Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

6ª.- DA LUTA INTERIOR À PAZ DA VIDA NOVA

(De 31 à 32 anos de idade)

O estado de ânimo em que se encontra Agostinho nesse momento é de indecisão. Quer e não quer ao mesmo tempo. Busca e tem medo de encontrar o que busca. Entre os problemas que se apresentam, ao menos um deve ser resolvido o quanto antes: o do matrimônio. Já faz dez anos que vive com a mesma mulher, a mãe de Adeodato, a quem guardou fidelidade. Com esta mulher, porém, segundo o costume de então, não podia constituir um verdadeiro matrimônio por causa de sua condição social. 

Mônica, que não busca para seu filho senão a paz e tranqüilidade, crê que o único obstáculo é a presença daquela concubina. Trata de afastá-la de seu filho, ajeitando um possível casamento.

Entretanto, insistiam constantemente para que eu me casasse... Quem mais trabalhava neste sentido era minha mãe... insistia junto a mim nesse matrimônio, e foi feito o pedido formal a uma jovem. Faltavam-lhe ainda dois anos para a idade núbil, mas por ser do agrado de todos, ia-se esperando”. (Conf. VI, 13, 23)

Nós não podemos aprovar a atitude de Mônica nesta ocasião. Menos ainda a submissão de Agostinho. O certo é que aquela mulher, deixando seu filho aos cuidados de Agostinho, acabou se separando dele. A separação foi profundamente dolorosa. O coração de Agostinho experimenta uma ferida grave. Sente correr rios de sangue ante o abandono daquela que lhe deu um filho:

No entanto, multiplicavam-se os meus pecados. Quando de mim foi arrebatada a mulher com quem vivia, considerada impedimento para meu casamento, meu coração, que lhe era afeiçoadíssimo, ficou profundamente ferido e sangrou por muito tempo. Ela voltou para África fazendo a Ti o voto de jamais pertencer a outro homem e deixando para mim o filho que me havia dado”. (Conf. VI, 15, 25)

Agostinho, no entanto, depois de haver deixado partir sua mulher sente-se incapaz de guardar castidade e arranja outra mulher. Nas conversas que tem com seus amigos, os problemas do casamento e da castidade ocupam um lugar predominante.

Mas eu, infelizmente, fui incapaz de imitar a esta mulher! Eu não conseguia suportara a espera de dois anos para receber a esposa que tinha pedido. Na realidade eu não amava o matrimônio; eu era, sim, escravo do prazer. E tratei de arranjar outra mulher, não como esposa legítima, para manter e alimentar intacta ou agravar a doença de minha alma até o casamento, e ai chegar sem haver interrompido meus hábitos”. (Conf. VI, 15, 25)

Não era a primeira vez que Agostinho tentava ajeitar sua vida; num esforço por superar-se e de ver-se livre de ataduras humanas, decidiu fazer a experiência, com uns amigos, de viver somente para as coisas sublimes, dedicando-se inteiramente à vida intelectual. Mas, logo abandonam o projeto.

Tínhamos organizado o nosso retiro, de modo a colocar em comum os bens que possuíamos, formando assim um patrimônio único...; parecia-nos ser possível reunir numa única sociedade uma dezena de pessoas, algumas muito ricas, sobretudo Romaniano, meu conterrâneo e grande amigo desde a infância... Mas, quando se procurou imaginar como seria tal idéia recebida pelas esposas, que já alguns tinham e outros, como eu, desejavam ter, o plano tão bem formulado, se desfez em nossas mãos, despedaçou-se e foi abandonado”. (Conf. VI, 14, 24)

Um pouco adiante Agostinho voltará a expressar sua dificuldade em guardar a castidade e continência.

Mas eu, adolescente desventurado em extremo, tinha chegado a pedir-te a castidade dizendo: - Dai-me a castidade e a continência, mas não agora”. (Conf. VII, 7, 17)

Agostinho não conseguia encher o vazio que sentia em sua alma. Buscava Deus que, contudo, lhe parecia estar num cume elevadíssimo, distante. Não havia caminho senão Jesus Cristo, capaz de levá-lo ao cume. Mas Agostinho não sabia disto. Descobriu-o na leitura das cartas de São Paulo. Nelas foi aprendendo que, para unir-se a Deus, é absolutamente necessário que a alma se purifique, sane as debilidades da carne, faça penitência e se humilhe. “Somente um coração contrito e humilhado pode ver a Deus”.

