Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

A HERANÇA DE SANTO AGOSTINHO

Não existem palavras mais adequadas para dar por terminada uma biografia de Santo Agostinho que aqueles com que a conclui quem foi seu amigo e confidente durante 40 anos, S. Posídio.

"Não fez nenhum testamento porque, como pobre de Deus, nada tinha a deixar.

Olhando os vindouros, mandava sempre que se guardassem com esmero toda a biblioteca da Igreja e os códices antigos.

Os bens que a Igreja possuía em propriedades ou ornamentos, tudo encomendou à fidelidade do presbítero que tinha o cuidado da sua casa.

Na sua vida e na sua morte tratou com atenção os seus parentes, religiosos ou leigos; e, se era necessário, do que sobrava, como aos outros, provia‑os, não para os enriquecer, mas para que não passassem necessidades ou para aliviá‑la.

Deixou à Igreja clero suficientíssimo e mosteiros cheios de religiosos e religiosas, com a sua devida organização, a sua biblioteca provida de seus livros e tratados e de os de outros santos; e neles se reflete a grandeza singular deste homem dado por Deus à Igreja, e ali os fiéis o encontram imortal e vivo...

E certamente nos seus escritos manifesta‑se segundo a luz da verdade que se recebe, como aquele sacerdote tão agradável e amado por Deus viveu segundo a saudável e reta fé, esperança e caridade da Igreja católica e os que lêem os seus livros acerca das coisas de Deus tiram proveito. Se bem que eu creio que, sem dúvida, poderam tirar maior proveito os que o ouviram e viram pregar na Igreja e sobretudo conheceram a sua vida exemplar entre os homens (Vida, 31).

A VELHICE SEM DESCANSO

Vim para esta cidade na

flor da minha juventude.

Então era jovem, agora sou ancião

A velhice também bateu à porta de Agostinho e ele não teve outro remédio senão deixá‑la entrar. Velhice salpicada de horas de luz e momentos de amargura. Os monges, aquilo que mais amava, de toda a sua igreja, são fonte de preocupação. Em Hipona, algum, atreveu‑se a fazer testamento, tendo anteriormente feito profissão de pobreza absoluta. Já o lembramos. Em Hadrumeto queriam tirar conclusões exageradas da sua teoria da graça. Outro mosteiro, este de monjas, após o falecimento da irmã de Agostinho, que tinha estado muito tempo à frente do mosteiro, não aceitam a nova superiora. Agostinho teve de intervir combinando caridade com firmeza. Ao mesmo tempo, tem de lamentar um engano seu. Contra o parecer de todos, nomeou bispo de Fúsala um jovem, Antonino, que depois resultou num tirano para a sua comunidade. Teve de suar para desmanchar a embrulhada e contrariar as manobras do culpado.

Mas nem tudo é amargura. Da Terra Santa acabaram de chegar os restos do mártir Santo Estevão. A África toda enche‑se de capelas em sua honra. Naqueles momentos de angústia, os pobres habitantes procuram um protetor celeste; não Romaniano, mas Estevão. Os prodígios multiplicam‑se; as curas sucedem‑se umas às outras. Agostinho entusiasma‑se e manda recolher dados sobre cada uma delas. Há que publicá‑las; há que dar‑lhes publicidade. Deus não abandona a sua Igreja, os seus filhos. Sente‑se inspirado a escrever poesia para ornamentar as paredes da capela que Hipona construiu para o seu generoso protetor.

A sua atividade intelectual não se diminui. Responde aos que procuram a sua ciência como remédio capaz de resolver todas as questões. Acaba a importante obra A Doutrina Cristã; termina a monumental Cidade de Deus; escreve um importante catálogo de heresias ‑ oitenta e oito ‑ antigas e contemporâneas, a pedido de um diácono de Cartago. Muitas delas refutou ao longo da sua vida. Agora ocupa‑se dos arianos e, sobretudo, dos pelagianos, os últimos hereges citados no catálogo. Emprega muitas horas do dia a combater Julião de Eclana. A compor a sua doutrina sobre a graça.

Não lhe chega o tempo. Deseja renunciar a muitos assuntos de administração temporal. Começam a faltar‑lhe as forças físicas. Deseja ter mais tempo livre para a meditação das Sagradas Escrituras e rever os seus escritos. Nomeia um sucessor em 426. Este será o seu substituto e levará sobre os ombros grande parte do peso da diocese. Agostinho poderá dedicar‑se aos seus afazeres. O seu nome é Heráclio, um dos clérigos do seu mosteiro, o construtor da memória de Santo Estevão.

