Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

3ª.- OS ANOS DIFÍCEIS (16 - 17 anos de idade)

Terminado o estudo de gramática, Agostinho se viu obrigado a voltar para sua casa de Tagaste, onde permaneceu um ano inteiro, Em Madaura não havia professores de retórica que pudessem ensinar-lhe o caminho do porvir e da glória; estes estavam em Cartago. Mas a viagem era longa e a vida muito cara para as possibilidades financeiras de seus pais. Seu pai Patrício, por meio de grandes sacrifícios, podia assegurar a seu filho a educação nas escolas de Madaura; mas para os estudos em Cartago precisava recorrer à generosidade de algum amigo. Enquanto cuidava disso, decorreu um ano.

Entretanto, Agostinho, livre dos professores, ocioso e empurrado pelas más companhias, começou a entregar-se aos prazeres com todo o ardor de sua natureza apaixonada.

Colocado na funesta ladeira do vício, o jovem Agostinho deixou-se rolar morro abaixo. E, como seus companheiros se vangloriavam de suas próprias faltas e se orgulhavam tanto mais e quanto maiores e mais vergonhosos fossem seus pecados, Agostinho se esforçava em imitar-lhes para não ser inferior a eles. Estes desocupados e ociosos passavam as noites brincando nas ruas e praças. E, logo, cansados de jogos e diversões, se entregavam a coisas menos nobres. Agostinho nunca deixava de estar entre eles.

Uma tarde, o filho de Mônica, acompanhado dos amigos de sempre, subiu numa árvore carregada de pêras, num jardim perto do jardim de seu pai. As pêras não eram bonitas, mas estavam maduras. Agostinho podia encontrar melhores no jardim de seu pai; porém, pelos simples gosto de praticar atos de vandalismo, derrubaram ao chão todas as pêras e deixaram a marca de seus dentes em cada uma delas.

Eu, miserável, o que foi que amei em ti, furto meu, noturno delito dos meus dezesseis anos? Não eras belo, pois eras roubo! Mas, realmente és alguma coisa, para que eu possa dirigir-me a ti? As pêras que roubamos, sim, eram belas por serem criaturas tuas, ó Bom Deus, criador de toda beleza, sumo bem e meu verdadeiro bem! Sim, eram belas aquelas frutas, mas não era a elas que minha alma infeliz cobiçava; eu as possuía em abundância e melhores. Eu as colhi somente para roubar, e uma vez colhidas, atire-as fora para saciar-me apenas com a minha maldade, saboreada com alegria. Se alguma tocou meus lábios, foi o meu crime que me deu sabor”. (Conf. II, 6, 12)

Sua mãe, por todos os meios, se encarregava de conduzir seu filho pelo bom caminho.

Envergonhava-me de atender as suas solicitações, porque me pareciam conselhos de mulher. No entanto, eram teus os conselhos, eu não sabia! Eu estava convencido de que tu te calavas, e que era ela quem falava; mas, por meio dela, eras tu que me falavas; e, nela, eu te desprezava, eu teu servo, filho de tua serva”. (Conf. II, 3, 7)

Entretanto, Mônica chorava e rezava por seu filho. E o jovem continuava com suas diversões sem pensar em outras coisas!

Para compreender o verdadeiro retrato de Agostinho não podemos nos esquecer de que se trata de um jovem pagão. Certamente o exemplo e os conselhos de sua mãe supõem uma grave acusação ante a atitude do jovem. Ao mesmo tempo, porém, temos que levar em conta a influência dos maus exemplos que ele via em seus companheiros, e as dificuldades que tinha um jovem pagão de evitar as faltas.

Sua estada em Madaura, cidade onde pode viver livremente, o despertar das paixões precisamente no ano que permanecia ocioso em sua cidade natal, a companhia de amigos que não eram os melhores da cidade, tudo isso nos faz compreender com mais justiça, as faltas que o mesmo Agostinho recorda em suas Confissões.

