempre ouvir a palavra de Deus.

Uma pessoa afastada de outra a quem ama, para tornar mais suportável a separação, comunica com ela através de cartas. Por meio delas, encurta ou anula as distâncias, tornando‑se presente ao seu amado. Nós estamos longe da nossa pátria, peregrinamos por este mundo. Na terra para onde nos encaminhamos esperam‑nos os que amamos: os santos; espera‑nos quem mais nos ama: Deus. Daquela bendita terra Ele escreve‑nos uma carta. Conta‑nos quanto nos ama, quem Ele é, o que nos promete, que temos de fazer para o conseguir, para chegar até Ele. Esta carta é a Sagrada Escritura. Por isso Agostinho ama‑a até à loucura, toda inteira. No entanto, houve partes privilegiadas. Quem descreverá a ternura com que lia e comentava os Salmos? E já no Novo Testamento, será preciso lembrar os laços que uniam o Apóstolo das Gentes, ao pregador da Graça, ao que foi chamado, mais tarde, Doutor da Graça? Não podemos deixar de mencionar a força da simpatia que o levava a comentar e a pregar sobre os escritos de S. João, que se tinha reclinado sobre o peito do Senhor na Última Ceia e, naquela fonte, tinha bebido as águas salutares do mistério do Verbo e de Deus, até chegar a descobrir o que Deus é: Deus é amor.

De que fala a Escritura? Para Agostinho, a Escritura fala só de Cristo e do seu Corpo, a Igreja. O Antigo Testamento é o Novo, ainda encoberto e o Novo é o Antigo, já manifestado. Apenas faz falta saber ler, para reconhecer a Cristo, já na sua própria pessoa, já na de seus membros. Com freqüência há que ultrapassar o significado literal das palavras e penetrar no mistério que se oculta por detrás delas, porque "humilde a entrada, o seu interior é sublime e envolto em mistério" (Confissões III, 5, 9).

Deus, na Escritura, fala de múltiplas maneiras e nem todos estão aptos para as entender todas. Encontramo‑nos perante uma mistura maravilhosa de claridades e escuridões; claridades, para que todo aquele que se aproxima revestido de humildade, possa conhecer a Deus através das suas palavras; obscuridades, para evitar que os indignos cheguem ao conhecimento de tão sublimes mistérios e, também, para estimular e impelir os mais ousados a cavar mais fundo, sabendo que a palavra de Deus é inesgotável e que é sempre possível descobrir significados mais profundos. A Bíblia é como uma floresta ainda por explorar na sua maior parte e cuja riqueza de conteúdo é inexaurível. Só é preciso procurar, meditar. Mas este trabalho não haverá o homem de o fazer sozinho; necessita da ajuda de Deus; precisa que Ele o guie. Que nos deixemos levar pela mão do Senhor.

"Para mim não há nada melhor; nada me é mais doce que contemplar o tesouro divino, na tranqüilidade e sem pressas: isto é verdadeiramente bom, isto é verdadeiramente doce" (Serm. Frang. 2, 4). Doce contemplação considerada como um serviço: "Eu alimento‑me para poder alimentar‑vos. Sou o servo, o que traz o alimento, não o dono da casa. Eu exponho diante de vós aquilo de que eu próprio recebo a vida" (id.). Agostinho estuda, medita, para depois alimentar os seus fiéis. A Bíblia é, pois, como o alimento que a mãe toma para depois dá‑lo, transformado em leite, a seus filhos. Agostinho nunca foi um estudioso desinteressado da Escritura: "Tudo o que possuo desta ciência (Sagrada Escritura) administro‑o imediatamente ao povo de Deus" (Carta 73, 2, 5).

Os contatos de Agostinho com a Sagrada Escritura duraram toda a sua existência. Tanto o Antigo como o Novo Testamento foram objeto dos seus trabalhos. Comentava-os ele próprio e ensinava aos outros as normas que hão de reger toda a explicação. Umas vezes tomava ele a iniciativa, outras o estímulo era‑lhe proporcionado pelos pedidos dos que admiravam a sua ciência e a sua disponibilidade.

Entre as obras escriturísticas recordamos:

Comentário ao Gênesis em réplica aos maniqueus.

Comentário literal ao Gênesis (12 livros).

A concordância dos quatro evangelistas.

O sermão da montanha.

A doutrina cristã.

TUDO É BOM

Eu não posso ser cruel convosco

Durante o seu sacerdócio e episcopado, Agostinho continuou a tarefa que encetara mal fora batizado: refutar o maniqueísmo, a religião que o teve prisioneiro durante nove anos. Ninguém se achava em melhores condições que ele, para o fazer. A sua adesão tinha sido fervorosa e com exemplar aplicação dedicara‑se à leitura dos livros da seita.

O maniqueísmo, grupo religioso procedente da Pérsia, tinha‑se difundido, com surpreendente rapidez, por todo o império romano do oriente e ocidente. A clandestinidade tinha sido o seu meio de vida normal. Proscrito pelas leis imperiais, os pagãos olhavam‑no com horror e os cristãos ortodoxos com temor e ódio. Era um concorrente perigoso; também ele se fazia passar por cristão, aceitando a seu modo o Novo Testamento e recusando o Antigo como ignominioso.

A doutrina de Manes, o seu fundador, baseava‑se no dualismo; no começo existiam dois princípios, dois reinos, inimigos e irreconciliáveis entre si; um bom e outro mau; o "reino da luz" e o "reino das trevas". Este último, invejoso da felicidade do primeiro, ataca‑o. O outro, para se defender, entrega‑lhe uma parte de si próprio, que é instantaneamente devorada pelo princípio mau. Uma parte da luz encontra‑se aprisionada nas trevas. É neste momento que começa a história. A criação do mundo foi levada a cabo para executar a libertação. Todos os seres vivos contêm esses dois princípios: a matéria, intrinsecamente má porquanto é formada por elementos do reino das trevas, e uma parte de luz, portanto boa.

O homem não é excluído, dentro de si há um elemento bom e outro mau, que obram respectivamente o bem e o mal. Para o homem maniqueísta não existe liberdade. Não é o homem quem peca, mas sim o princípio mau que habita no seu interior. Não é de estranhar que Agostinho achasse esta doutrina atraente, que lhe explicava, por um lado, a origem do mal ‑ não procede do Deus bom, coisa inconcebível ‑ e, por outro, acreditava que o libertava da responsabilidade dos seus pecados.

"Sejam cruéis convosco os que ignoram quanto custa encontrar a verdade e quão difícil é evitar os erros.

Sejam cruéis convosco os que desconhecem quão poucas vezes e com quanta dificuldade acontece poder superar as imagens carnais com a serenidade de uma mente piedosa.

Sejam cruéis convosco os que não sabem o que custa sarar o olho interior do homem, de modo que possa ver o seu sol. Não este a quem vós adorais, dotado de um corpo celeste, que brilha e emite os seus raios aos olhos carnais de homens e animais, mas aquele de quem escreve o profeta: nasceu‑me o sol de justiça; e no Evangelho: a luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo.

Sejam cruéis convosco o que desconhecem quanto é preciso suspirar e gemer até chegar a poder compreender alguma coisa de Deus.

Finalmente, sejam cruéis convosco os que nunca se viram apanhados no erro no qual vos vêem a vós.".

Contudo, o maniqueísmo tinha uns deveres muito concretos: Libertar o seu deus. Libertar do poder da matéria a partícula de luz presente em toda a criação; nas pedras, nas plantas, nos animais, no próprio homem. No maniqueísmo não é Deus que redime o homem; é o próprio homem que redime a Deus!

Daqui procedem as normas, a que deve ajustar a sua conduta todo o fiel maniqueu: os ouvintes, categoria inferior, na medida do possível, e os eleitos, ou perfeitos, de forma absoluta. Tais normas eram contidas no que eles chamavam os três selos: da boca, das mãos e do ventre. Pelo selo da boca era‑lhes proibido blasfemar e comer carne por se considerar que pertencia ao reino das trevas. Pelo selo das mãos era‑lhes proibido tirar a vida a qualquer ser vivo, mesmo vegetal, por exemplo: apanhar figos, porque era maltratar a Deus. O do ventre proibia‑os de contrair matrimônio, pois gerar filhos significava aumentar o número de prisões para a divindade.

Os eleitos, a quem era proibido romper qualquer destes selos, eram alimentados pelos ouvintes e de forma totalmente vegetariana. Nas oficinas dos seus estômagos efetuava-se a desejada libertação. A partícula de luz que tinha recobrado a liberdade era levada ao reino do Pai. O meio de transporte era o sol e a lua que periodicamente efetuavam o seu percurso. Quando esta se achava em quarto crescente, ia; quando em minguante, vinha. Assim seguiam com uma série enorme de mitos que Agostinho se encarregava de pôr a ridículo, interpretando‑os em sentido literal.

Como nas restantes controvérsias, os caminhos seguidos por Agostinho para combater o erro foram múltiplos: livros, pregação, encontros pessoais com membros do grupo opositor, debates públicos, etc..

Não é difícil enumerar as verdades, das quais Agostinho se tornou advogado contra os maniqueus. Antes de mais demonstrou o caráter de fábula e mítico de toda aquela construção, que se opunha ostensivamente a todas as afirmações da ciência, em especial da astronomia. Aos que, no seu modo de ver, dotes científicos exigiam que acreditassem no que ia contra as verdades mais certas e seguras das ciências.

Nega‑lhes o nome de cristãos. Não pertence aos que não aceitam íntegros o Antigo e o Novo Testamento, nem os que recusam a Cristo, tal como aparece nos Evangelhos, quer dizer, um Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, de carne e osso. O Cristo deles era uma espécie de fantasma, sem carne, ainda que a aparentasse. Também não se podiam arrogar o nome de cristãos aqueles que negavam verdades fundamentais que Agostinho defendeu, com afinco, contra eles.

Princípio Supremo só há um, o Deus bom, criador de tudo quanto existe, com absoluta liberdade. Criador por amor, não por necessidade.

Por conseqüência, a criação é boa. Tudo quanto existe, enquanto criado por Deus, é bom.

O mal moral tem a sua origem na vontade do homem, que decidiu livremente afastar‑se de Deus. Não procede de nenhum outro princípio. O mal físico procede do próprio ser de criaturas, ser deficiente, não pleno como o de Deus.

O homem é livre para escolher o bem ou o mal. Deus ao criá‑lo dotou‑o com esse dom. Nenhuma força irresistível o ata. O mal que o homem sente dentro de si e que o inclina ao pecado, teve a sua origem no pecado de Adão.

O verdadeiro Redentor é Cristo, não o homem. O redimido é o homem, não Deus.

Os três selos maniqueus são um absurdo evidente. A carne é obra de Deus: portanto é boa e pode comer‑se. A criação foi posta pelo Senhor nas mãos do homem para que este se sirva dela. Nada impede matar animais ou servir‑se de plantas para o próprio sustento. O matrimônio é coisa santa e boa. Proibi-lo é afastar‑se da verdade. O que não obsta que muitos, procurando uma perfeição superior renunciem a ele, para se entregarem total e integralmente a Deus.

"Mas eu, que inchado por uma enorme jactância durante muito tempo, por fim pude contemplar em que consiste aquela sinceridade que se percebe sem necessidade de fábulas vazias de conteúdo.

Que miserável, mal merecia com a ajuda de Deus vencer as vãs imaginações da minha mente presa pelas mais variadas opiniões e erros.

Que, para dissipar as névoas da minha mente, demorei tanto em submeter‑me ao médico, cheio de clemência que me chamava e me afagava.

Que chorei por muito tempo para que a Substância imutável que não pode admitir mácula alguma, que fala nas Sagradas Escrituras, se dignasse persuadir o meu coração.

Que, finalmente, procurei com curiosidade todas aquelas ilusões, que vos têm atados e prisioneiros na força do hábito, que as escutei com muita atenção e as acreditei sem tirar delas proveito e trabalhei sem descanso para convencer a quantos pude e defendi‑as com constância e valentia contra outros.