Agostinho sabe que a morte se aproxima. Enquanto se é criança pode‑se esperar ser jovem,; depois adulto, homem maduro, por fim ancião. Mas quando se é ancião não se pode esperar nada mais que a morte. Mental e fisicamente conservou‑se ativo. Era consciente do prestígio que as suas obras tinham alcançado. Não ignorava que iam ser o alimento espiritual para os corações vindouros. Ao mesmo tempo sabia as muitas mudanças que as suas idéias tinham sofrido. "Progredindo escrevia e escrevendo progredia". O que noutros tempos tinha sido a ponta firme do seu pensamento agora achava que era erro. Os inimigos não tinham escrúpulo em servir‑se da imprecisão dos seus primeiros escritos, ou simplesmente atribuir‑lhe o que nunca tinha afirmado. Assim empreende a titânica obra de rever todos os seus escritos. Lê‑os de novo. Daqui sai a obra intitulada Revisões. Única e original, como as Confissões, Solilóquios, a Cidade de Deus. Nela indica‑nos quando foi escrita cada uma das obras, em que ocasião e com que finalidade, o que encontra que não está consoante o seu pensamento de homem já maduro; o que ele disse e o que os hereges o fazem dizer. Livro fundamental para conhecer Agostinho. A morte surpreendeu‑o sem o ter deixado acabar. Ficaram‑lhe por rever as suas cartas e os seus muitíssimos sermões e trabalhou até aos últimos momentos da sua vida. De dia compunha a resposta a Julião; de noite revia os seus escritos.

A África romana ia sucumbir. Procedentes de Espanha, atravessando o estreito de Gibraltar, tinham passado a terra africana, os vândalos capitaneados por Genserico. Uma a uma iam caindo todas as cidades. O poder romano não era capaz de lhe oferecer resistência. As cenas de horror lembravam as que Agostinho tinha ouvido contar quando do saque de Roma. Os bispos, entre eles Posídio, acorrem a Hipona. Agostinho convida‑os a não abandonarem os fiéis, de quem são pastores. Por fim, os invasores chegam a Hipona. Cercaram‑na durante quatorze meses. Após três meses, Agostinho adoece, aproveita a doença para fazer penitência. "Pondo os cadernos na parede, em frente dos olhos, dia e noite, o santo doente olhava e lia, chorando copiosamente. E, para que nada o distraísse da sua ocupação, mas uns dias antes de morrer, pediu‑nos, na nossa presença, que ninguém entrasse a vê‑lo fora das horas em que o visitavam os médicos ou lhe levavam a refeição" (Vida, 31).

Prestes a cumprir 76 anos, a 28 de Agosto de 430, entregou a sua alma a Deus. O seu coração inquieto conheceu o descanso. O seu peso, o seu amor, impelia a sua queda para o alto, para Deus. N'Ele encontrou o repouso procurado, a paz do eterno sábado.

"O corpo com o seu peso tende ao seu lugar. O peso não vai apenas para baixo, mas sim para o seu lugar. O fogo tende a subir, a pedra tende a descer. Pelos seus pesos se movem e vão ao seu lugar. O azeite derramado levanta‑se sobre a água a água derramada sobre o azeite submerge‑se debaixo dele. Pelos seus pesos se movem e vão ao seu lugar.

As coisas não bem ordenadas estão inquietas; quando se as põe em ordem, descansam.

O meu peso é o meu amor; onde quer que vá sou levado por ele. O teu dom incendeia‑nos e leva‑nos para cima; atrevemo‑nos e subimos...

Com o teu fogo atrevemo‑nos e caminhamos, porque vamos para cima, para a paz de Jerusalém; porque me ofereci quando me disseram: vamos para a Casa do Senhor. Ali nos colocará a tua boa vontade e não queremos outras coisas senão permanecer ali eternamente" (Confissões, XIII, 9, 10).

TUDO É GRAÇA

Dá‑me Senhor, o que pedes

e pede‑me o quiseres

Foi contra o pelagianismo que Agostinho travou a última e mais dura, das suas grandes polêmicas em defesa da fé da mãe Igreja. Três pessoas estão conotadas com este erro: Pelágio, de quem a heresia recebe o nome; Celéstio, que fez estalar a contenda e Julião de Eclana, o mais capaz e mais inteligente dos opositores de Agostinho, o qual continuou a polêmica, mesmo depois dos outros terem deposto as armas. Esta luta, que começou cerca do ano de 411, concluiu com a própria morte de Agostinho, quase vinte anos mais tarde. Esta surpreendeu‑o, de fato, antes de ter podido acabar uma volumosa obra, que por isso mesmo, tem por título: Obra inacabada contra Julião, bispo de Eclana. Incompleta, como está, consta de seis livros.

Se compararmos esta controvérsia com as outras grandes controvérsias: as dirigidas contra o donatismo e a contra o maniqueísmo, encontramos vários traços particulares. O primeiro, o caráter internacional por assim dizer. A disputa, que teve e sua origem em África, depressa se estendeu a Itália e até ao próprio Oriente. Fez‑se intervir o Bispo de Roma, o que nunca tinha acontecido nas contendas anteriores. Particular é também o fato de se ter levado a cabo, de forma quase exclusiva, no terreno literário, por meio de livros. Agostinho e os seus opositores conhecem‑se por notícias que outros enviam, pelos respectivos escritos, mas nunca chegaram a encontrar‑se face a face. É típico o elevado tom intelectual, o cristão mediano não estava apto a saber se existia erro e onde. O pelagianismo e a luta que se lhe seguiu foi apenas combatida por personalidades seletas; o povo cristão quase não foi posto em causa de forma direta.