Assim como o artista, para poder expressar com nobreza as imagens de sua fantasia, deve antes libertar-se de qualquer pensamento baixo e vulgar, assim o cristão, para penetrar no mistério de Deus, deve purificar-se por meio da humildade e da penitência.

Quanto mais lia as cartas de São Paulo, mais se sentia comovido e mais se admirava de sua doutrina.

Agostinho, contudo, não encontrava a maneira de libertar seu espírito do turbilhão de seus sentidos. Até então, havia vivido entregue aos prazeres. No princípio, levado pelo impulso de sua natureza ardente e apaixonada; depois, em virtude da inércia, sentia-se ainda preso ao pecado.

Eis o que espantava Agostinho: como viver privado, não só dos prazeres da carne, senão também daqueles outros pequenos caprichos que ainda traz consigo? Agostinho se sentia enfermo interiormente. Notava dentro de si uma força que o impulsionara ao mal, a qual era impossível de dominar.

Ficava preso às mais insignificantes bagatelas, às vaidades das vaidades, minhas velhas amigas que me solicitavam a natureza carnal, murmurando: ‘Tu nos vais abandonar?’ E também: ‘De agora em diante, nunca mais estaremos contigo’. E ainda: ‘De agora em diante, não poderás fazer isto ou aquilo’ E que pensamentos me sugeriam, meu Deus, ao dizerem: ‘Isto e aquilo...’

Do lado para onde voltava o rosto e por onde temia passar, apresentava-se a mim a casta dignidade da Continência, com serena alegria e sem desordem... Encontravam-se ai meninos e meninas, grande número de jovens e pessoas de todas as idades, dignas viúvas, virgens, idosas. Em todas elas não era estéril a continência, e sim a mãe fecunda das alegrias geradas de ti, Senhor seu esposo. E a Continência ria, de mim e ao mesmo tempo me exortava, como se dissesse: ‘Não poderás tu fazer o mesmo que fizeram estes e aquelas...”. (Conf. VIII, 11, 26-27)

Um dia estava Agostinho em companhia de Alípio, quando recebeu a visita de um conterrâneo seu, certo Ponticiano, que ocupava um cargo no Palácio Imperial. Ao ver sobre a mesa as cartas de São Paulo, alegrou-se e começou a falar do ascetismo e, de modo concreto, de Antão, eremita cujo nome andava de boca em boca. Como nem Alípio nem Agostinho conheciam nada do movimento ascético dos desertos de Egito, Ponticiano lhes deixou alguns frutos de santidade que se haviam produzido recentemente. Contou-lhes também a história de dois jovens de Trévis, convertidos pela leitura da vida de Santo Antão.

A narração de Ponticiano havia chegado até a última fibra do sentimento de Agostinho. Quando ele partiu, suas palavras continuaram ressoando como um eco e um convite incessante no fundo da sua consciência.

Em seguida, Agostinho se volta para Alípio e, perturbado em seu interior e também em seu aspecto externo, lhe diz:

“O que é que nos aflige tanto? Que significa isso que também tu acabas de ouvir? Erguem-se os incultos e tomam de assalto o reino do céu, enquanto nós, com o nosso saber insensato, nos debatemos na carne e no sangue! Será que nos envergonhamos de seguí-los porque chegaram primeiro, e não nos envergonhamos de deixar de segui-los?.“ (Conf. VIII, 8, 19)

Alípio contemplava em silêncio seu amigo. Na realidade, sua voz tinha algo de estranho e insólito. Seu rosto, seu olhar, seus gestos, a cor do rosto expressavam, com mais eloqüência que as palavras, a luta atroz que se realizava em seu interior. Agostinho desceu ao jardim. Alípio, inquieto e temeroso, o seguiu. Sentaram-se em silêncio afastados da casa, entre as sombras das árvores. Agostinho sentia que tinha chegado o momento de firmar um pacto com Deus. A tempestade das dúvidas rugia em seu interior. Seu espírito retorcia-se delirante, entre o arrependimento e a penitência. Já havia começado a luta da carne contra o espírito.