Eu não posso ser cruel convosco, a quem agora devo suportar como, noutro tempo, a mim próprio e com quem devo ter tanta paciência quanta tiveram comigo aqueles que viviam a meu lado, quando errava no vosso erro, cheio de raiva e cegueira." (Réplica à Carta de Manes, chamada "Do fundamento", 2‑3, 3‑4).

Na sua luta contra os maniqueus, Agostinho serve‑se de todos os meios de que dispunha a sua ótima preparação. Dá razões, apresenta textos bíblicos aceites pelos adversários, mostra os despropósitos que se seguem da sua doutrina, do seu modo de obrar, ironiza, satiriza, etc., mas, ao mesmo tempo respeita‑os. A sua intenção era destruir o erro e salvar o que erra, recuperá‑lo para a verdadeira fé de Cristo. Princípio que foi norma constante da sua vida. "Odeia o erro e ama o homem que erra". Esta é a sua doutrina: "não ames no homem o erro, mas o homem, pois o homem é obra de Deus; ao contrário o erro é obra do homem. Ama a obra de Deus e não ames a obra do homem. Quando amas o homem, arranca‑lo do erro; quando o amas ajuda‑lo a emendar‑se". (Comentário à Carta I de João, 7, 11).

Entre as obras contra o maniqueísmo recordamos:

Os costumes da Igreja Católica e os dos maniqueus.

Réplica à Carta "do Fundamento".

Réplica a Fausto, o maniqueu (33 livros).

A natureza do bem.

Resposta ao maniqueu Secundino.

NO MOSTEIRO

"Suas vestes, calçado e enxoval doméstico eram modestos e adequados: nem demasiado preciosos nem demasiados vis, porque estas coisas costumam ser para os homens motivo de jactância ou de abjeção, ao não procurar por elas os interesses de Jesus Cristo mas os próprios. Mas ele, como já se disse, ia por um caminho intermédio, sem virar para a esquerda nem para a direita.

A mesa era parca e frugal, onde abundavam as verduras e os legumes, e algumas vezes carne, por delicadeza para com os hóspedes e as pessoas fracas. Não faltava o vinho, porque sabia e ensinava como o apóstolo que porque tudo o que Deus criou é bom, e não é para desprezar, contanto que se tome em ação de graças, pois é santificado pela palavra de Deus e pela oração ( I Tm, 4. 4‑5).

De prata só usava as colheres; todo o resto da baixela era de barro, madeira ou mármore; e isto não por uma indigência forçada, mas sim por pobreza voluntária.

Também se mostrava sempre muito hospitaleiro.

E, à mesa atraia‑o mais a leitura e a conversa que a vontade de comer e beber. Contra a peste da murmuração tinha este aviso escrito em verso:

O que é amigo de roer vidas alheias

Não é digno de se sentar e comer a esta mesa.

E convidava os presentes a não salpicar a conversa com contos e maledicências. Certa ocasião, em que uns bispos, muito de sua casa, davam rédea solta às suas línguas, indo contra o prescrito, admoestou‑os muito severamente, dizendo com pena que, ou tinha de se apagar aqueles versos ou ele se levantaria da mesa e se retiraria para o seu quarto. Desta cena fui eu testemunha e outros comensais.

Nunca esquecia os companheiros na sua pobreza, socorrendo‑os do que se provia ele e os seus comensais, isto é, ou dos rendimentos e bens da Igreja, ou das ofertas dos fiéis. E, como por causa dos bens, o clero era alvo da inveja, como costuma acontecer, o Santo pregando aos seus fiéis, costumava dizer‑lhes que preferia viver das esmolas do povo a ter a administração e o cuidado das propriedades eclesiásticas e que estava disposto a cedê‑las para que todos os servos de Deus vivessem do serviço do altar. Mas os fiéis nunca aceitaram tal proposta." (Vida, 22‑23).

DEUS BASTA‑NOS

Quão formoso e alegre é o convívio dos irmãos juntos

Agostinho já é clérigo: mais exatamente, sacerdote. Mas sacerdote monge para toda a sua vida. Na intenção e na realidade. Será também, portanto, um bispo monge. Convivem com ele no mosteiro fundado no horto junto à Igreja, antigos companheiros ainda que não todos. Alípio voltará depressa para a sua cidade natal da qual em breve será bispo. Assim escreve Posídio, um dos seus acompanhantes: "Ordenado, pois, presbítero, logo fundou um mosteiro junto à Igreja e começou a viver com os servos de Deus, segundo o modo e regra estabelecidos pelos Apóstolos. Acima de tudo olhava a que ninguém naquela comunidade possuísse bens, que tudo fosse comum e se distribuísse a cada qual de acordo com as suas necessidades, como o tinha ele praticado primeiro, depois de regressar de Itália à sua pátria" (Vida, 5).

O tipo de vida que este grupo de amigos levava não podia deixar de ser influenciado pela nova situação em que se encontrava a alma de tudo: Agostinho. Ordenado sacerdote está ao serviço direto da Igreja. Os trabalhos puramente filosóficos cessaram de todo. Não foi em vão que passou três meses de dedicação exclusiva ao estudo da Sagrada Escritura. Daqui tomará a inspiração. Ela lhe indicará as exigências da vida cristã, o que é bom e o que é melhor. Propor‑lhe‑á o ideal a seguir, o exemplo a imitar.

Ideal e exemplo que encontra na vida da primitiva comunidade cristã de Jerusalém, tal como é relatada por S. Lucas nos Atos dos Apóstolos, 4, 32: "A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas, entre eles, tudo era comum... Pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam‑nas, traziam o produto da venda e depositavam‑no aos pés dos Apóstolos. Distribuía‑se, então, a cada um, conforme a necessidade que tivesse". Uma vez lido este texto em público, Agostinho acrescentará: "Já vedes aquilo que procuramos. Orai para que possamos realizá‑lo" (Sermão, 356, 2). Sobre tal texto ergue o Santo a sua idéia sobre a instituição monástica. Sobre aquele texto modela a sua comunidade de forma liminar na intransigência:

"Meus irmãos, se quereis dar alguma coisa aos clérigos exorto‑vos: oferecei a todos o que queirais, oferecei‑o espontaneamente. Mas será comum e distribuir-se-á a cada um conforme a necessidade o pedir. Cuidai a caixa das esmolas e todos teremos o suficiente. É uma coisa que me deleita de sobremaneira: essa caixa é o nosso presépio, nós somos o rebanho de Deus e vós o campo de Deus. Ninguém ofereça uma mitra ou uma túnica ou coisa semelhante, mas apenas coisas que possam ser comuns. Também eu tomo tudo do comum, pois sei que é do comum tudo o que tenho. Não quero que a vossa santidade ofereça coisas que apenas eu possa decentemente utilizar, por exemplo, uma mitra preciosa. Talvez convenha ao bispo, mas não a Agostinho, homem pobre, nascido de pobres." (Sermão 356, 9).

Os que optem por viver com Agostinho hão‑de ser continentes, isto é, hão‑de renunciar ao casamento; hão‑de submeter‑se ao superior e obedecer‑lhe; mas acima de tudo hão‑de fazer voto de pobreza. Assim vive Agostinho. Assim quer os que convivem com ele. Antes de entrar hão‑de dar todos os seus bens. A quem quiserem; podem dá‑los aos pobres, à Igreja, ou ao próprio mosteiro. Ao entrar neste hão‑de ir dispostos a viver da Igreja. Ela os há‑de alimentar. Do mesmo modo que a comunidade de Jerusalém se mantinha com as coletas das outras Igrejas, assim o mosteiro e os que nele vivem, hão‑de subsistir com as esmolas dos fiéis.

Ninguém há‑de possuir nada próprio. Fazer o contrário seria um roubo. Tudo, absolutamente tudo, há‑de ser comum e cada um há‑de receber consoante a sua necessidade. A comunidade de bens abarca tanto os temporais como os do espírito. Até a alma há‑de ser comum. O monacato de Santo Agostinho surgiu de um grito "como é formoso e alegre o conviver dos irmãos juntos" (Salmo 132, 1). O monacato tem também uma finalidade: "para isto vos haveis congregado em comum: para que tenhais uma só alma e um só coração em, e para Deus". Assim começa a Regra de Agostinho. Deus, portanto, é a meta última a conseguir em unidade de corações, impelidos pela caridade. Deus será para os monges "a grande e riquíssima possessão". Quem vive com Agostinho não terá mais bens que Deus. Mas Deus basta e sobra para todos.

Os meios para atingi‑lo não são diferentes dos que têm os restantes cristãos para chegar a Deus. Os monges de Agostinho, não são seres estranhos, são cristãos como os outros. Na Igreja primitiva, a comunidade de Jerusalém vivia de uma forma mais perfeita, que as outras comunidades, que também eram cristãs. Os que entram no mosteiro agostiniano tentarão imitar aquela comunidade donde saiu a fé para o mundo.

O monge que deseja viver como Agostinho propõe, não está fora da vida da Igreja. Ao contrário é a parte mais viva da mesma. É o coração do Corpo Místico de Cristo. Vive dentro dela e para ela. Nela encontra a Deus. Por meio dela recebe o Espírito Santo, que infunde em cada um o amor para que possa conseguir essa unidade de corações e assim alcançar Deus. Sem a Igreja não haveria monacato agostiniano porque também não haveria nem Espírito, nem caridade.

Agostinho concebeu o monacato como sendo, antes de mais, um serviço à Igreja. Eram leigos os que entravam no seu mosteiro. Mas tinham de estar preparados para responder dignamente se algum dia a Igreja precisasse dos seus serviços especiais. A grande novidade de Agostinho consistiu em transformar os seus mosteiros em "seminários". A Igreja católica africana, até então, estava humilhada pelo donatismo. A única forma de levantar a cabeça era começar pela reforma do clero. Era preciso afastar do povo muitos costumes menos cristãos que os adversários da Igreja Católica não cessavam de reprovar. Para isso era preciso sacerdotes e bispos capazes. Era também necessário corrigir os vícios do clero, em especial o seu orgulho de casta e a avareza. Por isso, nada melhor que ter onde escolher e convocar apenas os mais dignos. Era preciso uma vida casta e uma instrução conveniente. Havia que afastar a ignorância dos pastores duma forma completa e definitiva. Destes mosteiros saiu a reforma da Igreja africana. Os mosteiros de Agostinho proveram de bispos numerosas cidades africanas. Assim a Igreja Católica começou de novo a reviver.

Quem era chamado ao sacerdócio devia continuar a ser monge, vivendo no mosteiro em pobreza. Nisto Agostinho não admitia excepções. Deveriam viver com ele no mosteiro, como os outros monges não ordenados. Vivendo apenas do comum.

Agostinho vivia, pois, no mosteiro com os seus monges. Mas tinha de prestar os serviços de hospitalidade para com os hóspedes e peregrinos, os quais não queria introduzir no mosteiro. Talvez, se tratava de bispos, para que lhe não levassem os seus melhores monges para as suas dioceses. Ou para que não lhe levassem os maus, os quais ele não permitia que fossem ordenados. Para os poder receber funda um segundo mosteiro em Hipona. A casa episcopal será agora mais um mosteiro onde Agostinho viverá com os seus monges clérigos.

A rigidez que Agostinho mostra em assuntos de pobreza foi a causa de que houvesse alguns hipócritas, que possuindo bens, fizessem testamento. Isto levou‑o a fazer primeiro uma inspeção a todos os seus monges. Encontrou a situação melhor do que diziam as más línguas. Mas este fato fez com que mudasse o seu modo de atuar. Não será tão intransigente. O clérigo que assim o deseje poderá abandonar o mosteiro e viver dos seus bens. São palavras suas: "Sei como os homens gostam de ser clérigos; não lhe será tirado ao que se negar a viver em comum comigo. Mas quem quiser ficar comigo terá Deus. Se está disposto a deixar‑se alimentar por Deus, por meio da Igreja, a não ter nada próprio, repartindo tudo pelos pobres, ou amando‑se em comum, fique comigo. Quem não quiser, é livre, mas veja se poderá conseguir a felicidade eterna" (Sermão 355, 6).