Pelágio era um bom cristão, com desejos ascéticos. Aspirava ser perfeito, convencido de que podia chegar a sê‑lo. Visto que era possível, considerava‑o obrigatório, não só para si, mas para todos os cristãos. Ele propunha‑se reformar o povo crente, que se tinha relaxado um pouco nos seus costume, devido principalmente à grande multidão, aquela que, com a chegada de Constantino, se deixou batizar sem estar completamente convencida ou sem preparação suficiente.

Queria fazer do povo cristão uma comunidade fervorosa que cumprisse fielmente as leis de Deus. Deus tinha dotado o homem de liberdade; podia, portanto, cumprir livremente aquelas normas que Ele lhe exigia. Normas ou leis que se podiam conhecer claramente; não foi em vão que Deus no‑las tinha deixado escritas na Bíblia. Além disso, tem o bom exemplo de tantos santos profetas e patriarcas do Antigo Testamento. Daqui também conhece os castigos que Deus proporcionou aos que não são fiéis, o primeiro de todos, o sofrido por Adão. Pode imitar, antes de mais, o exemplo de Cristo, obediente ao Pai até à morte na Cruz. Para isso veio ao mundo: para nos dar o exemplo.

Se era isto o pensamento de Pelágio, onde está o erro, onde a heresia? Talvez não a tenhas visto, como também não se aperceberam muitos homens, incluindo bispos, do tempo de Agostinho. A ele coube‑lhe a sorte, queremos dizer, a inteligência de trazer à luz o erro de Pelágio, encoberto nas suas palavras. Não só o que expressava mas também aonde podiam levar os seus princípios e pressupostos.

Com efeito, ele viu detrás daquelas palavras que exortavam à santidade, o "inimigo da graça de Deus", a negação da mesma, o desprestigiador da obra de Cristo. Para Pelágio e seus sequazes, o homem era completamente livre, capaz de levar a cabo, por si próprio, o bem que se propusesse realizar. Nenhuma força o retraia, pelo menos interior. Admitia, no entanto, que o mau exemplo dos outros podia exercer um efeito negativo sobre nós. Por outras palavras, negava o pecado original, sim, Adão tinha pecado; mas o seu pecado não foi herdado pelos seus filhos. A eles apenas lhes legava o mau exemplo.

Compreende‑se, portanto, que negassem a necessidade absoluta do batismo para evitar as penas do inferno, ainda que fosse imprescindível para obter a glória de Deus. Nada havia no homem que tivesse de ser perdoado. Referimo‑nos às crianças porque os adultos têm, logicamente, de responder por todas as suas faltas. Concebiam o pecado como algo de superficial, uma escolha errada, que se pode apagar com outra escolha acertada, em conformidade com a vontade de Deus. Daqui outra figura de Jesus Cristo: era apenas um companheiro que nos tinha dado muito bom exemplo; um mestre que nos deu leis novas e mais perfeitas, mas não o Redentor. Qual a sua necessidade, se o próprio homem era capaz de curar os seus males? Que necessidade havia da graça? Que pouco tinha valido a morte de Cristo!

Isto não bastava a Agostinho. Tinha vivido com a experiência do pecado, da luta, da incapacidade de sobrevivência, se Deus não lhe tivesse estendido a mão. Donde provinha tal insuficiências? Deus bom não criou o homem bom? Sim, mas depois Adão pecou. Pecado gravíssimo, visto que vivia na mais completa felicidade. Ele, rico, arruinou‑se e tornou participantes da sua pobreza todos os seus descendentes, chamados a participar da sua riqueza. Todos herdamos o seu pecado. Como prova então os males que vemos à nossa volta. Todos sofremos, mesmo as crianças inocentes. Se não existisse neles um pecado, como é que Deus, que é justo, pode castigá‑los assim? Prova disso são também os vícios que nos arrastam: a inveja, o orgulho, a concupiscência, a morte, etc.

"A ser possível tentemos que os nossos irmãos não nos acusem de hereges, coisa que nós ao disputar com eles talvez pudéssemos fazer, se quiséssemos, mas no entanto evitamos. Sofra‑os ainda a piedosa Mãe (a Igreja) com as suas entranhas misericordiosas, para os sarar; guie‑os para os instruir e não os chorar mortos. Porque muito vão avançando: é demasiado, é intolerável, requer-se paciência para os agüentar. Não abusem da paciência da Igreja e corrijam‑se. Como amigos os exortamos, não porfiamos com eles como inimigos. Murmuram contra nós, suportamo‑lo. Já sei que me fizeram alvo das suas iras; sofro‑o. Mas não vão contra o amor das divinas letras, contra a regra da fé; não contradigam a verdade. Não ataquem a Igreja santa, que todos os dias com tanta solicitude se interessa pela remissão do pecado original nas crianças. É uma prática de muito bons fundamentos. Deve‑se suportar ao contendor que erre noutras matérias da Igreja; então o erro é tolerável mas este não deve chegar até minar o próprio fundamento da Igreja. Não chegou ainda a hora oportuna; talvez a nossa paciência ainda não seja censurável; mas também devemos temer que se nos acuse de negligência. Basta isto para a vossa caridade; vós que os conheceis tratai‑os como amigos, como irmãos, pacificamente, com amor e compaixão. Fazei quanto vos sugerir a vossa caridade para ganhá‑los, porque depois não haverá ímpios a quem amar" (Sermão, 294, 21).