Quando essas severas reflexões me fizeram emergir do íntimo e expuseram toda a minha miséria à contemplação do coração, desencadeou-se uma grande tempestade portadora de copiosa torrente de lágrimas. Para dar-lhes vazão com naturalidade, levantei-me e afastei-me de Alípio, o necessário para que sua presença não me perturbasse, pois a solidão me parecia mais apropriada ao pranto. Alípio percebeu o estado em que me encontrava: o tom da voz embargada pelas lágrimas, ao dizer-lhe alguma coisa, havia-me traído. Levantei-me, ele permaneceu atônito, onde estávamos sentados. Deixei-me, não sei como, cair debaixo de uma figueira e dei livre curso às lágrimas, que jorravam de meus olhos aos borbotões, como sacrifício agradável a Ti. E muitas coisas eu Te disse, não exatamente nestes termos, mas com o seguinte sentido: E Tu. Senhor, até quando? Até quando continuarás irritado? Não te lembres de nossas culpas passadas! Sentia-me ainda preso ao passado, e por isso gritava desesperadamente: Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim à minha indignidade? Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de repente, ouço uma voz vinda da casa vizinha. Parecia de um menino ou menina repetindo continuamente uma canção. Toma e lê, toma e lê. Mudei de semblante e comecei com a máxima atenção a observar se se tratava de alguma cantilena que as crianças gostam de repetir em seus jogos. Não me lembrava, porém de tê-la ouvido antes. Reprimi o pranto e levantei-me. A única interpretação possível, para mim, era a de uma ordem divina para abrir o livro e ler as primeiras palavras que encontrasse. Tinha ouvido que Antão, assistindo por acaso a uma leitura evangélica, sentiu um chamado, como se a passagem lida fosse pessoalmente dirigida a ele: ‘Vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me’. E logo, voltei ao lugar onde Alípio ficara sentado, pois, ao levantar-me, havia deixado ai o livro do Apóstolo.. Peguei-o, abri e li em silêncio o primeiro capítulo sobre o qual caiu o meu olhar: ‘Não em orgias nem bebedeiras, nem a devastação e libertinagem, nem nas rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne. Não quis ler mais, nem era necessário. Mal terminara a leitura dessa frase dissiparam-se em mim todas as trevas da dúvida, como se penetrasse no meu coração uma luz de certeza”. (Conf. VIII, 12, 28-29)

Tudo isto ocorreu no mês de setembro do ano 386. Só faltavam alguns dias para o fim do curso. Preferindo a chegada das férias, Agostinho continuou, por mais três semanas, as aulas. Desta maneira evitou os comentários de sua repentina conversão e poupou aos alunos e seus pais os inconvenientes de buscar um novo professor. Por outro lado, o estado de saúde seria uma boa desculpa para abandonar o ensino oficial. A umidade do clima milanês produziu-lhe uma espécie de bronquite crônica.

Passados, pois, aqueles dias finais do curso, Agostinho, livre de todo compromisso, pode em silêncio e recolhimento, preparar-se para receber o sacramento do batismo.

AGOSTINHO SE CONVERTE TOTALMENTE PARA DEUS

Marcando a passagem com o dedo ou com outro sinal qualquer, fechei o livro e, de semblante mais tranqüilo, o mostrei a Alípio. Também ele, por sua vez demonstrou o que lhe acontecera e que eu ignorava. Pediu-me que lhe mostrasse a passagem lida por mim. Mostrei-a, e ele prosseguiu além do que eu havia lido, ignorando eu, portanto o que estava escrito. O texto era o seguinte: Acolhei ao fraco na fé. Alípio aplicou-o a si mesmo e o revelou a sim. Fomos imediatamente à minha mãe e lhe contamos o sucedido. Ela ficou radiante. E nós lhe relatamos como os fatos se tinham desenvolvido. E ela exulta e triunfa, bendizendo-Te, Senhor, que és poderoso além do que pedimos. Verificava que lhe havia concedido muito mais do que ela pedira com lágrimas e orações em meu favor.

De tal forma me converteste a Ti, que eu já não procurava esposa, nem esperança alguma terrena, mas permanecia firme naquela fé em que tantos anos antes me tinhas mostrado em sonho e minha mãe. Transformaste sua tristeza em alegria. Alegria muito maior do que ela poderia esperar dos netos nascidos de minha carne”. (Conf. VIII, 12, 30).

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

5ª - CARTAGO - ROMA - MILÃO

(De 22 à 30 anos)

Durante sua permanência em Cartago, Agostinho teve que lutar, desde o princípio, com urgentes necessidades materiais. Tinha que providenciar sustento, não só da mulher e do filho, senão também de sua mãe e, talvez, de seus dois irmãos. Aqui temos Agostinho, dedicado inteiramente a seu ofício de “vendedor de palavras” (Conf. IV, 2, 2). A atenção dos jovens não demorou em dirigir-se ao novo professor, que dava provas de extraordinárias qualidades oratórias e intelectuais.