"Viviam com ele os clérigos, com casa, mesa, enxoval comum. Para evitar os perigos de perjúrio nos que estavam habituados ao juramento, instruía o povo fiel, e aos seus, tinha‑lhes mandado que ninguém se excedesse, nem sequer à mesa. Se alguém tinha um deslize nesta matéria, perdia uma porção das permitidas, tanto para os que moravam com ele como para os convidados, estava limitada a quantia de vinho que podiam beber. Corrigia ou tolerava as transgressões à regra conforme a prudência, insistindo acima de tudo em que se deviam evitar as palavras maliciosas..." (Vida, 25).

Para Agostinho, o homem era livre de escolher, ou não, o caminho da perfeição. Mas, uma vez escolhido, não restava outra opção senão escolher também a perfeita pobreza. Por necessidade, o clérigo há‑de ser aspirante à perfeição e, em conseqüência, há‑de viver em pobreza. Donde a advertência de Agostinho: "Veja se poderá obter a felicidade eterna".

Mas Agostinho não queria ter hipócritas dentro de casa. Aquele que falta a um voto, deu só meia queda; mas quem simula o que não tem, caiu de todo. Portanto quem quiser ficar com ele sabe com o que conta. E Agostinho também: "Se alguém vive com hipocrisia, se alguém é proprietário, não lhe permito fazer testamento, mas riscarei o seu nome da lista dos clérigos. Pode citar contra mim mil concílios, ou navegar contra mim para qualquer pais, mas tenha a certeza: Deus me ajudará para que, onde quer que eu seja bispo, ele não possa ser clérigo. Já o haveis ouvido, já o têm ouvido." (Sermão, 356, 14).

Palavras duras e claras. O bispo de Hipona não suportava a hipocrisia a seu lado. O monacato há‑de apoiar‑se na verdade e na sinceridade. A disposição interior de cada um, que entra no mosteiro agostiniano, há‑de ser sempre a de quem está disposto, em cada momento, a interrogar o seu coração. Quer dizer, a jogar jogo limpo. A verdade é um pressuposto irrenunciável. Verdade, que por sua vez, é conquista permanente.

No monacato agostiniano tudo é de todos. E todos fazem tudo. Todos contemplam, todos se dedicam ao serviço ativo da Igreja. Todos trabalham manualmente. Senão na sua pessoa, na de seu irmão. Basta que ames o que é do irmão e isso será teu.

O TEMPO PRECIOSO

De dia trabalhava, de noite meditava

O grande número de obras escritas por Agostinho podem levar‑nos ao engano. Podem fazer‑nos crer que a maior parte das horas do dia eram ocupadas a estudar e a escrever. Nada mais afastado da realidade. Para Agostinho isso era apenas um sonho, o desejado. Tinha outras ocupações mais trabalhosas e menos agradáveis para ele.

A maior parte do dia e dos dias passava administrando justiça, resolvendo pleitos e contendas. Agostinho era uma figura vital da sua comunidade. O bispo era uma pessoa importante na cidade. Perante a corrupção geral e a lei do mais forte, ele apresentava‑se como o árbitro que não se deixa subornar; que administra justiça com retidão, rapidez e por amor; sem acepção de pessoas. Eram numerosíssimos os que recorriam a ele, sobretudo os indefesos, tanto pagãos como cristãos, católicos ou hereges. Todos se entendiam para lhe tirar o seu precioso tempo. "Às vezes a audiência durava até a hora de almoçar; outras, passava o dia em jejum, ouvindo e resolvendo pleitos", diz‑nos S. Posídio (Vida, 19).

Outros afazeres gastavam o já escasso tempo de Agostinho: visitava as prisões, intercedendo em favor dos que ali se encontravam, para que não fossem mal tratados. Fazia‑o "com tanta modéstia e recato que não causava nenhum incômodo e pesar, mas sim admiração" (Vida, 20). Para o bem daqueles infelizes submetidos à terrível justiça, ou injustiça, do tempo, teve de se enfrentar, não poucas vezes, com autoridades pagãs ou donatistas, pelas quais não era bem visto. Nem sempre as respostas foram as que esperava e desejava.

"Nas visitas guardava a moderação recomendada pelo Apóstolo, indo só visitar as viúvas e órfãos, que sofriam alguma tribulação. Se algum doente lhe pedia que rezasse por ele e lhe impusesse as mãos, fazia‑o sem demora" (Vida, 27).

Também não lhe era possível empregar a seu gosto as horas que ficavam livres de tais trabalhos. Agostinho viajou e por razões diversas. Fê‑lo pelos caminhos mais insólitos de África. Mais que horas, foram muitos os dias seguidos, que passou a cavalo. Os motivos de tais viagens eram diversos: assistir a concílios, tratar de assuntos políticos, encontrar‑se com outros bispos para traçar planos de ação; visitas pastorais para instruir e fortalecer a fé dos católicos, para discutir com representantes de seitas heréticas, etc.. Viajou em todas as direções: de Cartago a Cesareia da Mauritânia; a este, a oeste e ao interior; quando era jovem e quando os anos já lhe pesavam. Em trinta anos visitou Cartago em trinta e três ocasiões. Às vezes os fiéis mostravam‑se ciumentos e desgostosos pelas longas ausências do seu bispo. Seria curioso chegar a conhecer quais os livros que tiveram a sua gênese sobre o dorso de um cavalo.

Os irmãos que vivam no mosteiro também foram uns ladrões de tempo para Agostinho. Apesar de cansado por muitos e graves problemas atendia‑os sempre com gosto e sem reparar nas horas. Eram a menina dos seus olhos.

O cultivar da correspondência: aqui está outra das múltiplas ocupações do santo. Quando ainda não havia jornais, nem rádio, nem televisão, nem qualquer tipo de revista, a correspondência constituía o único meio de se manter em contato com o mundo exterior. Era necessário procurar a notícia, informar‑se, pedir aquilo de que se necessitasse. Era imprescindível para manter o calor da amizade, para exercer a própria influência. Por outra parte, Agostinho era o sábio do seu tempo nas ciências profanas e nas religiosas. A ele acudiam numerosas pessoas. Umas, para que lhe resolvesse as suas questões; outras para se fazerem valer perante ele e merecerem o louvor da sua pena; outras para o por à prova: será a ciência tanta quanta o vulgo apregoa? Deste modo ficaram‑nos numerosas cartas que mostram o Agostinho homem, amigo, culto, filósofo, teólogo, apologista, polemista; ansioso de aprender e de dar quanto possui. Cartas de grande interesse para conhecer uma época e o homem que marcou essa mesma época.

Por último há que considerar também o tempo empregue na pregação e atividade litúrgica.

Que lhe restava para fazer os seus estudos, as suas leituras? A noite. À luz da lamparina de azeite porque a do sol alumiava outros assuntos. "Tal era a sua ocupação: trabalhando de dia e meditando de noite" (Vida, 24).

UMA VOCAÇÃO: SERVIR A IGREJA. DEUS O QUER

 

Amaram em mim terem ouvido que me havia convertido à livre servidão de Deus desdenhando as possessões paternas

Chegava a um porto, o segundo de África, depois de Cartago. Aqui embarcou Agostinho para uma viagem que duraria toda a sua vida. O seu destino já não será Roma, mas sim, o serviço direto da Igreja. A condição não será a de um simples passageiro. Sem o pretender nem o querer, nomeiam‑no timoneiro. A ele competirá conduzir o navio.

Com efeito, saíram errados os cálculos da viagem a Hipona. Por dois motivos: o personagem que quer ganhar para a sua causa não se mostra muito convencido, nem Agostinho consegue persuadi‑lo. Por outro lado, o bispo é velho, fala mal o latim, por ser grego. Os donatistas estão a ganhar terreno. Precisa de alguém que o ajude, alguém que fale bem. Expõe ao povo a urgência desta necessidade. Agostinho está presente na Igreja. As pessoas conhecem‑no. Reconhecem nele a pessoa de quem precisam. É escolhido para sacerdote, ninguém melhor preparado do que ele. Professor de retórica noutros tempos, agora servo de Deus. Que o demonstre ao serviço da Igreja. Agostinho chora. Abusaram, não contaram com a sua opinião nem com os seus amigos, que também o queriam a seu lado. Estilhaçaram os planos que tinha traçado para a sua vida. Chora. Não falta quem pense mal; tentam consolá‑lo. Agostinho considera que é a vontade de Deus. Só Ele pode exercer este tipo de violência. É impossível resistir‑lhe. Cede.

"Prenderam‑no e como ocorre nestes casos, apresentaram‑no a Valério para que o ordenasse, consoante o exigiam o clamor unânime e grandes desejos de todos, enquanto ele chorava copiosamente. Não faltaram aqueles que interpretaram mal as suas lágrimas, segundo ele próprio nos referiu e, como para o consolar, diziam‑ lhe que, ainda que fosse dignos de maior honra, no entanto o seu grau de presbítero era próximo do episcopado, sendo que aquele homem de Deus, como sei por confidência sua, gemia pelos muitos e graves perigos que via o iam cercar com a administração e governo da Igreja: e por isso chorava. Assim se fez o que eles quiseram" (Vida, cap. IV).

Agostinho é ordenado. Mas antes põe condições: que lhe seja permitido viver com os amigos. O velho bispo Valério consente. Permite‑lhe erguer um mosteiro numa pequena quinta, propriedade da Igreja. Agostinho volta a Tagaste. Tem de dar a triste notícia aos seus companheiros. Não vai poder viver com eles como dantes. Quer levar consigo alguns para que o ajudem a erguer o novo mosteiro. A comunidade vai ser dividida. Nem Agostinho nem os outros querem que ele volte logo para Hipona. Escreve uma carta ao seu bispo. Necessita de um prazo de pelo menos três meses para ler e estudar em profundidade a Escritura. Não quer ver‑se condenado: tal é a responsabilidade. "Atrevo‑me a confessar que com plena fé retenho o que atinge a minha própria saúde. Mas, como hei‑de administrar aos outros sem procurar a minha própria utilidade mas sim a salvação dos outros?... Como se pode conseguir isso, a não ser pedindo, chamando e procurando, quer dizer, orando, lendo e chorando, como o próprio Senhor mandou? Com esta finalidade me vali de meus irmãos para solicitar da tua sinceríssima e venerável caridade algum adiamento, por exemplo, até à Páscoa; agora repito o meu pedido por estas preces. Acaso terei de responder ao divino juiz: «Não me pude informar convenientemente, pois mo impediram os assuntos eclesiásticos»? Ele me replicará: «Mau servo supõe que te tivesse aparecido um pretendente aos bens da Igreja, na qual tanto trabalho se emprega par recolher os frutos...» (Carta, 21, 4, 5).

Agostinho volta a Hipona. Dedica‑se em cheio à atividade sacerdotal, sobretudo à pregação. Chovem as críticas. É contra o costume de toda a África que um sacerdote pregue estando presente o bispo. Segue adiante com o apoio do próprio bispo. Recolhe os primeiros triunfos e as primeiras desilusões. Dirige a palavra a um concílio de bispos e continua a escrever. Os temas agora já não são escolhidos por ele. São‑lhe impostos pela vida e necessidades da Igreja. A sua fama estende‑se com uma velocidade insuspeita. Até o próprio Valério teme que Agostinho volte a ser violentado, que outras cidades sem pastor lho arrebatem. Para o evitar consagra‑o bispo de Hipona, também contra as normas estabelecidas. Era o ano de 395. Será o seu sucessor, quando da sua morte, sendo já ancião, apenas um ano mais tarde. Nem todos fora de Hipona estão de acordo. Os mais invejosos levantam acusações e declaram nula a consagração de Agostinho. A verdade triunfa: tratava‑se de pura calúnia. Para sempre será já o bispo de Hipona.

Onde estão os planos de há poucos anos! Tanto mudaram as coisas! Que sonho tão belo teria sido poder dedicar‑se à contemplação da verdade, livre de todo o cuidado temporal.

SERVO DE DEUS

Meditando dia e noite a divina lei

Na companhia de seu filho e amigos regressou a Tagaste. Como primeira medida, vende as propriedades de seus pais, dá o produto aos pobres, ficando apenas com a casa para viver com os seus amigos, como servo de Deus.