A liberdade ficou recortada, limitada. Dentro do homem há algo que o arrasta para o mal. Não se trata apenas de mau exemplo de Adão pecador; mais ainda, dele recebemos uma debilidade interior, que nos torna impossível cumprir, por nós próprios, a lei do Senhor. A vontade não é suficiente, tem de ser empurrada. Não chega que Deus nos dê a conhecer as suas leis; necessitamos da sua força para as cumprir. Nem são suficientes os bons exemplos. Os maus arrastam‑nos tanto ou mais. Era preciso a vinda de Cristo, para que desse remédio à nossa enfermidade. Ele traz‑nos a graça que nos cura, que nos sara, que ajuda. Ele traz‑nos a força: "Vós, diz Agostinho aos pelagianos, enumerais muitos caminhos através dos quais Deus nos socorre, os mandamentos das Sagradas Escrituras, as bênçãos, as curas, mortificações, incitações e inspirações; mas que Ele nos dá o amor e que desse modo nos ajuda, isso não o dizeis " (Carta a Julião, III, 106).

Participamos da redenção de Cristo através do batismo; por isso é necessário. O batismo cura‑nos a ferida causada por Adão, mas deixa‑nos a fraqueza. · cura seguirá um longo período de convalescença que durará até ao fim da nossa existência terrena. Também durante este período necessitamos dos cuidados de Cristo médico. Necessitamos da sua ajuda. Sem Ele nada podemos fazer. Todos os nossos tempos são tempos de Cristo e nossos. "Quando Deus coroa os nossos méritos, coroa os seus dons".

Agostinho chegou até ao limite das suas forças na sua luta contra os "inimigos da graça de Deus". Eles não negavam a graça, mas sim a necessidade absoluta da mesma. E em defesa de tal necessidade Agostinho não cessou de agir: assistiu a concílios, escreveu cartas, fez intervir o Papa e acima de tudo refutou as más doutrinas em inúmeros livros. Ele descobriu a heresia e refutou com tanta força, com tanto excesso de trabalho e especulação, com tão profundo estudo da Escritura e da tradição cristã, que com razão lhe é dado o título de DOUTOR DA GRAÇA, que vai sempre junto com o outro de DOUTOR DA HUMILDADE. Que é o homem sem a graça de Deus?

No entanto, a vitória não foi fácil. Os inimigos tinham nível intelectual, apesar de a alguns, em certas ocasiões, lhes faltar nível moral. ·s razões especulativas juntavam‑se até os insultos. Mais de uma ver Agostinho perdeu a serenidade. Havia coisas pelas quais não podia passar. Por exemplo, que se metessem com a sua defunta mãe, chamando‑lhe "bêbeda", mal da infância, do qual a graça do Senhor a tinha livrado. A tenacidade de Agostinho fez com que fosse temido pelos seus contrários. E também odiado. É o maior elogio que lhe pode fazer São Jerónimo: "Para a frente! És conhecido em todo o mundo. Os católicos veneram‑te e olham‑te como a um novo fundador da fé e, o que é sinal de maior glória, todos os hereges te detestam" (Carta, 195).

Recordamos, entre as obras que Agostinho escreveu contra os pelagianos, as seguintes:

As conseqüências e perdão dos pecados

O Espírito e a letra

A natureza e a graça

O matrimônio e a concupiscência

Réplica a Julião (seis livros)

A correção e a graça

A predestinação dos santos

O dom da perseverança

ROMA, DESPERTA!

Dois amores edificaram

duas cidades

Pouco a pouco, o cristianismo assenhoreou‑se dos corações que antes davam abrigo aos falsos deuses. Os que, anteriormente, acorriam aos templos pagãos, agrupavam‑se agora nas Igrejas cristãs. Quem antes acudia a Esculápio procurando a saúde do corpo, agora recorre a Cristo, médico dos corpos e das almas. Os heróis do paganismo são substituídos pelos mártires cristãos. Na verdade, "o sangue dos mártires foi semente de cristãos" (Tertuliano).

No entanto, o paganismo não havia desaparecido completamente. Em muitos corações albergava‑se com a mesma força que em séculos passados. Era a herança dos pais, herança sacrossanta que era preciso conservar. Acaso Roma não chegou à grandeza quando prestava culto àqueles deuses? Por quê abandoná‑los agora?