Na sua escola se encontravam não poucos alunos de Tagaste, aos quais se somaram outros. Assim podemos cita Licencio, filho de Romaniano, Eulógio, Honorato e Alípio, que deve ter sido sucessor, no coração de Agostinho, do amigo que morreu.

Ao ensino de retórica unia a doutrina moral. Isso sabemos por ele mesmo. Conta-nos que censurou em uma de suas aulas, aos jogos de circo. Tal censura induziu Alípio, que era muito afeiçoado a tais jogos a abandoná-los (Conf. IV 7, 12)

O que atraiu Agostinho ao maniqueismo foi o desejo de encontrar a verdade. Os maniqueus a haviam prometido e ofereceram demonstrações claras e decisivas. No decorrer do tempo, contudo, Agostinho se dá conta de que, quanto mais pensa, mais descobre que as promessas deles não foram e jamais podiam ser cumpridas.

As dificuldades eram muitas. Agostinho só conservou-se fiel ao maniqueismo graças à “santidade dos eleitos”. Se estes levavam uma vida moral irreprovável, não constituía isto indicio de que fosse verdadeira a doutrina que os dirigia à santidade? Mas este motivo deixava de ser válido já que, aqueles que faziam profissão de virtude e santidade, não passavam de uns farsantes hipócritas.

Agostinho esperava com impaciência a chegada em Cartago, do célebre bispo dos maniqueus, Fausto que, sem dúvida, havia de resolver-lhe as dificuldades que se apresentavam. Era o que lhe prometiam os mesmos maniqueus. E, de fato, conseguiu uma entrevista com Fausto, porém, não foi satisfatório. Fausto contestou as objeções de Agostinho com evasivas e muita ignorância

Quando finalmente, me foi possível, com alguns amigos, fazer que ele me escutasse num momento oportuno, então lhe apresentei algumas dificuldades que me perturbavam. Descobri logo que ele nada entendia das disciplinas liberais, com exceção da gramática, da qual conhecia apenas o corriqueiro. Tinha lido algumas obras de poetas, e umas poucas de seus correligionários, escritas em latim melhor cuidado. E como se exercitava diariamente na oratória, havia adquirido facilidade de falar, tornada ainda mais agradável e sedutora pelo emprego inteligente de seu talento e de certa graça natural” (Conf. V, 6)

Agostinho já tem 29 anos de idade. Nesta época já escreveu sua primeira obra, “De pulchro et apto”, que se perdeu.

Em Cartago encontrou alguns amigos extraordinários. E, no círculo de seus estudantes, descobriu discípulos de uma fidelidade a toda prova. Mas este círculo se quebrou, pelas circunstâncias, à medida que cada um dos alunos terminava seus estudos. Alípio, concretamente, decidiu partir para Roma, onde foi estudar direito. Por outro lado, o ambiente de Cartago, desagradava cada vez mais ao jovem professor, que não se acostumava aos modos grosseiros dos chamados “destruidores” (rebeldes). Seu modo de ser sofre ao ver aqueles tumultos e gritarias.

Certamente que, junto com ele, estavam a mulher que ama e o filho. Também sua mãe veio morar na grande cidade. Não sabemos os motivos nem o tempo de sua chegada. Sua influência continua pesando sobre Agostinho, o que não é suficiente.

Disseram a Agostinho que, se quisesse, poderia encontrar facilmente em Roma, uma ocupação muito mais importante e um salário muito melhor. O que mais convence Agostinho, no entanto, é a convicção de que os estudantes de Roma eram muito mais responsáveis que os de Cartago.

No ano 383 prepara sua viagem; mas de uma maneira pouco digna: enganando à mãe. De fato, sob o pretexto de ir até o porto despedir-se de um amigo e aproveitando que Mônica tinha ido a uma capela próxima para rezar, Agostinho fuge.

No entanto, somente tu, meu Deus, conhecias os motivos que me faziam deixar Cartago e me levavam a Roma, mas não manifestavas à minha mãe nem a mim. Ela chorou amargamente a minha partida e me seguiu até o mar. Quando me apertou estreitamente, tentando persuadir-me a voltar ao a deixá-la vir comigo, enganei fingindo que desejava acompanhar um amigo que aguardava vento favorável para navegar. Menti a minha mãe, e que mãe! Fugi dela!

Recusando voltar sem mim, eu a convenci com esforço a passar a noite numa capela dedicada a São Cipriano, vizinha ao lugar onde se achava nosso navio. Nessa mesma noite parti escondido e ela ficou a chorar e a rezar”(Conf., V, 8, 5)

No outono de 383 Agostinho chega, são e salvo, a Roma. Leva cartas de recomendação para alguns personagens influentes da seita dos maniqueus e é recebido na casa de um deles.