Os bens a que Agostinho renunciou não foram com certeza muitos, porque não os tinha. Mas ele deixará escrito mais tarde que "muito abandona quem não só abandona o que tem mas até o que deseja ter" (Comentário ao Salmo 103, III, 16). É a expressão de um estado de ânimo pronto a sacrificar nas aras do serviço do Senhor. Com efeito, tinham chegado a Tagaste como "servos de Deus". Poder‑se‑ia pensar no primeiro ensaio dum mosteiro agostiniano.

O que tinha experimentado por pouco tempo e noutras circunstâncias Cassiciaco, vai tornar‑se agora, nos seus planos, em realidade duradoura. A procura da sabedoria chamar‑se‑á, daqui em diante, por outro nome: procura e conquista de Deus. Cristo e a Escritura abrirão o caminho. A razão avançará por essa estrada aberta, sem se afastar dela, nem para a direita nem para esquerda. Sair dela será o equivalente a entrar no erro. A viagem é comprida; é necessária a purificação. É preciso desprender‑se de tudo. A alma tem de caminhar livre, sem nada que atrase a partida ou lhe detenha a passada.

Mas agora já não estão em Cassiciaco. Os projetos de antigamente não bastam. África é um campo de batalha. Ele é membro de uma Igreja que se encontra em tribulação. O maniqueísmo, o donatismo e os pagãos ameaçam afogá‑la. Há que conseguir a ascensão pessoal a Deus; mas é também necessário formar um exercito que lute em defesa desta Igreja. A ambas as coisas se dedicará Agostinho.

Em Tagaste vive‑se num ambiente ascético, onde tudo é comum. O corpo é domado pelos jejuns e a alma é alimentada pela oração e meditação. Ali estuda‑se, reflete, lê‑se, consulta‑se, recolhe‑se cada um no seu interior até chegar a "ver a Deus" através das coisas criadas. Novos interesses penetraram na pequena cidade da Numídia. O conjunto dos amigos forma um centro de estudos. O trabalho intelectual ocupa a maior parte das horas do dia. Agostinho é o pai comum de todos eles, o "diretor espiritual", o mestre de filosofia e teologia e de Sagrada Escritura. O que ele recebe do céu no seu estudo e oração reparte‑o pelos outros. Aos de dentro pela sua palavra e pelos seus escritos. Através destes, também aos de fora.

"Depois de receber o batismo juntamente com outros companheiros e amigos, que também serviam o Senhor, aprouve‑lhe voltar a África, à sua própria casa e herança; e, uma vez ali estabelecido, pelo espaço de quase três anos, renunciando aos seus bens, em companhia de outros que se lhe tinham juntado, vivia para Deus com jejuns, oração e boas obras, meditando dia e noite a divina lei. Comunicava aos outros o que recebia do céu com o seu estudo e oração, ensinando aos presentes e ausentes com a sua palavra e escritos." (Vida de Santo Agostinho, escrita por Posídio, capítulo III).

A primeira instrução é filosófica. São variados os temas propostos à discussão e ao diálogo: a existência de Deus, os graus de ascensão até Ele, a liberdade, a origem do mal, o mestre interior, a providência, etc.. Agostinho dirige, aclara, distingue, explica, sintetiza. Junto com os temas filosóficos vão os teológicos: relação entre a fé e a razão, a Trindade e a Encarnação, pecado original e graça, credibilidade da Igreja Católica, sinais da verdadeira religião, etc. A teologia converte‑se em apologética contra pagãos e hereges. Serve‑se a Igreja.

O jovem Adeodato morre. Tinha dado provas do seu talento no livro intitulado O mestre. Falece também, em Cartago, o amigo Neonídio, que não tinha podido acompanhá‑los no retiro de Tagaste. Foram duas perdas dolorosas para Agostinho.

Os interesses dos que vivem reunidos vão mudando. As questões bíblicas preocupam‑nos. Estão imensamente interessados em conhecer a Escritura, o seu significado. Isto não é fácil; em todas as partes vêem passagens obscuras e questões difíceis. São as questões do dia, as armas que os hereges usam contra a Igreja. A melhor razão que se lhes pode contrapor é a autêntica palavra de Deus. É indispensável conhecê‑la. O que antes era instrumento de perfeição pessoal, está agora ao serviço da Igreja. Agostinho responde como pode às perguntas. Improvisa com freqüência e mais tarde terá de mudar de opinião. Ensina as normas para interpretar a Escritura, para entender os antropomorfismos, a diferença entre o Antigo e o Novo Testamento, etc..

Os livros de Agostinho são copiados, oferecidos, correm de mão em mão. A sua fama estendeu‑se por toda a província. Todos o conhecem, admiram e louvam; pela sua ciência e pelo seu estilo de vida. Outros odeiam‑no; os maniqueus contra os quais já escreveu várias obras; descobriu os seus erros e até os meteu a ridículo.

Agostinho não quer renunciar ao seu estilo de vida. Ao mesmo tempo esforça‑se por ganhar novos membros para o seu ideal. Vai buscá‑los pessoalmente. Tomou as suas precauções antes. Sabe onde pode ir e onde não. Conhece as cidades onde há bispos e onde o necessitam. evita as últimas. Podia ser perigoso para ele. Mas Hipona ainda tem pastor. Portanto não há nenhum perigo que o capturem para o serviço pastoral daquela cidade. E vai sem maior cuidado. Era o ano 391 cuidado Era o ano de 391.

NOVO RUMO

Quantos lerem isto, lembrem‑se diante do vosso altar, de Mônica.

Com efeito, a permanência em Milão foi breve. Passado pouco tempo, Agostinho e os seus empreenderam a viagem para Roma, como primeira etapa do projetado regresso a Tagaste. Em Hóstia, junto a Roma, tomariam o barco que os reconduziria às costas africanas. Mas o porto estava bloqueado pela armada do usurpador Máximo. Tal imprevisto obrigou‑os a ficar ali até que fosse possível a navegação. Entrou em contato com nobres famílias cristãs e provavelmente hospedou‑se em casa de uma delas.

Dois acontecimentos de sinal diferente tiveram lugar em Hóstia. O primeiro, o êxtase de Agostinho e Mônica. Assim nos é contado por ele: "Aproximava‑se o dia da morte de minha mãe. Aconteceu que ela e eu nos encontrávamos sós, apoiados numa janela, donde se avistava o jardim interior da casa que habitávamos... Conversávamos a sós, muito docemente. Falávamos da sabedoria de Deus, que desejávamos com ardor e chegamos a tocá‑la um pouco com o nosso coração" (IX, 10, 23‑25).

O segundo foi a morte de Mônica. Passado pouco tempo cai doente e após nove dias de enfermidade, quando contava ela 56 anos de idade e Agostinho com 33, "aquela alma religiosa e piedosa foi desatada do corpo" (IX, 11, 28).

A emoção e a pena que sentiu foram imensas. Enquanto lhe fechava os olhos, afluía ao seu coração uma enorme tristeza, que se transformava em lágrimas. O esforço para contê‑las era grande e esta luta aumentava ainda mais a sua dor, como a aumentava escutar o pranto do filho Adeodato quando a avó deu o último suspiro.

Mônica foi sepultada ali mesmo. Durante o funeral Agostinho conseguiu conter as lágrimas. Mas depois no decorrer do dia viu‑se oprimido pela tristeza. Para a afastar decidiu ir tomar um banho. Tomou‑o, mas assim como se encontrava assim se encontrou depois. Não foi capaz de fazer transpirar do seu coração a amargura da tristeza. "A seguir adormeci ‑ dirá ‑ e ao acordar encontrei a minha dor mitigada" (IX, 12, 32).

Grande tinha sido o amor da mãe pelo filho, mas não menor o do filho pela mãe. As seguintes palavras de Agostinho, de grande beleza e riqueza de sentimentos, são sinal disso: "Senti vontade de chorar na presença de Deus sobre e por ela, sobre mim e por mim. Dei rédea solta às lágrimas que tinha reprimidas para que corressem quanto quisessem, fazendo delas um leito para que o meu coração descansasse, que nele efetivamente encontrou repouso, porque ali estavam os ouvidos de Deus, não os de qualquer homem que interpretasse depreciativamente o meu pranto. Agora, Senhor, to confesso neste escrito. Quem quiser leia‑o e interprete‑o como quiser. E, se acharem pecado que eu chorasse durante uma pequena parte de uma hora a minha mãe recém falecida diante dos meus olhos, a minha mãe que durante tantos anos me tinha chorado diante dos Teus; não se ria: antes, se tem caridade, chore também ele pelos meus pecados, a Ti, Pai de todos os irmãos em Cristo" (IX, 12, 33).

Agostinho volta para Roma até que seja possível fazer‑se ao mar. Aí passa os dias a visitar os mosteiros que existem nos arredores, ao mesmo tempo que se entrega à atividade literária. Possuímos obras de caráter filosófico e apologético escritas por ele neste período. O mesmo fervor que anos antes o tinha impelido a difundir o erro maniqueísta, desdobra‑o agora para o refutar e contrastar com a verdade da Igreja Católica. Não pode tolerar que os maniqueus convertam o seus costumes, que ele tão bem conhece, em apologia da verdade da sua religião. O argumento é válido mas está mal aplicado. É vida dos cristãos e acima de tudo a caridade dos monges a que dá testemunho da verdade católica, dir‑lhes‑ á.

Por fim chegou a hora de atravessar, pela segunda e última vez para Agostinho, as águas do Marenostrum (como lhe chamavam os romanos) o mar Mediterrâneo. Em 388 chegava a Cartago, isto é, cinco anos depois de ter enganado a sua mãe naquele mesmo porto. O que agora regressava não era o mesmo que tinha partido. A nave da sua vida acabava de tomar um novo rumo.

Desta vez a estadia em Cartago foi curta. Tagaste esperava‑o. O s seus projetos iam tornar‑se realidade.

UM IDEAL: CONHECER A DEUS NA TRANQÜILIDADE COM OS SEUS AMIGOS

O porto da filosofia

A decisão de Agostinho era definitiva: entregar‑se totalmente à conquista da sabedoria, vivendo só para Deus. A sua alma já estava livre das preocupações, de ambicionar honrarias, de ganhar dinheiro, "de revolver‑se e coçar‑se da sarna da lascívia". Deus era já a sua honraria, a sua riqueza, a sua saúde. Restava por fazer outra opção ainda mais concreta: continuar como professor até que chegasse o fim do ano letivo ou "romper estrondosamente". Não lhe pareceu esta última, a mais adequada. Por sorte, faltavam já poucos dias para as férias da vindima. Resolveu suporta‑los com paciência e retirar‑se no tempo habitual e "resgatado por Deus, não voltar a vender‑se" (IX, 2, 2).

Encontrou uma desculpa fácil e ao mesmo tempo um motivo real. Por causa do excessivo trabalho das aulas, naquele mesmo verão, os pulmões começaram a ressentir‑se e a respirar com dificuldade. As dores no peito que sofria indicavam que havia alguma lesão. O certo era que não podia falar com voz clara e firme durante muito tempo. Ao princípio isto tinha‑o preocupado porque o obrigaria a renunciar, quase por necessidade, ao ensino, ou pelo menos, a interrompê‑lo. Mas agora alegrava‑se que se lhe deparasse esta desculpa verdadeira que diminuiria o desagrado dos pais ao verem os filhos ficarem sem professor.

Assim chegou o dia em que renunciou efetivamente à cátedra da retórica. Deus libertou a sua língua daquilo de que já tinha libertado o seu coração. Como tinha pensado, acabadas as férias da vindima, avisou os milaneses que procurassem para os seus estudantes outro "vendedor de palavras", porque ele, por causa da dificuldade da respiração e a dor no peito, não tinha forças. A causa também, ainda que esta não a tenha dito, era a determinação de servir a Deus.

Abandonada a sua antiga profissão, Agostinho e o seu circulo de amigos retiram‑se para uma quinta que, nos arredores de Milão, possuía o amigo Verecundo que a tinha posto à sua disposição. O seu nome é já célebre: Cassiciaco. Depois de resolver os últimos assuntos na cidade dirigem‑se para lá nos primeiros dias de Novembro. Com ele iam dois alunos: Licencio, filho de Romaniano, seu benfeitor de outros tempos, e Trigécio; os primos Rústico e Lastidiano; Alípio, Adeodato, seu irmão Navígio e a mãe, Mônica.