Mônica, no entanto, não podia permanecer alheia a isto sem uma profunda preocupação. Falou-lhe seriamente e recomendou-lhe que evitasse toda fornicação. Como Agostinho admirava e venerava sua mãe, os conselhos lhe pareceriam certos. Com a sua idade e com os amigos que tinha, porém, era muito difícil levar isto em consideração.

Não podemos determinar até que ponto Agostinho caiu. Ele nos confessa as tristes recordações desse ano de “pecado” e declara que se precipitou no abismo, em grande parte, porque sentia vergonha de ser melhor que os companheiros de sua idade. Os jovens de Tagaste, certamente, não eram santos; e o filho de Patrício estava contente com a companhia deles. Sentia-se feliz com eles e passava os dias e as noites entregues, por completo, às diversões, ao jogo, ao furto e mentiras próprios daqueles jovens transviados.

Mas eu o ignorava para a minha perdição, com cegueira tal, que me envergonhava diante de meus companheiros, de parecer menos depravado que os outros, quando os ouvia exaltando as próprias infâmias, tanto mais dignas de glória quanto mais infames eram. Eu queria fazer o mesmo, não só pelo fato em si, mas pelo louvor que disso resultava.

Nada é tão digno de censura como o vício! No entanto, para não ser censurado, eu mergulhava ainda mais no vício! Quando não podia me igualar a meus companheiros corruptos, fingia ter praticado o que não praticara, para não parecer desprezível pela inocência, ou ridículo, por ser casto”. (Conf. II, 3, 7)

Ao ler este trecho, que revela as confidências de sua alma, temos a impressão de que, no meio de seus colegas, Agostinho era o melhor e o mais reservado. Podemos mesmo pensar que, muitas vezes, do fundo de sua consciência se elevava a voz do remorso que fazia descobrir a gravidade de suas faltas. Só um estúpido respeito humano o impedia sair daquele estado.

A custa de privações e economias, e com a ajuda de um amigo, os pais de Agostinho conseguiram reunir finalmente o dinheiro necessário para que pudesse realizar seus estudos na grande metrópole.

Não é necessário imaginarmos o entusiasmo do jovem provinciano ao chegar a Cartago, a esplêndida Cartago, que estava no auge de seu poder e riqueza.

Nesta cidade cosmopolita, se encontravam homens de toda religião, raça e língua. E os jovens chegaram em grande número para terminar seus estudos.

Quando Agostinho chegou em Cartago, logo se viu envolvido entre os do grupo dos “destruidores”, os que hoje chamamos “arruaceiros” ou “rebeldes”, que sobressaiam por qualquer coisa na cidade. Era impossível librar-se deles, já que eram de sua mesma idade, e seguiam os mesmos estudos. Mas não gostava da companhia deles. Seus costumes grosseiros, a ausência de delicadeza, sua tendência à desordem pública, lhe causaram um grande desagrado. O jovem Agostinho tinha suas fraquezas, mas ao mesmo tempo possuía um espírito elevado e era o suficientemente inteligente para não se deixar levar por uma vida de ociosidade.

Entretanto, se em Tagaste havia conhecido as primícias do pecado, em Cartago, seu temperamento ardente e empurrou até os mais baixos prazeres. Não pode resistir às seduções da cidade grande.

Contudo, inclusive em suas próprias faltas, Agostinho conservou sempre certa reserva. Não demorou em unir-se a certa mulher, com quem viveu maritalmente e a quem guardou fidelidade. Esta mulher logo lhe deu um filho, que chamou Adeodato (“dado por Deus”). Talvez Agostinho não o quisesse, mas como Deus lho havia dado, não pode deixar de amá-lo com todo seu coração. Sempre o conservou consigo e o educou com sumo cuidado.

Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos. Ainda não amava, e já gostava de ser amado, e, na minha profunda miséria, eu me odiava por não ser bastante miserável.

Desejando amar, procurava um objeto para esse amor, e detestava a segurança, as situações isentas de risco. Tinha dentro de mim uma fonte de alimento interior, fome de ti, ó meu Deus. Mas, não sentia essa fome, porque não me apeteciam os alimentos incorruptíveis, não por estar saciado, mas porque, quanto mais vazio, mais enfastiado eu me sentia.