O começo em Roma não é nada agradável. Logo que chega, cai doente. Tal vez o fraco organismo de que é dotado, não resiste ao incômodo da viagem e à mudança de clima e de alimentação. Durante alguns dias, Agostinho encontra-se entre a vida e a morte. Mais tarde, se lamentará por não ter pedido o batismo, como quando criança, nas mesmas circunstâncias. De qualquer modo, temos de reconhecer que Agostinho sente-se muito debilitado pela febre para ter consciência clara de seu estado. Sobretudo seu pensamento andava muito longe do catolicismo para sentir-se capaz de pedir sua admissão na Igreja.

Logo que se recompôs de sua doença quis organizar sua nova vida. Com a ajuda de seus amigos africanos, Agostinho abre, em sua própria casa, uma escola particular; e inaugura o curso.

Sua preocupação consiste em reunir alunos. Não é rico e, portanto, tem que assegurar a sobrevivência, tanto pessoal, quanto de sua mulher e de seu filho que vai crescendo. Sem demora consegue reunir alguns alunos que, por sua vez, trazem outros. Mas logo constata que os alunos de Roma não são mais constantes e sérios que os africanos. Além do mais, têm um defeito muito grave: não pagam seus professores. Assistem por algum tempo as aulas e, quando chega a hora de pagar a quota desaparecem de tal forma que torna-se difícil encontrá-los. O inconveniente é muito mais grave ainda para quem, como Agostinho não pode suportar esta falta de delicadeza e busca uma ocasião para abandonar Roma.

Tomando conhecimento que na cidade de Milão estão procurando um professor de retórica, não duvida. Com a ajuda de um amigo, se candidata e é aceito. Imediatamente se dirige a Milão.

Agostinho tinha então 30 anos, idade em que amadureceram as mais profundas crises espirituais. Prepara-se para ser um dos mais ilustres personagens de seu tempo, numa grandiosa cidade, a segunda capital do império ocidental, residência da corte imperial.

Logo em seguida começou o ensino de retórica, que devia durar apenas dois anos. Os jovens milaneses estavam contentes com o trabalho do mestre africano. Admiravam sua eloqüência, embora estranhassem a pronuncia e o sotaque cartaginês.

Com freqüência recorriam a ele quando se devia pronunciar algum panegírico de príncipe ou dos mais distintos magistrados do império. “Recitava - nos diz ele- uma série de mentiras, certo de ser aplaudido por homens que conheciam perfeitamente a verdade” (Conf. IV, 6, 9)

Agostinho chegou a Milão o ano 384. Em 385 chegou também sua mãe, para grande surpresa dele. Lá, ele teve ocasião de conhecer o famoso bispo Ambrósio, defensor incansável dos fracos e oprimidos, guardião zeloso dos interesses da Igreja e da fé. Sentia-se, por toda parte, o peso de sua autoridade. Poucos homens tiveram, como ele, o sentido exato da justiça. O povo o amava muitíssimo e estava pronto a defendê-lo em todo momento. As virtudes do famoso bispo eram proclamadas por todo o povo milanes. Somente uns poucos adversários não cessavam de atacá-lo.

Assim que chega a Milão, Agostinho decide visitar o ilustre bispo, médico de almas. Queria encontrar uma pessoa a quem confiar suas angústias, com a esperança de receber algum alívio. Para sua infelicidade a entrevista durou muito pouco. Ambrósio estava sempre muito ocupado, atendendo às pessoas que a ele recorriam em busca de favores, de conselhos e recomendações. Com paternal benevolência, contudo, o recebeu. Mas logo o despediu.

Embora não pudesse manter longa conversa com o bispo, Agostinho começou a freqüentar a Igreja onde o bispo pregava, para ouvir-lhe. Assim, pouco a pouco, a doutrina que pregava foi entrando no coração de Agostinho. Desta forma foi descobrindo o valor da Bíblia, cujo significado espiritual exige certa preparação. Neste livro, que antes havia rejeitado, Agostinho acabou por encontrar verdadeiros encantos.

Já haviam passado 11 anos desde que o jovem estudante de Cartago havia se sentido perturbado em seu interior com a leitura do “Hortênsio” de Cícero. Desde então, havia brilhado em seu interior a busca da sabedoria e a esperança de romper com as frivolidades de suas paixões.