Em outros espíritos o paganismo continuava vivo numa multiplicidade de formas diferentes. Tinham abraçado a fé cristã que não tinha criado raízes. Talvez porque era moda fazer‑se cristão, talvez por oportunismo; ou ainda para ter em Cristo mais um deus que o possa livrar de apuros. Possivelmente para dar gosto a um amigo. Mas, no fundo do seu íntimo, continuavam pagãos. Pagão o seu modo de pensar; pagã as esperanças com que se aproximavam de Cristo, pagãos sobretudo os seus hábitos. No máximo, podia perceber‑se que eram cristãos nos dias de festa; então iam à igreja para ouvir o que dizia o bispo, bater no peito quando ouviam a palavra "confesso", a reconhecerem‑se pecadores. Nos outros dias eram pagãos; não se lembravam da Igreja nem do próprio bispo. Interessava‑lhes mais o teatro e os cômicos. Podiam pensar que até eram cristãos, que acreditavam em Cristo com o fim de obter a vida eterna, enquanto que para assuntos desta terra continuavam a sacrificar aos deuses de sempre. Na melhor das hipóteses podemos pensar que eram cristãos quando tudo corria bem. Quando alguma coisa começava a entortar‑se, renegavam a Cristo e voltavam para os outros deuses a ver se as coisas melhoravam.

Contra um e outro tipo de pagãos, Agostinho teve de lutar toda a sua vida de pastor. É interessante ler os seus sermões. Defende‑se, ou melhor, defende a religião cristã contra os ataques de uns e outros; contra as palavras dos primeiros e contra a vida dos segundos. Mostra‑lhes as suas inconseqüências, a falta de lógica; o ridículo dos seus erros. No entanto, teve de acontecer um fato novo que obrigaria Agostinho a atuar com ainda mais energia.

24 de Agosto do ano de 410. Roma, dominadora do mundo durante séculos, a que tinha imposto a sua lei a quase todas as nações, cai em poder do inimigo. A que foi, durante tantos anos, invicta e invencível, foi saqueada pelas tropas do godo Alarico. As notícias, que chegam a Hipona trazida pelos que conseguiram escapar, são horrendas. Tudo foi destruído. Incêndios, violações, sangue que corre pelas ruas. Todos, cristãos e pagãos, estremecem perante tal notícia. Os pagãos apontavam o dedo aos cristãos como sendo os responsáveis da catástrofe: o abandono dos antigos deuses tinha deixado a cidade sem os seus protetores e defensores.

Muitos cristãos interrogavam‑se: onde estava o reflorescimento que se esperava para o império, agora que os habitantes, na sua maioria, adoravam o Deus verdadeiro. Até os imperadores se tinham submetido a Cristo e levavam a sua cruz adiante. Talvez a sua fé começasse a vacilar. Ainda os mais seguros das crenças cristãs se interrogavam sobre o significado de tal acontecimento. Que tinha querido Deus dizer por meio daquela página tão negra? Quem seria capaz de ler entre o pó das ruínas e o sangue dos massacres que ali tiveram lugar? Não era ocasião para voltar aos costumes dos pais e restabelecer o culto das antigas divindades?

Tal foi a ocasião que levou Agostinho a decidir‑se a escrever uma obra que desde há algum tempo estava projetando, a mais monumental de todas as que compôs: A Cidade de Deus. Nada menos que 12 livros, em cuja composição empregou 24 anos. Através das suas muitas páginas quer dar resposta cabal a pagãos e a cristãos. A estes recorda a fugacidade dos bens deste mundo, que não é pela felicidade nesta terra que servem a Cristo, mas sim pela do Além. Na fé cristã o sofrimento não está desprovido de valor: ressalta o seu valor purificador. Haja o que houver, o cristão nada deve temer porque a Providência rege os destinos da história. Deus tira o bem mesmo dos males. "Escreve direito por linhas tortas" (Santa Teresa).

Aos pagãos recorda que se muitos salvaram as suas vidas foi precisamente por se terem refugiado em templos cristãos que os saqueadores não se atreveram a destruir. A causa da destruição hão de procurá‑la nos pecados dos homens. Mais ainda, a clemência de Deus temperou a destruição. Mas acima de tudo, põe‑lhe ante os olhos a vaidade do culto dos deuses, tanto para a vida presente como para a futura. Passa em revista a mitologia romana para mostrar os absurdos e contradições que ali encontra. A grandeza de Roma não foi obra de tais divindades, que não existem, ou não foram outra coisa que homens divinizados depois de mortos. De modo especial aponta a sua lança contra o império romano, expressão da soberba e da vontade de domínio sobre os outros. A sua própria história começou com um assassinato: com a morte de Remo por parte de seu irmão Rómulo. No entanto, nem tudo é condenação. Agostinho reconhece as muitas virtudes que os romanos possuíram, virtudes que só seriam úteis aos habitantes da cidade de Deus. Pois, de que lhes serviram? Tal é o assunto dos dez primeiros livros.

Os doze restantes apresentam uma concepção grandiosa de toda a história da humanidade. Dado o delito de Caím dando a morte a seu irmão Abel, nos primórdios da história, todos os homens têm sido consciente ou inconscientemente, moradores de uma das duas cidades, a celeste ou a terrena, as únicas possíveis. Todos militaram sob as ordens de um dos estrategas Deus ou Satanás, defendendo as respectivas bandeiras.