Era para mim mais doce amar e ser amado, se eu pudesse gozar do corpo da pessoa amada. Assim, eu manchava e turbava a pureza delas com a espuma infernal das paixões. Não obstante eu ser feio e indigno, apresentava-me num excesso de vaidade, como pessoa elegante e refinada. Mergulhei, então, no amor em que desejava ser envolvido.

Deus meu, misericórdia minha, como foste bom em derramar tanto fel sobre meus prazeres! Fui amado e cheguei ocultamente às cadeias do prazer; mas, na alegria, eu me via amarrado por laços de sofrimento, castigado pelo ferro em brasa do ciúme, das suspeitas, dos temores, das cóleras e das contendas”. (Conf. III, 1, 1)

Sempre se considerou como “injustas” as referências a Patrício, e demasiadas ‘indulgentes” com Mônica. Destacaram-se os elogios que Agostinho fez de sua mãe e se afirma, quase sempre, que não se expressou bem sobre o seu pai. Mas de um autor se refere à dupla herança de Agostinho, na qual se havia misturado a sensualidade exagerada de seu pai e o suave misticismo materno. Segundo eles, a influência de seus pais gerou na alma de Agostinho aquele dualismo que o encadeou durante nove anos à heresia maniqueia.

Tudo isto é demasiadamente simplista. Certamente, Agostinho fala melhor de Mônica que de Patrício; porém, em mais de uma ocasião elogiou seu pai e censurou sua mãe. Narra, com legítimo orgulho, que aquele fez enormes sacrifícios para enviá-lo a Cartago, apesar de sua pobreza; esforço que outros, mais ricos, não faziam pelos seus filhos. Critica, ao contrário, a cristã Mônica por não haver tentado pôr freio à sensualidade do adolescente. Na realidade, tanto Patrício como Mônica acalentavam ambições terrenas a respeito do filho, e estavam decididos a não permitir que se opusessem obstáculos em seu caminho. Por outro lado, não era a primeira vez que Mônica relegava a um segundo plano o progresso moral de seu filho. Não havia ela, afinal, retardado seu batismo?

O que não se pode ocultar é o orgulho de Agostinho pela atitude sacrificada de sues pais nesta circunstância. Supõe Agostinho que sua mãe não queria que ele se casasse nessa época porque temia fosse prejudicada sua formação intelectual que era, no modo dela pensar, uma ajuda em sua posterior evolução espiritual.

 

O VERDADEIRO AGOSTINHO

A insistência de Agostinho em acusar-se de haver sido um “transviado” durante a adolescência e juventude costuma deixar a impressão de que foi um grande pecador. Mas a verdade é que fica difícil levar a serio as necessidades que tinha quando contava com seus quinze anos. Adolescente ocioso, freqüentava os banhos públicos e corria pelas ruas, quando chegava a noite, com companheiros pouco recomendáveis. Não era, porém, tão viciado como seus colegas, o que já é um indício de dignidade moral e aspiração pelo melhor. Um dos seus futuros adversários, o bispo donatista Vicente de Cartena, conta que Agostinho era conhecido entre os estudantes como um rapaz tranqüilo e exemplar. Juízo este muito mais verosímil que o de muitos autores que, por terem tomado, exageradamente ao pé da letra a retórica agostiniana, pintam-no com um estudante indecente e bagunceiro.

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

2.- NASCIMENTO, INFÂNCIA E PRIMEIROS ESTUDOS.