A estadia em Cassiciaco foi para Agostinho um período de férias. Nada mais justo, terminado o ano letivo e com problemas de saúde. Nada mais necessário, depois de longos meses de angústia e de tensão, de problemas intelectuais e de incertezas morais, de luta e agonia interior, cuja dureza só é conhecida por quem a tenha experimentado. O seu espírito necessitava de paz e tranqüilidade até voltar a encontrar a serenidade completa.

Foi também um período de penitência, de oração e meditação. Na nova situação Deus passava a ser o personagem de primeira linha; tinha‑se tornado o principal interlocutor de Agostinho. Com Ele tinha de repensar o passado, programar o futuro. Tinha sentido a sua mão libertadora, era preciso dar‑Lhe graças. Experimentada a própria incapacidade, não podia prescindir d'Ele para o futuro. Qualquer projeto tinha de ser visto à Sua Luz e à luz da experiência e dos erros passados. Agostinho era dado à introspeção. Tinha de projetar a luz recém descoberta sobre si mesmo, sobre as pessoas que o rodeavam, sobre a natureza e o mundo inteiro que o cercavam, agora que o via de uma forma diferente. Tudo formava uma formosa melodia, bastava entendê‑la; as suas tonalidades, os seus sons. Durante muitas das horas da noite ele meditava e orava.

Aquele período de uns cinco meses, significou para Agostinho, ver realizado o que antes tinha vislumbrado como sendo apenas um sonho: viver em comum com um grupo de amigos, todos interessados na busca da sabedoria. Às horas de trabalho manual, de refeições, de oração, sucediam‑se as empregues em conversas, na discussão de problemas profundos. Conservam‑se os livros escritos naquele tempo, fruto da participação de todos, incluindo a avó Mônica. Três diálogos formosos, nos quais Agostinho tem a parte de leão: Contra os cépticos, A vida feliz, A ordem. Aparecem os temas que preocupavam e ocupavam aqueles amigos: o da verdade: podemos estar seguros de conhecer a verdade?; a felicidade: que é?, em que consiste?, como consegui‑la?; a ordem presente na criação, o mal e a providência; um programa de estudos, etc. .

Daquele tempo é também a obra famosíssima, chamada Solilóquios e que consiste num diálogo entre a razão e a alma de Agostinho. Original em tudo, começando pelo próprio título. É o primeiro auto‑retrato escrito para os amigos e para a posteridade. Encontramos aí as metas intelectuais a que se propunha chegar. ‑Que desejas conhecer? ‑Desejo conhecer a Deus e à alma. ‑Nada mais? ‑Nada mais.

Deus a quem começa invocando com uma oração que adquiriu fama pelo seu conteúdo e pela sua forma. Alma que deve purificar‑se para poder chegar ao gozo de Deus. A meditação do antigo professor prolonga‑se com reflexões sobre a imortalidade da alma. A obra ficou incompleta.

Nas obras a que temos feito referência, vê‑se um Agostinho que evolui, que se vai adaptando à nova situação criada na sua vida. Cristo tem já a máxima autoridade. Todo o saber há de assentar sobre dois pilares: a razão e a autoridade de Cristo, que impedirá aquela de se extraviar. Sente‑se membro da Igreja. Por outras palavras, o Agostinho "pagão" vai dando lugar ao Agostinho cristão. A procura da sabedoria identifica‑se com a procura do Deus de Jesus Cristo; a purificação da alma é levada a efeito pelo cumprimento dos seu mandamentos.

No entanto, as férias de Cassiciaco foram, antes de mais, um período de preparação para o batismo. Com anterioridade tinha escrito ao bispo S. Ambrósio informando‑o dos seus antigos erros e do seu atual propósito, para que lhe aconselhasse quais os livros da Escritura lhe seriam mais úteis ler como preparação para receber o sacramento. Recomendou‑lhe a leitura do profeta Isaias porque ‑ pensou Agostinho ‑ anuncia com mais claridade que os outros, o Evangelho e a vocação dos gentios. Agostinho seguiu o conselho do Santo, mas não entendeu a sua leitura.

Mais tarde ao aproximar‑se a quaresma, quando deviam inscrever‑se no número dos candidatos ao batismo, deixando o campo, voltaram para Milão. Finalmente, depois de ter assistido à catequese dirigida pelo bispo, Agostinho foi batizado pela mão de S. Ambrósio. Era a noite de 24 para 25 de Abril do ano de 387. Com ele entrou a formar parte da Igreja de Deus, Alípio, "revestido já de humildade cristã e grande domador do seu corpo, até ao ponto de se atrever a percorrer descalço o solo gelado de Itália" e, com os dois, Adeodato "nascido carnalmente de mim, fruto do meu pecado" (IX, 6, 14).

Receberam o batismo e fugiu deles toda a intranqüilidade pela vida passada. Foram dias de entusiasmo em que Agostinho não se cansava de pensar na grandeza do plano salvador de Deus. "Quanto chorei, ao ouvir os vossos hinos e cânticos, fortemente comovido pelas vozes da tua Igreja, que cantava com suavidade! Entravam aquelas vozes nos meus ouvidos e a vossa verdade derretia‑se no meu coração; com isto inflamava‑se o afeto de piedade e corriam as lágrimas e com elas sentia‑me bem" (id.). É Agostinho quem fala e é Deus aquele com quem está a falar.

Na época em que escreve As Confissões, ainda conserva fresca a memória: "Quando penso nas lágrimas que derramei ao ouvir os cânticos da Igreja, pouco tempo depois de ter recobrado a fé, reconheço uma vez mais a utilidade deste costume de cantar na Igreja. Ainda agora me comovo, não com o canto, mas com as coisas que se cantam, quando se faz com voz suave e modelada" (X, 33, 50).

Mas na sua mente já pensava abandonar aquelas terras.

TOMA E LÊ

Atira‑te a Ele; Ele não se afastará para que não caias

Agostinho tinha encontrado a Deus e o meio para chegar a Ele. As suas aspirações serão, portanto, outras. O que desejava não era já estar mais certo de Deus, mas sim, mais unido a Ele. Descoberta a meta procurava o modo de percorrer o caminho que conduz a ela. Teve uma inspiração: dirigir‑se ao sacerdote Simpliciano, que considerava um santo servo de Deus. A ele poderia contar todas as suas aflições que não tinha podido contar a Ambrósio. Também ele lhe poderia indicar a maneira mais adequada de andar pelas sendas do Senhor.

Colocava‑se‑lhe o problema de escolher a forma de vida para o futuro. Sabia que podia servir a Deus de múltiplas maneiras dentro da Igreja. Qual escolher? A mais perfeita? Algumas correntes o prendiam. "Estava descontente ‑ escreve nas Confissões ‑ com o que estava a fazer. Era para mim um fardo muito pesado. Já não tinha, como antes, o afã das riquezas nem a esperança da glória, que me ajudassem a suportar aquela servidão. Estas coisas já não causavam deleite, uma vez conhecida a doçura e a formosura de Deus. Mas continuava ainda tenazmente acorrentado à mulher. O Apóstolo não me proibia o casamento, mas exortava‑me a algo melhor, desejando com ardor que todos os homens fossem como ele. Eu, fraco como era, escolhi a vida mais suave. (VIII, 1, 2).

Aproxima‑se de Simpliciano que o recebe paternalmente. Como um avô, conta‑lhe histórias da sua juventude, histórias que tinham causado grande sensação no seu tempo. O grande orador Mário Vitorino, tinha‑se convertido e preferiu abandonar a sua carreira antes de renegar a Cristo. A emoção repete‑se, agora, no interior de Agostinho. Depois de escutar a narração da boca do ancião, arde em desejos de o imitar. Agora já vê com clareza e não lhe servem, portanto, as desculpas de antes, para não se entregar a Deus. Mas continuava agarrado à terra e recusava alistar‑se nas hostes de Deus ‑ são palavras suas ‑ e temia ver‑se liberto daquelas cadeias, tanto quanto temia ver‑se preso por elas. "O Senhor fazia‑me ver a verdade e convencido dela não tinha absolutamente nada a responder, a não ser palavras preguiçosas e sonolentas: «Agora, agora mesmo; deixa‑me um pouco», mas aquele «agora, agora» não chegava nunca; e aquele «deixa‑me um pouco» ia sendo muito" (VIII, 15, 12).

Noutra ocasião recebe a visita de um oficial do palácio, Ponticiano, africano como ele e Alípio, que naquela altura o acompanhava. Encontra‑o com o livro das Cartas do apóstolo S. Paulo. E o visitante a contar‑lhe o caso de Santo Antão, célebre monge do Egito. Apesar do seu nome andar já de boca em boca, Agostinho e os seus companheiros nunca tinham ouvido falar dele, coisa que surpreende Ponticiano. Depois fala‑lhe da multidão de cristãos, que já então povoavam os mosteiros, "do perfume divino das suas virtudes", assunto sobre o qual eles nada sabiam. Nem sequer sabiam que na própria cidade de Milão, ainda que nos arrabaldes, havia um mosteiro, "povoado de bons irmãos", e governado por S. Ambrósio (VIII, 6, 14‑15).

A conversa prolonga‑se. Agostinho e o seu companheiro ouvem também como os servidores da corte imperial, residentes em Tréveris, se tinham entregue a Deus. É o início de um novo combate, mais violento no seu interior. "Então, ‑ relata ele ‑ produziu‑se dentro de mim uma grande luta, que eu próprio tinha provocado. Com o rosto e a alma perturbados, aproximei‑me de Alípio e, aos gritos, disse‑lhe: «Que é isto que nos acontece? Que é isto que temos ouvido? Levantam‑se os ignorantes e conquistam o céu e nós, com a nossa ciência, sem coração, chafurdamos na carne e no sangue! Vamos ter vergonha de os seguir, apenas porque nos ultrapassaram? Teremos tão pouca vergonha para nem sequer ir atrás deles? » Se não são exatas, pelo menos foram parecidas, as palavras que pronunciei e entristecido, afastei‑me de Alípio que, assombrado me olhava e calava. Via que eu não falava como era meu costume e, mais que as palavras que dizia, era a fronte, a face, os olhos, a cor e o tom da voz, o que demonstrava o estado em que se encontrava a minha alma" (VIII, 8, 19).

E afastou‑se para a horta de sua casa, para ali, só, ser ele a única testemunha da batalha que se travava no seu coração. Alípio, pé ante pé, foi atrás dele. Como é que o ia deixar sozinho naquele estado. Ambos se sentaram o mais longe de casa que lhes foi possível.

Uma vez mais serão as próprias palavras de Agostinho a descrever a sua situação naquela altura. "Retinham‑me coisas frívolas e sumamente vãs, antigas amigas minhas. Puxavam pela veste da minha carne e diziam‑me baixinho: «Vais deixar‑nos? A partir de agora já não estaremos contigo? Desde este momento já não te será lícito isto ou aquilo?» E que coisas me sugeriam, Deus meu, no que eu chamo isto ou aquilo! Que coisas me sugeriam Deus meu! Que a tua misericórdia as afaste do teu servo! Que sujidades me sugeriam! Mas já não as ouvia todo o meu ser, apenas uma parte. Não se punham já diante de mim para me tolher o passo, mas sim, bichanavam nas minhas costas e quando me afastava, beliscavam‑me como que às escondidas, para que voltasse os olhos e as visse. Mas atrasavam‑me, porque hesitava em arrancar‑me e sacudi‑las e passar de um salto para onde o Senhor me chamava. O costume, que sempre exerce violência, continuava a dizer‑me: «Pensas tu poder viver sem estas coisas? »."