"Dois amores fundaram duas cidades, a saber: o amor próprio até ao desprezo de Deus, a terrena, e o amor de Deus até ao desprezo de si próprio, a celestial. A primeira gloria‑se em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela procura a glória dos homens e a esta tem por máxima glória a Deus, testemunho da sua consciência. Aquela incha‑se na sua glória e esta diz a seu Deus: Tu és a minha glória. Naquela os seus príncipes e nações sujeitadas, vêm‑se sob o jugo da concupiscência de domínio, e nesta servem‑se em mútua caridade, os governantes aconselhando e os súbditos obedecendo..." (A Cidade de Deus, XIV, 28).

Agostinho dedica quatro livros a expor a origem de ambas as cidades, quatro a seu desenvolvimento futuro e os quatro últimos, ao seu destino. A cidade terrena teve origem em Caím que, por inveja, matou o seu irmão e foi‑se prolongando em todos os impérios pagãos que se foram sucedendo até à chegada do império romano que significa a sua mais perfeita expressão. Ao contrário, a cidade de Deus teve a sua origem em Abel e dela fazem parte os profetas, patriarcas e os santos do povo de Israel. Mas a sua plena instituição só teve lugar com a vinda de Cristo e a fundação da sua Igreja. A partir deste momento a cidade do diabo e a Cidade de Deus estão misturadas, só Deus sabe quem pertence a uma e a outra. Apenas no fim dos tempos a separação será definitiva e total. Enquanto as riquezas de Satanás serão condenadas a arder com ele no fogo eterno do inferno, os que militavam sob a bandeira de Deus irão gozar d'Ele por toda a eternidade. "Ali descansaremos e veremos; veremos e amaremos; amaremos e louvaremos. Esta é a essência deste fim sem fim e que fim mais vosso do que chegar ao reino que não terá fim!"(XXII, 30, 5: conclusão da obra).

A Cidade de Deus representa uma enciclopédia da cultura antiga. · seriedade das acusações, Agostinho respondeu com a seriedade da defesa. Leu, documentou‑se, refletiu, fez tudo o que estava sob seu alcance para dar uma resposta total e inapelável aos que acusavam a religião cristã. Todos os ramos da ciência antiga serviram para o seu fim. Aos que não podia convencer pela Escritura, por lhes faltar a fé nela, intenta, com enorme gasto de energia e de perspicácia, convencê‑los a partir dos seus próprios instrumentos, das suas próprias crenças.

A Cidade de Deus foi o livro que configurou toda a Idade Média. Os estudos atuais sobre esta obra agostiniana contam‑se por milhares.

"Oh nobre natureza humana! Escolhe agora o teu caminho a fim de que possas ter uma glória verdadeira, não em ti, mas sim em Deus. Um tempo não te faltou a verdadeira religião a escolher. Acorda! É dia! Acorda como acordaram alguns dos teus, de cuja virtude e de cujos sofrimentos pela fé nos gloriamos. Esses, combatendo contra os irreconciliáveis poderes hostis, vencendo‑os com a sua morte valorosa e com o seu sangue, deram‑nos esta prática.

Nós convidamos‑te, exortamos‑te a vir para esta pátria, para que te contes entre o número de cidadãos cujo asilo é, de certo modo, a verdadeira remissão dos pecados. Não prestes ouvidos aos que de ti degeneraram. São detratores de Cristo e dos cristãos e acusadores destes tempos como calamitosos. É que procuram tempos em que a vida não seja pacifica mas sim bem segura a malícia. Um tempo semelhante nunca tu o quiseste, nem mesmo para a tua pátria terrena. Agora vira‑te para a pátria celeste. Por ela trabalharás muito pouco e nela terás um reino eterno e verdadeiro... Não andes à caça de deuses falsos e falaciosos! Despreza‑os e arroja‑os para longe, elevando‑te à verdadeira liberdade! Não são deuses, são espíritos malignos, para os quais a tua felicidade é um suplício" (Cidade de Deus, II, 29, 1‑2).

REPARTINDO O PÃO DA PALAVRA

Vejo‑me forçado a pregar;

se infondo terror é porque eu estou aterrorizado

A função primordial de todos os bispos na Igreja antiga era sempre a pregação. Agostinho foi também, e tinha disso consciência, antes de mais, um administrador da palavra de Deus. Os séculos quiseram que chegassem até nós cerca de 1000 sermões do santo bispo. Tal número representa apenas uma mínima parte de quanto na realidade pregou. Exerceu tal ministério sendo simples sacerdote. Nomeado bispo de Hipona já nunca mais pára.

Os fiéis de Hipona foram os seus ouvintes privilegiados. Muito afortunados foram também os de Cartago onde Agostinho passou grandes temporadas da sua vida. Escutaram‑no também os cristãos de todas e cada uma das cidades por onde passou nas suas inumeráveis viagens. Em qualquer lugar onde passava, ali devia repartir o pão da palavra de Deus aos que estavam ansiosos por ouvi‑lo. Em mais de uma ocasião se queixou que nunca tinha tido a dita de escutar, sempre lhe tinha cabido falar.