(Até os 15 anos de idade)

NASCIMENTO

Agostinho nasceu o 13 de novembro do ano 354. Embora nascido de uma mãe cristã, não foi batizado imediatamente. Era comum, sobretudo na Igreja de África, o costume de se batizar em uma idade mais avançada, porque se acreditava que os pecados cometidos depois do sacramento do batismo não podiam ser perdoados tão facilmente como os cometidos antes. Costume perigoso que a Igreja local se apressou em abolir. Muitos jovens, de fato, animados às vezes por seus pais se abandonavam aos vícios, com a certeza de que, um dia, a água do Batismo lavaria todas as manchas do pecado (Cfr. Confissões I, 11, 18)

Mônica, mãe de Agostinho, se conformou com o costume de seu país e com a tradição da Igreja. De qualquer maneira, o menino foi inscrito imediatamente no número dos “catecúmenos”. Segundo o rito, foi feito o sinal da cruz sobre sua testa e se colocou sal em sua boca. Mônica o alimentou na fé e, desde cedo, o fez gostar do nome de Cristo.

OS PAIS DE AGOSTINHO

Entre os pais de Agostinho havia certa divisão: seu pai Patrício era pagão, enquanto Mônica era cristã. Existia, sobretudo, uma grande diferença de caráter: e Mônica teve necessidade de muita paciência e habilidade para conviver com seu esposo.

Meu pai era, por um lado, muito benigno e amoroso; por outro, muito iracundo e colérico. Quando ela o via irado, tinha o cuidado de não lhe contradizer nem por atos, nem por palavras. Depois, quando a ocasião lhe parecia oportuna e, passado aquele aborrecimento, o via sossegado, então lhe mostrava como tinha se irritado sem refletir” (Conf. IX 9, 19)

Finalmente, a virtude de Mônica restabeleceu a felicidade no lar e, além disso, teve o consolo de ver seu marido abraçando a verdadeira fé e progredindo no conhecimento de Deus.

Patrício pertencia ao grupo de dirigentes do município e tinha o título de “decúrio”. Não sabemos exatamente qual era sua posição econômica e social. Podemos supor, contudo, que suas propriedades eram bem modestas, já que nos constam suas grandes dificuldades em reunir o necessário para enviar Agostinho ao que podemos chamar de “universidade” de Cartago.

Certamente, você gostaria de saber algo mais sobre a família de Agostinho. De fato, houve outros filhos no lar de Patrício e Mônica. Eles tiveram pelo menos dois filhos e uma filha. Navigio, que se converteu junto com Agostinho, e uma irmã, Perpétua, que se casou, ficou viúva e tornou-se superiora do mosteiro de Hipona. A figura de Aurélio Agostinho, como o chamaram desde o princípio, se destaca, rodeado de uma intensa luz. Seus irmãos ficaram na penumbra.

A INFLUÊNCIA DE MÔNICA

Em seus primeiros anos, Agostinho demonstrava ser um menino vivo e muito inteligente. Como todas as crianças, gostava de brincar entre seus companheiros, se destacava pela facilidade de palavra e pelo encanto de sua conversa. Era, sem dúvida, o “cabeça”, da turma: característica de futuro dominador de almas...

Entretanto, sua mãe o instruía na fé. Falava-lhe de Deus e da humildade de Jesus ao se fazer homem e morrer na cruz por nós.

Estas lições ficaram vivamente impressas em seu coração e em sua fantasia de criança, sobretudo ao ver a incredulidade de seu pai Patrício ser vencida pela piedade de sua mãe. Mônica possuía o dom da persuasão: suas palavras, suas imagens, tinham uma força sedutora tão grande que, dificilmente se podia esquecer.

Em certa ocasião, caindo Agostinho gravemente enfermo, com uma violenta febre e fortes dores no estômago, a ponto de temerem por sua vida pediu, com insistência, o batismo. Este gesto parece estranho a uma criança; mas, certamente, trata-se do efeito dos ensinamentos da mãe. Mônica quis satisfazer o desejo do filho, mas logo o doente começou a melhorar e o batismo foi adiado para outra ocasião.

A influência de Mônica na formação de Agostinho foi extraordinária. Isso se deve a educação que ela mesma recebeu em sua casa paterna.