Mas já o dizia com pouco entusiasmo. Naquele lugar, para onde eu tinha dirigido o meu olhar, desvendava‑se‑me a beleza da castidade, serena e alegre sem leviandade. Abria para mim, para me receber e abraçar, as suas piedosas mãos, cheias de múltiplos bons exemplos: numerosas crianças, gente jovem e de todas as idades, veneráveis viúvas e anciãs virgens. Em todos eles resplandecia a castidade, que não é estéril, mas mãe fecunda de filhos... Ela troçava de mim e com humor alentava‑me dizendo: «Não poderás tu o mesmo que estes e estas? Acaso estes e estas podem por si mesmo e não no Senhor seu Deus? O Senhor teu Deus entregou‑me a eles. Porque te apoias em ti se não podes ter‑te de pé? Atira‑te a Ele, não temas; não se afastará para que tu não caias; atira‑te seguro que Ele te receberá e te curará». Senti eu grande vergonha de mim mesmo porque ainda sentia o murmúrio daquelas coisas frívolas e continuava indeciso e suspenso... Mas Alípio, colado a meu lado, esperava em silêncio o desenlace daquela agitação desacostumada em mim" (VIII, 26, 27).

Agostinho necessitava estar completamente só. Levanta‑se de onde estava Alípio, porque a solidão lhe parece mais adequada para chorar e retira‑se para longe, onde nem a sua presença o estorve. Deita‑se sob uma figueira, dá rédea solta às lágrimas e "saltaram dois rios dos meus olhos...". Perguntava‑se com voz lastimosa: "Até quando? Até quando direi: amanhã, amanhã? Porque não agora? Porque não ponho neste momento fim à minha torpeza?"(VIII, 12, 28).

O momento é decisivo. As conseqüências são imensas, não só para Agostinho, mas para a Igreja. Agostinho está quase a romper com todos os laços e a deixar‑se cair nas mãos de Deus. Mas deixemos que sejam as suas próprias palavras a contarem‑nos: "Enquanto dizia isto, o meu coração chorava com amarga contrição. De repente, duma casa vizinha, ouço uma voz, não sei se de menino ou menina, que dizia cantando e repetindo muitas vezes: «Toma e Lê, Toma e Lê». Reprimidas as lágrimas, levantei‑me. Interpretei aquele canto como a voz de Deus que me convidava a abrir o livro e a ler o primeiro capítulo que encontrasse... Por isso voltei a toda a pressa ao lugar onde Alípio estava sentado, onde tinha deixado o livro que continha as Cartas do apóstolo S. Paulo. Agarrei‑o, abriu‑o e li, em silêncio, o primeiro capítulo que caiu sob os meus olhos: Não em comida e na embriaguez, não em desonestidade e dissoluções, não em contendas e ciúmes. Revesti-vos antes do Senhor Jesus Cristo e não vos preocupeis com a carne para lhe satisfazerdes os apetites (Rm., 13, 13‑14). Não quis ler mais nem foi necessário porque mal li esta frase difundiu‑se sobre o meu coração uma luz de segurança e dissiparam‑se as trevas da dúvida."

Então, pondo o dedo ou não sei que outra marca, fechei o livro e já com rosto sereno, contei tudo a Alípio. Por sua vez ele disse‑me o que se estava a passar consigo sem que eu o suspeitasse. Pediu‑me para ver o que eu tinha lido. Mostrei‑lho e ele continuou a ler um pouco mais para diante. O texto continuava com estas palavras: Recebei o débil na fé. Aplicou‑o a si próprio e indicou‑mo tranqüilo e sem tardar associou‑se à minha decisão e propósito, que estava perfeitamente de acordo com os seus costumes, em que desde há muito se me tinha adiantado" (VIII, 12,30).

Depois vão ter com Mônica e contam‑lhe o sucedido. Como é fácil de compreender ela transborda de alegria.

Tal cena tem lugar em finais de Julho ou princípios de Agosto do ano de 386. Agostinho contava 32 anos. Ia começar uma nova etapa da sua vida.

OS PROBLEMAS DA INTELIGÊNCIA

Antes duvidaria de que vivo

Agostinho estava atormentado não apenas por estas hesitações sobre o plano de vida a realizar. Outros problemas de ordem puramente intelectual ocupavam a sua mente. O primeiro de todos: como conceber o ser de Deus? Afastava a idéia de que Deus tivesse forma de homem; ao mesmo tempo dava como certo que o ser divino era incorruptível, imutável. Mas sendo incapaz de se representar um ser espiritual, via‑se obrigado a imaginá‑lo como algo corpóreo, que se estendia pelo espaço. As imagens que circulavam pela sua mente eram as mesmas que lhe passavam pelos o olhos.

Entretanto continuava a procurar razões e argumentos para afastar de uma forma definitiva o fantasma do Deus maniqueísta, e os outros que se lhe seguiam, segundo uma lógica precisa. Preocupava‑o de um modo especial o problema do mal. Quem tinha plantado no seu interior "um alfobre de amargura", dado que tinha sido criado por Deus, que era extremamente doce? Com tais pensamentos afundava‑se cada vez mais e quase se afogava, mas já sem se submergir naquele "inferno do erro maniqueísta".

A ignorância em torno da origem do mal encontrava‑se unida a não poucas certezas; algumas nunca o tinham abandonado; outras reconquistadas naquele período de pesquisa e reflexão. "Eu ‑ são palavras suas ‑ continuava a procurar a origem do mal sem encontrar saída. Mas Deus não permitia que as vagas daqueles pensamentos me afastassem da fé pela qual cria na sua existência, que o seu ser não estava sujeito a qualquer mudança, que tinha providencia de todos os homens e que os havia de julgar. Conservava a fé em Jesus e acreditava nas Sagradas Escrituras tal como a Igreja as explicava. Estava já convencido de que nelas Deus tinha posto o caminho para a salvação eterna" (VII, 7, 11).

Depressa se lhe aclararam os enigmas e se somaram às certezas. Quis Deus que caíssem nas suas mãos os livros de alguns filósofos neoplatônicos. Um famoso orador pagão, Mário Vitorino, tinha‑os traduzido do grego para o latim e tinha‑os tingido do Evangelho. Tais livros resolveram‑lhe problemas que pouco antes lhe pareciam quase insolúveis. Permitiram‑lhe conhecer o verdadeiro ser de Deus, ser espiritual. Deus fez‑lhe ver algo que antes não era capaz de ver. Com expressão sua, Deus deslumbrou os seus olhos débeis, reverberando em cheio neles, e estremeceu de amor e de horror. Compreendeu que se encontrava numa região distante donde Deus lhe falava para lhe dizer "Sou alimento de grandes: cresce e comer‑me‑ás. Mas tu não me transformarás em ti, como o alimento da tua carne, mas sim, te transformarás tu em mim" (VII, 10, 16).

A certeza adquirida foi absoluta e total. Ouviu isto "como se ouvem as coisas no coração, sem poder de modo algum duvidar. Antes de duvidar da existência daquela verdade, duvidaria que estou vivo" (idem). Descoberto o verdadeiro Deus, descobre o verdadeiro ser das coisas, participação do ser de Deus, que portanto, são boas como Ele e que só a sua existência é um canto de louvor a quem as criou.

Ao mesmo tempo, encontrou soluções para o problema do mal. O mal físico, lógica conseqüência do fato de que a criação não é Deus. Todo o criado participa do ser, não é o ser; num sentido é e noutro não é. Neste não‑ser consiste o mal; é a falta de perfeição. Também achou solução para o mal moral. Não é outra coisa senão um desvio da vontade, que se afasta de Deus para se voltar para o que não é Deus, para as criaturas.

Os progressos realizados eram grandes, mas o caminho ainda não estava livre para se entregar totalmente a Deus. Já não amava um fantasma no lugar de Deus, mas sim a Deus mesmo. Mas alguma coisa ainda o impedia de gozar com plenitude e de se confiar sem reservas. Era o peso do hábito carnal que o mantinha apegado à terra.

Agostinho tinha descoberto a Deus, pátria e gozo definitivo. Averiguou para onde deve caminhar mas ignora por onde; desconhece o caminho que conduz, não apenas a vislumbrar a pátria bem‑aventurada, mas também a habitá‑la.

O caminho não é outro senão Jesus. Mas d'Ele tinham Agostinho e Alípio uma opinião errada. Ainda não sentiam a respeito de Cristo o mesmo que sentia a Igreja. Enquanto ela vê em Jesus o Filho de Deus, o Verbo do Pai e, portanto, Deus como Ele, Agostinho via n'Ele um homem extraordinário cuja sabedoria ninguém podia igualar; homem extraordinário também conquanto nascera maravilhosamente de uma virgem para dar‑nos o exemplo de como desprezar as coisas terrenas para alcançar as eternas. Por tudo isto tinha merecido ser considerado como um grande mestre. Mas ainda não compreendia o que queria dizer aquilo que tantas vezes ouvira: o Verbo se fez carne. Mais ainda, nem o podia suspeitar. Como é possível a sua ignorância neste campo? Não lhe tinha Mônica ensinado a verdadeira fé da Igreja? Tão longe o tinha levado o seu erro?

A solução definitiva encontrou‑a no único sítio onde a podia encontrar. Depois de lidos os livros dos platônicos, pôs a ler com entusiasmo as Sagradas Escrituras, em especial o apóstolo S. Paulo. Começou então a compreendê‑las. Já não via contradição entre uns livros e outros, entre o Antigo e o Novo Testamento. "Desvendou‑se a meus olhos ‑ dirá ‑ o único rosto das castas palavras de Deus e aprendi a alegrar‑me com temor" (VII, 21, 27). Que diferença entre esta leitura e a primeira vez que teve acesso à Bíblia! Não foi em vão que tinham já passado mais de dez anos de angústias e de fome espiritual.

Ultrapassado o materialismo, as dúvidas da sua inteligência estavam dissipadas. Seria capaz de se entregar a esse Cristo totalmente descoberto na sua divindade? Quem lhe iria impedir tal generosidade? Melhor, quem o ajudaria a dar o salto vital até às mãos de Deus?

III.- UM DESEJO: ENCONTRAR A DEUS. QUE FAZER?

Tínhamos pensado viver juntos pondo tudo em comum.

Agostinho compartilhava os seus problemas com os amigos, especialmente com Alípio e Nebrídio, aos quais o uniam fortes laços de amizade. Lamentavam‑se mutuamente da situação de incerteza em que se encontravam.

Ambas as amizades duraram tanto como as suas vidas. A de Nebrídio pouco, porque morreu não muito depois. Alípio será, por sua vez, o seu braço direito durante os anos de episcopado. Tinha sido seu discípulo em Tagaste e em Cartago. O afeto era recíproco. Alípio amava a Agostinho porque o considerava bom e sábio. Agostinho a Alípio pelo seu bom caráter e bondade, que o faziam destacar em relação aos outros. O torvelinho dos costumes de Cartago tinham feito dele um fanático dos jogos de circo, loucura da qual o próprio Agostinho o libertaria.

Nebrídio tinha abandonado a sua casa e a sua mãe e tinha‑se mudado para Milão para se consagrar, juntamente com Agostinho, ao estudo da sabedoria e à procura da verdade. Participava dos desejos e ânsias do grupo e caracterizava‑se por ser um ardente investigador da vida feliz sem se deter perante qualquer tipo de dificuldade.

Eram "três bocas famintas" que suspiravam por um alimento mais sólido do que aquele que lhes oferecia a dúvida em que viviam. As trevas espirituais constituíam o meio ambiente em que se desenvolvia a sua vida. Misturava‑se neles a ânsia de encontrar algo de novo com a preguiça de mudar. O que tinham não os satisfazia mas onde encontrar algo que os realizasse mais?

Não podemos transcrever as formosas páginas das Confissões, que descrevem o seu estado de ânimo, recordando os onze anos que tinham transcorrido desde que começou a ter gosto pela sabedoria, após os quais ainda não levantara vôo. São as hesitações de um homem que tem esperança no amanhã, que examina os progressos feitos e o muito que lhe falta avançar; que não encontra nada seguro; o que antes lhe parecia absurdo, as Escrituras, agora já não se lhe apresentam assim. É o homem que se anima a si próprio para continuar procurando, mas as dificuldades vêm ao seu encontro: quem o ajudará? onde irá buscar tempo? quem lhe emprestará os livros? quando preparará as aulas que os estudantes lhe pagam? porque não abandonar tudo e ocupar‑se totalmente na procura da sabedoria, da verdade? ou não será melhor esperar até ter um bom lugar, arranjar um casamento rico e depois entregar‑se com maior liberdade à sabedoria, uma vez resolvido o problema da subsistência?