Ao contrário dos pagãos da sua época, Agostinho não procurava os aplausos, apesar de lhe agradarem. A sua intenção não era declamar um belo, elegante e bem composto discurso, conforme as normas da retórica clássica. Procurar, antes de mais ensinar e instruir aquela multidão de analfabetos que eram os seus fiéis. Não dispondo de livros, por um lado, supérfluos para muitos, que não sabiam ler, o único meio de instrução religiosa ao seu alcance, encontravam‑no na palavra do bispo. Não tem nada de estranho que passem horas e horas de pé, segundo o costume, interessados nas palavras de Agostinho, cheios de admiração e encanto. Mais de uma vez, depois de um sermão extremamente comprido, as pessoas pediram‑lhe que continuasse. Agostinho mais cansado que eles, apesar de estar sentado ‑ ao contrário dos nossos tempos ‑ teve de lhes dizer que não. "Mais vale que digirais o que já vos dei e o assimileis devidamente" (Sermões, 34, 14).

Ensinar e também comover; mover aqueles corações ardentes e inconstantes. Instá‑los continuamente para que vivam em conformidade com a palavra de que se alimentam; conforme aquilo que crêem. Insistir com teimosia, para que cumpram os preceitos do Senhor, para que sejam cristãos de verdade. Por vezes, até se sentiam incomodados pela sua insistência. Ele encontrava sempre resposta apropriada: "Se não quereis que vos mace mais, não erreis, não sigais pelo caminho da perdição" (Sermões, 46, 14). Agostinho era exigente porque sabia que Deus também o era: "Quem te fez, exige tudo de ti" (Sermões, 34, 7). Não queria que nenhum deles perecesse, desejava tê‑los a todos ao seu lado no reino do Pai: "Não quero salvar‑me se não for convosco" (Sermões, 17, 2).

Ensinar, comover e agradar. Agradar, não como fim em si mesmo, mas como meio para melhor conseguir os outros dois objetivos. Agostinho dispunha de recursos para tal. A ótima formação que tinha estava disposta para ser empregue ao serviço do povo de Deus. A sua linguagem é viva, por vezes florida, elegante apesar de não desdenhar o uso de palavras que não se encontram hoje no dicionário, mas que aquelas pessoas simples entendiam muito bem. Os jogos de palavras, as comparações, as antíteses, todas as belezas que tinha aprendido nos anos de estudo aparecem ao serviço da verdade e para deleite daquele povo que, como todos os antigos, sabia apreciar melhor que nós hoje, o valor da palavra falada. O nosso pregador sabia encontrar o estilo adequado para cada assunto tratado. Sabia ser sublime, menos sublime e até humilde, se o assunto o requeria. Ninguém disputou a Agostinho o seu valor como orador. Alguém afirmava nunca ter visto nele um cristão, mas sim, sempre, um orador nato e até, para dizê‑lo assim, um deus da eloquência. Esse alguém era maniqueu.

A beleza dos seus sermões nunca se tornou incompreensível. Agostinho soube como ninguém utilizar a sua arte, em prol da simplicidade e da fácil compreensão. Os seus sermões podiam ser compreendidos por todos, mesmo quando falava dos mais altos mistérios da fé cristã. Ainda nos maravilhamos com a profundidade e clareza que se unem nas suas palavras. Temas reservados hoje às aulas das universidades são expostos de forma compreensível para um público de ignorantes. Pode afirmar‑se que os sermões de Agostinho são, antes de mais, sermões populares. Agostinho não costumava prepará‑los antes, por escrito, bastava‑lhe a sua meditação habitual sobre as verdades cristãs e a arte da palavra que fluía da sua língua.

Os sermões do bispo de Hipona são um diálogo com o público, ainda que só ele fale. Diálogo com os ouvintes, tocando as cordas dos seus sentimentos, ânsias, preocupações e desejos. Às vezes, o diálogo faz‑se mais palpável; os fiéis intervêm ativamente, mas não com palavras, mas com lágrimas, golpes de peito, com gritos ou com aplausos. Com freqüência interrompem‑no; quando encontra uma expressão feliz, desentranha algum mistério, lhes toca alguma fibra do seu coração demasiado sensível ou lhes fala de um tema que os apaixona. Agostinho não pode deixar de responder a tais aplausos. Aqui está uma de tantas respostas: "Gosto dos aplausos, é humano e não seria honesto se o negasse. Mas não louvores de homens que levam má vida, isso infunde‑me horror e aborreço‑o. Dá‑me desgosto e não alegria... Penso no peso das minhas responsabilidades pois também dos vossos aplausos tenho de dar contas. Louvado sou‑o sempre, mas o que preocupa é como vivem os que me louvam" (Sermões, 339, 1). É um caso excepcional de compenetração entre um povo e o seu bispo.

Os temas da sua pregação era inúmeros: as virtudes cristãs; o heroísmo e exemplo dos mártires; as solenidades do ano litúrgico; qualquer versículo da Bíblia eram temas suficiente para um longo sermão a Escritura abastecia Agostinho mesmo quando exortava à prática das virtudes ou exaltava um mártir ou celebrava um mistério do Senhor. Queria alimentar as suas ovelhas com a sua própria palavra. Não tinha à sua disposição a palavra de Deus? Esta e só esta, pretenderá transmitir aos seus filhos.