NA ESCOLA DE TAGASTE

Já curado, Agostinho voltou a suas brincadeiras e seus amigos. E, quando chegou a idade de ir à escola de Tagaste, começou a aprender os primeiros rudimentos do alfabeto e da leitura. Mais tarde recordará, com tristeza, esses primeiros anos: os bancos da escola, onde devia permanecer sentado horas e horas, sempre sob a ameaça da varinha de um severo professor; o repetir monótono da cantilena: “um e um, dois; dois e dois, quatro...”.

Agostinho detestava a escola e o que nela se ensinava. Os castigos se repetiam todos os dias, sem que se passasse um só dia em que não recebesse golpes da régua do professor. Em sua casa, queixava-se aos pais, mas eles escarneciam dele. Inclusive sua boa mãe ria dele. E o pobre menino não sabia a quem recorrer. Lembrava-se, então, de ter ouvido falar de Deus, daquele Deus infinitamente bom e grande, que protege os pequenos e oprimidos. E com toda a simplicidade de seu coração rezava: “Ó, meu Deus! Não deixe que eu seja castigado hoje na escola”.

Por outro lado, tinha uma paixão tão grande pelo jogo, que isto lhe induzia a enganar seus professores e pais, cometendo inclusive outros atos pouco recomendáveis: “Cometia também furtos na despensa e na mesa de meus pais, ora dominado pela gula, ora para ter com que pagar aos companheiros que vendiam seus jogos, mas que se divertiam tanto quanto eu. E, até no jogo, cometia fraudes, dominado pelo meu afã de sobressair” (Conf. I, 19, 30).

NA ESCOLA DE MADAURA

Assim, Agostinho foi enviado para estudar gramática na vizinha cidade de Madaura. Talvez fosse a primeira vez que o menino Agostinho saia de sua cidade Tagaste.

Madaura apresentava o aspecto aristocrático de uma grande cidade: rica em monumentos, sede importante de estudos e cultura... Por toda parte se via arcos de triunfo, templos, termas, pórticos, estatuas.

Agostinho vivia num mundo maravilhoso, onde tantas lendas e tantas obras de arte excitavam sua natural tendência à admiração da beleza. A vida em Madaura não era feita para um jovem católico que quisesse perseverar na sua fé. Lá, o cristianismo era considerado como uma religião de povos bárbaros. A maior parte da população era considerada pagã, como também seus costumes e festas.

Neste ambiente, fora de casa, o filho de Mônica ia esquecendo os ensinamentos de sua mãe e, ao mesmo tempo, se distanciava pouco a pouco do cristianismo.

O estudo dos diferentes autores se efetuava de acordo com certos métodos tradicionais: era lida uma passagem em voz alta que, depois, era recitada de memória. Dava-se a máxima importância à dicção e pontuação. A pontuação, às vezes, não era exata; então era preciso a ajuda do professor. Como os livros eram copiados a mão, é fácil compreender porque havia muitas variações. O professor escolhia aquela que fosse do seu agrado. Desde cedo, brilhou Agostinho entre seus colegas. E seus mestres descobriram nele um menino de futuro, para não dizer um menino “prodígio”. Um dia, teve que declamar um discurso que ele mesmo havia composto.

O discurso tratava da dor e da cólera de Juno que não podia impedir que os Troianos chegassem a Itália. Era um tema clássico. O jovem orador declamou de maneira tão real e emocionante, que seus companheiros não puderam deixar de aplaudir. Patrício e Mônica podiam se sentir orgulhosos de seu filho (Pelo menos de suas qualidades intelectuais).