Planeiam projetos concretos. Pensaram e até se propuseram afastarem‑se do ruído mundano e viverem na tranqüilidade de um lugar afastado. Trata‑se de viver juntos, pondo tudo em comum, de modo que, em virtude da sincera amizade que os une, tudo seja de todos e não uma coisa de um e outra de outro. O que se obtenha com a doação de cada um há de ser todo de cada um e tudo de todos. O grupo é constituído por uns dez amigos. O seu protetor de outros tempos, o rico Romaniano, é um deles. Ele, além disso, tomará a seu cargo a resolução do problema econômico. Estava tudo programado mas quando começaram a falar das mulheres, aquele projeto tão perfeitamente planeado como que se lhes caiu das mãos e fez‑se em pedaços. Uns, com efeito, já eram casados e outros, como Agostinho, pensavam fazê‑lo. Mudadas as circunstâncias o projeto tornar‑se‑á realidade uns anos mais tarde.

Insistiam para que se casasse. Mônica, sua mãe, foi quem mais se movimentou nesta direção, procurando encontrar‑lhe uma noiva . Chegou a pedir a mão de uma menina a quem faltavam dois anos para se poder casar, segundo a lei romana. Agostinho tinha trinta anos e ela apenas dez! O sacrifício que lhe foi exigido para isso foi enorme: abandonar a mulher que o tinha acompanhado ao longo de doze anos. Ele conta‑nos com estas palavras: "Quando arrancaram do meu lado, como estorvo para o matrimônio, a mulher com quem eu costumava partilhar o meu leito, o coração ficou dilacerado pela ferida. Ficou chagado e sangrando. Ela foi para África, fazendo voto a Deus de não voltar a conhecer varão e deixou comigo o filho que tínhamos tido. Eu, desgraçado, sendo incapaz de imitar uma mulher, não podendo esperar tanto tempo, procurei outra, até que pudesse tomar a que estava destinada a ser minha esposa... Mas a ferida, que me tinham feito ao arrancar a primeira do meu lado, não se curava; pelo contrário, passado o agudíssimo ardor e dor iniciais, começava a apodrecer; uma dor mais fria mas mais desesperada" (VI, 15, 25). Página emocionante que nos mostra com que intensidade Agostinho a amava

AQUELE HOMEM DE DEUS: SANTO AMBRÓSIO

Ele não conhecia as minhas aflições

Chega a Milão. Em breve irá visitar o bispo da cidade, Santo Ambrósio, já célebre em todo o mundo. A ele era levado por Deus, sem o saber, diz Agostinho, para ser levado a Deus por ele, sabendo‑o. Aquele santo homem recebe‑o paternalmente e interessa‑se pela sua vinda. Depressa o africano começa a amá‑lo. A princípio não como a um mestre da verdade, porque ainda não tinha esperança de a encontrar na Igreja Católica. Amava‑o apenas como a um homem que tinha sido afável com ele.

Assistia aos seus sermões, que escutava com interesse, ainda que apenas para comprovar se falava tão bem como se dizia. Ficava suspenso das suas palavras, apesar de não prestar atenção ao conteúdo das mesmas. Naquela altura desprezava‑o. Mas, a pouco e pouco, foram‑se gravando na sua alma as verdades contidas naquelas palavras, que ouvia com agrado. "Ao abrir o coração para perceber quão brilhantemente falava, ao mesmo tempo percebia com quanta verdade falava" (V, 14, 24). Foi, sem dúvida, um processo lento. Agora pensava que se podiam defender coisas, que antes lhe pareciam absurdas. O sentido espiritual, em que era mestre Santo Ambrósio, explicava muitas passagens obscuras da Bíblia. Isto fez Agostinho refletir sobre a falta de fundamento da sua desconfiança em encontrar a verdade nas Escrituras. Era o primeiro passo e era importante. Mas ele estava todavia longe de se decidir a seguir o caminho dos católicos, pois ainda que a religião de sua mãe não lhe parecesse vencida, também não a dava por vencedora.

Escutando a Ambrósio, aumenta também a sua desconfiança perante os maniqueus, até se tornar total. Agora compreende a falsidade de muitas das acusações contra a doutrina católica. Em conseqüência, ainda no meio de muitas dúvidas, toma a decisão de se desligar por completo deles. A sua doutrina parecia‑lhe completamente insustentável . Mas também não quis entregar‑se aos filósofos para que lhe curassem a alma doente, porque nos seus escritos não encontrava o nome de Cristo. No meio de estas incertezas, optou por fazer‑se catecúmeno da Igreja Católica, ao menos até encontrar outra via melhor. Iniciava assim o regresso à fé de Mônica.

Nesta situação encontrou‑o sua mãe, que tinha ido ao seu encontro, seguindo‑o por mar e por terra, confiando no Senhor em todos os perigos. Logo se pôs em contato com Ambrósio "a quem amava como a um anjo de Deus", amor que demonstrou submetendo‑se a todas as normas dadas por ele, mesmo quando eram contrárias às que anteriormente tinha seguido em terra africana.

Durante este período Ambrósio ocupava permanentemente o pensamento de Mônica e, sobretudo, o de Agostinho. Ainda que não compreendendo o seu celibato, considerava‑o um homem feliz, porque toda a gente, incluindo as mais altas autoridades do império, o honrava e respeitava. Mas, dirá o mesmo Agostinho, "eu não podia suspeitar as lutas que sustinha contra as tentações da sua própria grandeza". É certo que também Ambrósio não tinha idéia das aflições que atormentavam Agostinho, nem tinha razão para conhecê‑las. Muitas vezes o professor africano tentou encontrar‑se com o bispo e expor-lhe pormenorizadamente a sua situação, mas não lhe foi possível. Sempre o encontrava ocupado a atender as multidões que acorriam ao seu gabinete ou, quando lhe ficava algum tempo livre, além do empregue nas refeições, absorvido na leitura. Muitas vezes quis entrar em diálogo com ele, mas ao passar o limiar da porta, vendo‑o tão absorto nos livros, dava meia volta e deixava‑o para outro dia. Mas o tal dia não chegou.

Para Agostinho era a ocasião de abrir bem os olhos da sua inteligência e de estabelecer as fronteiras precisas entre o certo e o incerto. O importante era que ele se tivesse dado conta que os maniqueus atribuíam à Igreja Católica aquilo que ela não professava. As Escrituras diziam uma coisa e os seus adversários faziam‑na dizer outra. Nem a Bíblia nem a Igreja concebiam Deus em forma humana. Pelo contrário, o homem é que foi criado à imagem de Deus. Não há nada na Escritura que seja absurdo, imoral ou indigno de Deus. Somente há que entender o texto. É preciso levantar o véu místico e interpretá‑lo em sentido espiritual, como fazia Ambrósio.

Agostinho aprendeu bem a lição, se bem que, com medo de um novo descalabro, não ousava decidir‑se. "Costuma acontecer, escreverá ele próprio, que quem tenha caído nas mãos de um mau médico, desconfie mesmo de um bom" (VI, 4, 6). Agostinho, enganado pelos maniqueus, temia cair de novo nas mãos de outros aldrabões.

O resultado disto foi a aceitação das Escrituras, da sua autoridade e da autoridade da Igreja, que as conservava. Acima de tudo, Agostinho aceita a fé. Uma da causas da sua queda no erro maniqueísta tinha sido a pretensão de tudo querer explicar pela razão. Entre a razão e a fé tinha escolhido a primeira. Agora tinha compreendido que estava fora do bom caminho. Colocar o dilema: a razão ou a fé, é um erro. O mais importante é compreender mas, em primeiro lugar, é preciso crer. Começa crendo e acabarás compreendendo.

Tinha superado o racionalismo. No entanto, as dúvidas de Agostinho subsistem. Adiante se verá.

DA CAPITAL DA ÁFRICA À CAPITAL DO IMPÉRIO

Procurava uma falsa felicidade

Muitas vezes, em Cartago, Agostinho teria visto os navios zarparem rumo a Roma. Em mais de um ocasião ele teria sonhado em fazer‑se ao mar, vencendo o horror que sentia àquela enorme mole de água, personificação do mal. Para além do perigo estava Roma, a grande Roma, a capital do império. Acostumado ao triunfo, deve ter pensado que os seus dotes deveriam ter ali mais ressonância; os seus méritos podiam chegar com mais facilidade aos ouvidos do imperador; as portas das honrarias eram mais numerosas e era preciso estar presente para poder entrar por elas. Portas que conduziam igualmente às riquezas. Que importância tinha que fosse africano? Não tinha triunfado ali Hiério, provinciano como ele, sírio, para ser mais exato?

Os seus amigos não devem ter tido de se cansar muito para o convencerem a abandonar Cartago. Não lhe faltavam motivos. Não partiu dele a idéia de abandonar África. Foram os amigos que o impeliram a mudar‑se para Roma e a ensinar o que ensinava em Cartago. Ali ser‑lhe‑ia mais fácil enriquecer. Mas, se bem que isto também influísse no seu ânimo, não foi, no entanto, a razão principal que o decidiu a seguir os desejos dos seus amigos. Outras coisas pesaram mais na sua mente. Decepcionado e quase desvinculado interiormente do maniqueísmo, encontrava‑se contrafeito no cenário do seu proselitismo. Além disso, tinha ouvido dizer que os estudantes romanos tinham melhores costumes e eram mais disciplinados; que não entravam de roldão nas aulas dos que não eram seus mestres, nem saiam delas de forma inesperada. Os costumes que não quis aceitar como estudante, também não os queria passar como professor. Por isso agradou‑lhe a idéia de ir para Roma. Depois de nos ter narrado estas coisas, Agostinho, com uma frase digna de si, reflete sobre tudo isto: "Eu, que em Cartago detestava uma miséria verdadeira, procurava em Roma uma falsa felicidade" /V, 8, 14).

Mônica opôs-se a tal viagem e Agostinho tem de se servir de uma mentira para se desembaraçar dela. Enquanto ela vai rezar a uma capela perto do porto, ele finge ir despedir‑se de um amigo, que esperava vento favorável para se fazer ao mar. Quem, de fato, se faz ao mar é ele próprio. Passaram os anos e Agostinho continuará a sentir tal mágoa de ter enganado a sua mãe que na manhã seguinte sentiu profundamente a punhalada da traição, que tentou lavar com súplicas e lamentos, "Assim menti a minha mãe, e a que mãe!" (V, 8, 15).

Lamentos e súplicas que não foram em vão. Agostinho atribui‑lhes o terem‑lhe salvo a vida, evitando‑lhe assim uma morte afastada dos braços de Deus. A sua saúde ressentiu‑se ao chegar a Roma. Caiu gravemente doente, mas desta vez, não pediu o batismo, como tinha feito em circunstâncias idênticas quando era criança.

À medida que passava o tempo, Agostinho estava cada vez mais desiludido a respeito dos maniqueus, apesar deles o terem recebido e de se ter hospedado em sua casa. Sentia‑se defraudado. Tinham‑lhe prometido a verdade e deram‑lhe um conjunto de fábulas mais ignominiosas do que quanto punham na boca dos católicos. Oferecendo razões exigiam‑lhe credulidade. Não é para estranhar que já não defendesse o maniqueísmo com o entusiasmo de outros tempos. Mas a amizade que o unia a membros da seita tornava‑o preguiçoso para procurar a verdade noutro lugar. Pensar na Igreja Católica, da qual os maniqueus o tinham separado, era uma possibilidade posta de lado. E a sua posição era muito compreensível, considerando que o que ele pensava da fé católica estava muito longe da verdadeira realidade.

Com dúvidas potentes acerca do maniqueísmo e com uma desconfiança total na Igreja Católica, Agostinho abandona‑se ao cepticismo. Que se pode afirmar com certeza, se em toda a parte encontrei o erro? Melhor será abster‑se de fazer afirmações, duvidar de tudo; assim se evitará todo o equívoco.