 

VALOR HISTÓRICO DAS CONFISSÕES

As Confissões de Santo Agostinho não são uma obra autobiográfica, rigorosamente falando, mesmo quando fala a seu favor ou contra si mesmo. Santo Agostinho era de temperamento sincero e amigo da verdade. Quando escreve suas Confissões já se acha nos cumes da santidade. Se, às vezes, se encontram nelas frases de extremo rebaixamento, declarando-se “o mais pecador dos homens”, “um abismo de corrupção” ou “um monstro de iniqüidades”, estas frases não têm, nele, mais sentido que o que tem na boca dos santos; não implicam senão um aspeto parcial e relativo da realidade objetiva. Nas Confissões, temos que distinguir também o “fato” do “comentário”. Santo Agostinho expõe normalmente o fato de modo lacônico e rigoroso e, sobre ele, se estende, em seguida, em amplos e sutis comentários. Veja, por exemplo, o fato do roubo das peras, narrado no capítulo 4 do livro II, ao qual segue um comentário de vários capítulos. Assim começa o livro II:

Quero, agora, recordar as minhas torpeças passadas, as corrupções de minha alma, não porque as ame, ao contrário, para te amar, ó meu Deus. É por amor do teu amor que retorno ao passado, percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros. A recordação é amarga, mas espero sentir a tua doçura, que não engana, doçura feliz e segura; e quero recompor a minha unidade, depois dos dilaceramentos que sofri, quando me perdi em bagatelas, ao afastar-me de tua unidade”.

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

1ª.- A SUA PÁTRIA

PRÉ-HISTÓRIA AFRICANA

Antigamente, a Europa estava unida à África. De Gibraltar -sul da Espanha- se podia ir a pé até Tanger - Norte da África. A costa de uma e outra, assim como a flora e a fauna, não tinham grande diferença.

Tempos depois, no decorrer dos séculos, o mar abriu um caminho através de Gibraltar e, com a mudança que isso supõe, modificou-se o aspecto das terras, deixando de ser frescas e úmidas. O sol foi torrando-as a apareceu o atual deserto do Saara. O litoral continuou sendo fértil. Durante séculos, habitou nestas regiões um povo que, em sua maior parte, tinha olhos azuis, pele e cabelos escuros.

Historicamente não podemos precisar com exatidão quando isso aconteceu, nem quando este povo se assentou nas costas africanas. É muito provável que viessem da Europa pelo Estreito de Gibraltar. Talvez cruzassem pelas ilhas do Oeste da Itália... De qualquer maneira, eles se assentaram de modo permanente no Norte da África. Conservaram suas tradições e sua própria língua, e suportaram a dominação de sucessivas culturas. Este povo tinha o nome de “Berberes”.

Herdaram o nome de Berberes dos Romanos, que deram a algumas tribos um nome genérico, mais ou menos equivalente a “bárbaros”, embora já os conhecessem com o nome de “Afri” -os africanos- e sua terra se chamava África.

É possível que todos estes povos pertencessem ao mesmo grupo racial. No decorrer dos anos experimentaram profundas mudanças e se misturaram com seus sucessivos conquistadores e povos que chegaram até seu litoral.

Juntamente com os Berberes, existiam os Númidas -no princípio simples nômades- e os Mouros, que eram de rosto mais vermelho e escuro. Em todos eles se poderiam descobrir as marcas características dos Fenícios, Gregos, Romanos, Judeus e outros povos com os quais mantiveram contato. No entanto, apesar de todos os povos conquistadores eles conservaram substancialmente o mesmo caráter até nossos dias.

Não há estudos profundos da língua desse povo, embora se continue falando em muitas partes a dos Berberes de nossos dias. Os filólogos parecem concordar que essa língua pertence à mesma família da língua falada pelos antigos Egípcios.

PÁTRIA DE SANTO AGOSTINHO

Santo Agostinho pertencia a este povo, ou seja, era de raça Berbere. Como estrela refulgente, se levantará no norte da África e contribuirá para engrandecer a Igreja nessa região geográfica, onde o cristianismo era já florescente.

Em seu tempo, a influência dos romanos se fazia sentir mais viva, tanto na língua como no aspecto cultural e religioso.

Se, em todos os povos do norte da África, se pode afirmar que existe uma estreita relação com o meio-ambiente e o tempo dos romanos, temos que confessar que isso é muito mais exato aplicado ao caso concreto de Agostinho. Por isso, o consideramos cidadão romano.

Santo Agostinho viveu quase toda a sua vida na África; somente esteve cinco anos na Itália (Roma e Milão); Tagaste e Hipona são os dois lugares chaves na existência do grande Doutor da Igreja Universal. A partir da cidade de Hipona, ele se interessa por todas as questões de seu tempo; mantêm relações com o Oriente e Ocidente. Recebe mensageiros da Espanha e Palestina; nunca, porém, sentiu a necessidades de sair de sua pátria, nem para visitar os amigos.

ÁFRICA ROMANA

Nos finais do século IV depois de Cristo, o Norte da África estava completamente submetida à dominação romana. De fato, no ano 146 a.C., os romanos, vencedores em Cartago, organizaram lá a mais antiga de suas províncias de ultramar; depois estenderam mais e mais seus domínios.

Com muita freqüência, estes povos se expressam em grego, que era o melhor meio de ser compreendido em todo o mundo, algo assim como o que acontece com o inglês hoje em dia. Em todas as cidades de alguma importância, e, sobretudo em Cartago, o elemento grego tem uma grande influência.

No entanto, não é o grego, mas o latim, a língua da civilização e da literatura da África romana. Aqueles que acreditavam ter uma boa educação se expressavam em latim.

O norte da África era considerado como um dos principais celeiros de Roma. Por isso, foram para lá comerciantes, industriais, importadores e grandes famílias da nobreza romana. Devido a isto, o norte da África vai se latinizando pouco a pouco; debilita-se o elemento nativo e cresce o poder dos conquistadores, ou seja, o progresso da conquista é paralelo ao avanço da romanização.

Quando o cristianismo chega a África, lança suas raízes principalmente entre os latinos, inclusive com maior força que na própria Roma. Tradicionalmente, a Igreja da África é uma Igreja Latina.

ÁFRICA CRISTÃ

Não se sabe com segurança quando o Evangelho chegou pela primeira vez ao Norte da África, pois não existem documentos a respeito disso.

É provável que Cartago e as principais cidades da costa, tivessem escutado logo a mensagem de Cristo, pois já no ano 180, aparecem documentos que nos mostram a Igreja africana com um longo passado e numerosíssimo grupo de fieis:

“No século III, Cipriano era bispo de Cartago (248). Proclamou a colegialidade para lutar contra as cismas ou enfrentar-se passageiramente com Roma (cuja dignidade ele reconhecia) a propósito dos sacramentos. Morreu mártir em 258. O século IV será marcado pela figura do bispo de Hipona, Santo Agostinho. Nascido em Tagaste e batizado em Milão em 387, foi ordenado sacerdote e bispo em 394. Sua atividade de pastor e pregador será determinante para a vida das Igrejas da África do Norte, que infelizmente desapareceram depois dele” (Imagens da Fe, nº 160, p. 4)

Esta Igreja tem uma característica própria: é urbana e latina, ou seja, desenvolve-se, sobretudo nas grandes cidades, pois o elemento nativo não a deixa chegar facilmente até o campo. É latina, enquanto lança suas raízes especialmente entre gente que fala latim, mais que a língua grega. Este fenômeno se explica porque toda a sua força era trazida de Roma, onde o latim era a língua principal.

Durante os séculos III e IV a Igreja africana era muito forte e o episcopado muito bem organizado. O número dos bispos era realmente numeroso; por exemplo: no ano 220, se reúnem 90 bispos africanos para julgar um colega seu. No ano 256, com São Cipriano à frente, se reúnem 87 bispos para examinar o problema do batismo administrado pelos hereges.

No ano 335 se reúnem, em Cartago, 270 bispos donatistas e, em 394, se reúnem outros 310 na Numidia. No ano 411, numa grande conferência, se reúnem 286 bispos católicos e 297 donatistas (mais adiante veremos algo sobre eles).

Aparentemente, as cifras anteriores não têm muito interesse, mas demonstram que a Igreja africana era muito vigorosa e influente nos tempos de Santo Agostinho.