Agostinho continuava exercendo em Roma a sua atividade de professor de retórica. Se os estudantes tinham sido um dos motivos que o levaram a deixar Cartago, estes mesmos tornariam ingrata a sua estadia na capital do império. Muito depressa teve conhecimento de que, em Roma, sucediam coisas que não tinha tido de agüentar na capital africana. Era certo, como lhe tinham assegurado, que não havia aqueles alvoroços provocados pelos estudantes. Mas, não seria mais desagradável ainda, que os alunos não lhe pagassem o devido pelo seu trabalho? Quando chegava a hora de pagar punham‑se de acordo entre eles e passavam para outro professor. Isto fez com que também não se sentisse bem.

Depressa se lhe deparou a ocasião de abandonar Roma. De Milão, então residência do Imperador, tinham pedido ao Perfeito da urbe, um professor de Retórica. Os seus amigos maniqueus movimentaram‑se para que ele fossa designado. Assim aconteceu depois de um exame. Sem dúvida ao Perfeito Símmaco, pagão que se esforçava por restaurar a religião dos seus antepassados, deve ter‑lhe parecido uma solução muito aceitável: um anti‑católico que podia fazer frente e sombra ao indomável Ambrósio.

E pôs-se a caminho de Milão. Era o outono do ano de 384.

SEMPRE CARTAGO

Conversar e rir‑mo‑nos juntos

Com o coração profundamente ferido prossegue a sua vida em Cartago enquanto espera a cura. Só o reanimava e confortava a consolação dos amigos. Encontrava alívio a conversar com eles e rir‑se em sua companhia e nas mútuas atenções de amizade e em tantas outras coisas que ele nos descreve: "Ler juntos livros amenos; brincar uns com os outros dando‑nos provas de estima recíproca; discutir sem paixão; ensinar ou aprender alguma coisa com o outro; ter saudades dos ausentes; recebê‑los com alegria no regresso. Com estes e outros sinais semelhantes, que nascem do amor do coração daqueles que se amam uns aos outros e o manifestam pela expressão, pela palavra, pelo olhar e outros mil gestos agradáveis, fundiam‑se, com o seu calor, as nossas almas e de muitas se fazia uma só." (IV, 8, 13).

A amizade foi o bálsamo que a pouco e pouco curou as suas feridas.

Durante esta segunda estadia na capital africana, a dos 26 ou 27 anos, compõe a sua primeira obra, que se perdeu para nós, O belo e o conveniente, e foi dedicada a um famoso orador de Roma. Apesar de não o conhecer pessoalmente apreciava‑o pela fama da sua doutrina. Mas o que mais lhe agradava era o fato de os outros gostarem dele ao ponto de se fazerem arautos da sua arte e de se admirarem que, tendo sido educado na eloquência grega, tivesse chegado a ser orador admirável na língua latina.

Em Cartago abre uma escola de retórica. O tempo que lhe sobra emprega‑o em completar a sua formação intelectual. Não lhe bastava o que tinha recebido na escola. Agora interessa‑se sobretudo pela filosofia, concretamente, por Aristóteles. O seu talento privilegiado poupa‑lhe a necessidade de mestres. A prova disto está em que com vinte anos lê e compreende, sem que ninguém lho explicasse, um livro do mencionado filósofo, que lhe veio parar às mãos, intitulado As dez categorias; livro que outros só com dificuldade conseguiam entender, mesmo depois de lhes ter sido explicado de muitas maneiras por sábios mestres.

Lia todos os livros que lhe chegavam às mãos. Não só de filosofia mas também do que então se chamavam as artes liberais: a retórica e a dialética, a geometria, a música e a aritmética. Tudo percebia sem que ninguém lho expusesse, prova evidente duma lúcida inteligência, como o prova a seguinte confissão do próprio Agostinho: "Só quando tive de explicar aos outros me dei conta de quão difíceis são de entender mesmo para pessoas estudiosas e inteligentes. Entre os meus alunos, era o melhor aquele que não tardava em seguir a minha exposição" (IV, 16, 30).

Diante disto, a pergunta de Agostinho, dirigida a Deus, soa assim: "Que me aproveitava, pois, então a inteligência desperta para aquelas ciências e o ter posto a claro, sem auxílio de nenhum mestre humano, tantos livros cheios de dificuldades, se na doutrina da religião, errava monstruosamente e com sacrílega maldade?" (IV, 16, 31).

Ainda que pergunte, fingindo não saber, Agostinho não desconhecia que o proveito que tirou foi imenso. O estudo das ciências deu‑lhe capacidade para perceber a falsidade das doutrinas maniqueístas. Pelo menos, começou a ver a oposição entre a fé de Manes, o fundador da seita, e as afirmações da seita. Manes, a seus olhos cai em descrédito. Agostinho não pára de pôr questões de todo o tipo a que ninguém sabe responder. Os que lhe tinham prometido dar explicações de tudo, convidam‑no a esperar. Esperar pelo grande doutor da seita, de seu nome, Fausto. Mais tarde, Agostinho falará dele como de uma hábil armadilha do demônio em que muitos caiam, enganados pela suavidade das suas palavras. Tinha‑lhe sido apresentado como muito douto em todos os ramos do saber e bastante instruído nas artes liberais. Entretanto não perdia o tempo. Consoante o fio das suas leituras, ia comparando mais e mais o que diziam os filósofos com as inúmeras fábulas dos maniqueus. É fácil de entender que já lhe parecia mais razoável o que diziam os primeiros do que os sonhos dos segundos.

Os últimos anos, que Agostinho viveu no maniqueísmo, foram os anos de espera pela chegada de Fausto. Eram muitas as coisas que esperava tratar em diálogo franco com ele. Procurava soluções para problemas pessoais e outros não tão pessoais, mas igualmente importantes.

Por fim, chegou o momento do esperado encontro. O resultado foi uma desilusão. Depressa compreendeu que era ignorante nas artes em que o julgava sábio. O que significava que tinha de ir perdendo a esperança de achar solução para as questões que o inquietavam, como de fato aconteceu. Mas Agostinho louva a prudência do maniqueu. Reconhecendo a sua ignorância declinou responder a quanto se lhe perguntava. Desconhecia aquelas questões e não se envergonhava de o dizer. Não ignorava de todo a sua ignorância, dirá Agostinho. Não quis entrar num combate que o poria em apertos e donde não lhe seria fácil encontrar uma saída, sem ter qualquer possibilidade de retirada. Foi este o gesto que mais agradou ao jovem. E dá a razão: "porque mais formosa é a modéstia de uma alma que se conhece a si própria, do que a ciência que eu desejava conhecer" (V, 7, 12).

Já bispo, Agostinho escreveria uma obra monumental para refutar o bispo maniqueu: Contra Fausto. Mais importante para nós agora é o resultado deste encontro. Apaga‑se o entusiasmo com que se tinha aplicado a estudar os escritos de Manes. A sua desconfiança estende‑se a todos os doutores da seita. O empenho que tinha resolvido pôr, para progredir nela, vem‑se abaixo ao conhecer aquele homem, se bem que ainda não vai ao ponto de se separar totalmente dos maniqueus. Mas só até descobrir outra coisa melhor. A decisão é provisória.

A vida de Agostinho foi a de um inquieto pesquisador. Conheceu muitas coisas que, se o deixavam insatisfeito, o estimulavam a continuar a busca. Mas, ainda que não fossem do seu total agrado nunca as abandonava até ter encontrado algo superior. Isso encontrá‑lo‑á dentre em breve e noutro lugar.

Por razões, que diremos a seguir, Agostinho muda‑se para Roma. Era o ano de 383. Contava então 29 primaveras.

UMA INQUIETAÇÃO: DESCOBRIR A VERDADE. DE NOVO EM TAGASTE

Tive um amigo a quem amei excessivamente

Quando Agostinho voltou para casa de sua mãe ‑seu pai tinha morrido três anos antes‑ não voltou só. Viajavam com ele as teias de aranha do erro maniqueísta, que o impediam de ver a verdade e lhe fecharam as portas da casa materna.

Com ele viajava também uma mulher, cujo nome nunca nos quis revelar, e o filho que lhe tinha dado, a quem chamou Adeodato, que significa "dado por Deus".

Junto com a "superstição" maniqueísta, acompanhava‑o a fé nos astrólogos.

Mas principalmente era acompanhado por tudo o que tinha acumulado nos estudos daqueles anos, feitos com seriedade e que, no dia de amanhã, tanto o iriam ajudar. Dedicou‑se ao ensino, também sem dúvida para ganhar o seu sustento e não ser pesado a Romaniano, sempre benfeitor, que lhe tinha oferecido a sua hospitalidade. Dava aulas de retórica, isto é, ensinava a arte de bem falar. Com expressões suas, "a arte de vencer pela palavra" ou "a arte de enganar" (IV, 2, 2). Este juízo, tão severo, é emitido por Agostinho, já bispo. Sem dúvida ele desempenhava o seu ofício com dignidade e seriedade. Põe Deus por testemunha da sua boa fé no ensino.

Finalmente, acompanhavam‑no também os seus amigos. A todos quantos giravam à sua volta e a outros que se lhes juntaram mais tarde, conseguiu arrastar para a fé maniqueísta, incluindo o próprio Romaniano. A sua personalidade era avassaladora. No entanto conhecemos duas excepções: a sua mãe Mônica, e a sua amante.

Entretanto, Mônica chora a morte de seu filho e não cessa de rezar para que volte ao verdadeiro redil de Cristo. É para ela uma obsessão, refletida no sonho que Agostinho nos conta. Está muito triste e desfeita em lágrimas, de pé sobre uma trave de madeira. Aproxima‑se dela um jovem, resplandecente, de rosto alegre e risonho. Pergunta‑lhe a causa do seu desgosto e das suas lágrimas para lhe poder dar alívio. Ela responde que chora a perda de seu filho. O jovem roga‑lhe que não se aflija, que abra os olhos e observe que onde ela está, está também o filho. Mônica olha com atenção e vê a seu lado Agostinho, de pé, sobre a mesma trave. A partir de então, a certeza de Mônica acerca da conversão de seu filho é total, ao ponto de decidir admiti‑lo novamente sob o seu tecto. De nada serve que Agostinho tente torcer as palavras daquele jovem. Ela replica em seguida "não me disse onde está ele estarás tu; mas sim: onde tu estás estará ele" (III, 11, 20).

A sua estadia em Tagaste não durará muito. O desgosto causado pela morte de um amigo fá‑lo‑á voltar para Cartago.

Desde os seus dias de escola em Tagaste, Agostinho conservava ali um amigo íntimo. Tinha sido seu companheiro, era da mesma idade e ambos estavam na flor da juventude. Tal amigo morreu pouco mais tarde e, para maior infelicidade do jovem maniqueu, faleceu depois de ter recebido o batismo católico e não permitindo que ninguém troçasse dele. Nada melhor que as suas palavras para narrar os sentimentos de então: "O meu coração encheu‑se de trevas e em todas as coisas via a morte. A terra onde nasci era para mim um suplício e a casa paterna tornara‑se insuportável. As coisas que tinha partilhado com ele tinham‑se tornado num crudelíssimo tormento sem ele. Todas as coisas tornaram‑se odiosas porque não encontrava o amigo entre eles, nem me podiam dizer:«olha‑o, aí vem», como antes, quando voltava depois de uma ausência. Cheguei a tornar‑me insuportável a mim próprio... Só o choro me era doce e, no lugar do amigo, fazia as delícias da minha alma" (IV, 4, 8).

Admirava‑se que os outros mortais vivessem, tendo morrido aquele a quem tinha amado como se nunca tivesse de morrer. Admirava‑se também de ele próprio continuar a viver, tendo morrido o amigo que era o outro ele. Porque sentia que a sua alma e a do amigo era uma só em dois corpos. Por isso a vida causava‑lhe horror: porque não queria viver com metade do seu ser; e talvez por isso, tinha medo de morrer, porque significaria a morte total daquele a quem tão exageradamente tinha amado.

Ainda que sejam bastante literários são formosos estes pensamentos com que Agostinho, muitos anos depois, recorda aqueles acontecimentos como são os que vamos transcrever para concluir este capítulo. "Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o que não era aquele homem era‑me insuportável e odioso. Só a gemer e a chorar encontrava repouso. Assim, fugi da minha terra natal, pensando que os meus olhos o procurariam menos em sítios onde não era costume vê‑lo. Da cidade de Tagaste fui para Cartago" (IV, 7, 12). Era o ano de 376.