No entanto, nem tudo era cor-de-rosa; trabalhar com as massas populares nunca foi fácil, muito menos na África. Em muitas partes, elas se deixaram vencer pela cultura e o Evangelho. No norte da África, ao contrário, essas massas permaneceram rebeldes a tudo que tinha relação com a cultura romana, inclusive com o Evangelho. Se alguma vez se dobravam, era à força e aparentemente. Quando tinham oportunidade, se rebelavam e voltavam aos antigos ídolos.

Havia, certamente, muitas igrejas e uma multidão de fieis, mas também um cristianismo muito superficial. Dificilmente aceitavam a Cristo e, facilmente, o abandonavam.

A ÁFRICA NOS TEMPOS DE AGOSTINHO.

Este caráter do cristianismo africano se manifestou cedo, inclusive com cismas e heresias, como no caso dos “donatistas”, assim chamados devido a seu fundador, o bispo Donato. Como aconteceram estas coisas?

Quando morreu Mensúrio, bispo de Cartago, escolheram como sucessor o bispo Ceciliano. Mas alguns opositores não quiseram reconhecê-lo, dentre eles Donato, que era um dos bispos de Numídia. Num concílio que se realizou em Cartago -ano 312- depuseram Ceciliano. Para ocupar seu lugar escolheram a Majorino, ao qual sucedeu o próprio Donato, que organizou muito bem a oposição e deu nome à seita dos donatistas. Ensinavam, entre outras coisas, que os sacramentos administrados por sacerdotes indignos eram inválidos.

O donatismo tem muita importância na história agostiniana porque Santo Agostinho, sendo já bispo, lutou contra eles. Santo Agostinho afirmava, por exemplo, que Cristo é o autor dos sacramentos e os sacerdotes e bispos são simples ministros ou canais pelos quais a graça se comunica aos homens. Esta tem sido sempre a doutrina verdadeira da Igreja.

É nesta situação, ou seja, quando a Igreja da África se encontrava dividida, que vem ao mundo Agostinho, na pequena cidade de Tagaste, atual Souk-Ahras, na Numídia.

Leitura

AS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO

Quando se fala de Santo Agostinho, sempre se associa sua vida com o seu famoso livro autobiográfico: as “Confissões”.

Este gênero literário é famoso. Existem confissões filosóficas e confissões piedosas, como também existe uma infinidade de confissões para atrair um público ávido de sensacionalismo. Em qualquer livraria ou banca de revistas, o leitor atual, membro da sociedade de consumo, também encontra este falso alimento para aumentar a onda de erotismo que se estende pelo mundo. E compra este subgênero literário para matar o tempo.

As “Confissões” de Santo Agostinho não se parecem com este gênero de literatura fácil que se lê e joga no lixo. Não creia que você vai encontrar relatos impressionantes, cenas escabrosas, como as que se lê em alguma novela, ou algo semelhante ao estilo de uma fotonovela.

Para Agostinho, a palavra “Confissões”, mais que confessar pecados, significa “adorar a Deus”. É um verdadeiro hino de louvor de um coração arrependido. Eis suas próprias palavras: ‘Recebe, Senhor, o sacrifício destas confissões, por médio desta língua que me destes e que excitas, para que louve o teu nome... Louve-te minha alma, para que possa chegar a amar-te; que te confesse todas as tuas misericórdias e por elas te louve. Não cessa em teu louvor, nem cala teus louvores, a criação inteira; nem as cala o espírito, que fala pela boca de quem se converte a Ti...’ (Conf. V, 1, 1).

Apesar de narrar seus extravios, seus erros e seus pecados, a intenção é mostrar sua pequenez comparada com a grandeza e a misericórdia de Deus. É mais uma oração dirigida a Deus que um discurso aos homens. Continuamos com suas próprias palavras: ‘Permita-me, no entanto, falar ante tua misericórdia, a mim, que sou pó e cinza; deixa-me falar, pois falo à tua misericórdia e não a um homem escarnecedor que pode rir-se de mim. Talvez apareça risível ante teus olhos, mas Tu te voltarás a mim cheio de misericórdia’ (Conf. I, 6, 7)