Objeto predileto desta atividade foram os pequenos, as crianças na fé: os catecúmenos, os quais se preparavam para receber o batismo. Ele instruía‑os durante os compridos dias da quaresma. Explicava‑lhes os artigos da fé, o credo que tinham de aprender de cor antes de serem batizados. Destas pregações aos catecúmenos saíram os mais formosos comentários ao Pai Nosso que igualmente tinham de aprender de cor antes de serem iluminados pela água batismal na mais sagrada de todas as noites: a noite de Páscoa. Através dos seus sermões poderem perceber ainda quão difícil se tornava para muitos aprender as poucas linhas do Credo ou do Pai Nosso. Ele exortava‑os e dava‑lhes normas sobre a maneira de proceder para que não se lhes esquecesse.

Lendo as suas homilias revive‑se um ambiente totalmente familiar. Era também muito importante o modo como se deviam comportar uma vez que já eram plenamente cristãos: o que deviam fazer, o que deviam evitar quando já pertenciam à Igreja de Cristo: "Agora que sois membros de Cristo, exorto‑vos e aviso‑vos. Temo por vós e não tanto por causa dos (maus) cristãos. Escolhei vós no povo de Deus a quem ides imitar" (Sermões, 224,1).

No entanto, não lhe era agradável "Ter que pregar, recriminar, admoestar, sentir‑me responsável de cada um de vós; isto é um fardo pesado, um grande peso para mim, uma dura fadiga" (Sermões, 339,4). A palavra de Deus atava‑o; nada dela podia deixar no esquecimento. Mesmo o que não agradava aos seus ouvintes tinha que proclamá‑lo e com maior energia.

Fruto da sua pregação, além dos Sermões, são os

Comentários aos Salmos

Comentários ao Evangelho de S. João

Comentários à 1ª Carta de S. João.

O GOZO É COMUM

A Igreja começa a levantar a cabeça

Agostinho "ensinava e pregava, em privado e publicamente, a palavra da salvação. Cheio de confiança combatia as heresias de África, sobretudo os donatistas, maniqueus e pagãos, com livros ou conferências improvisadas. Os católicos sentiam‑se cheios de admiração e louvores e, onde lhes era possível, divulgavam‑no aos quatro ventos.

Com a ajuda, pois, do Senhor, a Igreja de África que desde há muito tempo jazia reduzida, humilhada e oprimida pela violência dos hereges, sobretudo dos donatistas, que rebatizavam a maioria dos africanos, começou a levantar a cabeça.

Estes livros e tratados multiplicavam‑se por graça admirável de Deus. A abundância dos seus argumentos e a autoridade dos textos bíblicos que citava, fazia com que os próprios hereges corressem junto com os católicos para, cheios de entusiasmo, o ouvirem. Os que queriam e podiam, com a ajuda de estenógrafos, tomavam apontamentos do que dizia. Deste modo, a sua preclara doutrina e a suave obra de Cristo estendeu‑se e manifestou‑se por toda a África, alegrando‑se também a Igreja do outro lado do mar, assim que lhe chegava a notícia. Pois, assim como quando padece um membro, todos os membros se compadecem, também quando um é glorificado, todos os outros participam da sua alegria" (Vida, 7).

O que Agostinho significou para a Igreja africana fica recolhido neste texto de S. Posídio. Antes de mais, deu‑lhe confiança em si própria, como primeiro passo para um novo ressurgimento.

O MISTÉRIO DE DEUS

Quem isto ler, se tem a certeza, avance comigo;

indague comigo, se duvida: volte a mim,

se reconhecer o seu erro e endireite os meus passos quando me extravie

A maior parte da obras de Santo Agostinho tiveram a sua origem na vida da Igreja. Defesa da fé, refutação dos erros dos hereges, ensino dos fiéis, exortação aos indecisos, condescendência ao amor que a todos devia; estavam sempre ao serviço da mãe Igreja.

Não obstante, Agostinho amadurecia projetos no seu coração. Um deles, O Tratado sobre a Santíssima Trindade, o De Trinitate. Uma da poucas obras agostinianas escrita por necessidade interior do santo, sem causa exterior imediata que o impulsionasse a fazê‑lo. A obra era grandiosa na sua concepção e foi‑o na sua realização. Consta de 15 livros. Empregou mais de 20 anos na sua composição. "Comecei‑os na minha juventude e conclui‑os sendo já velho." (Carta, 174). O tempo escasseava. Outras necessidades urgentes da Igreja obrigavam‑no a interromper continuamente o trabalho. Sobre o assunto já se tinha escrito muito, mas quase tudo em grego, língua que ele não dominava. As dificuldades aumentavam ao tentar encontrar os códices. A obra tinha, portanto, de amadurecer à base do tempo, da meditação. Sem dúvida a mais profunda de quantas escreveu o santo, revela a sua enorme capacidade de reflexão e especulação.

Como todos os seus escritos, também este gozou de uma aceitação sem limites. Compreende‑se. A sua fama tinha ultrapassado as estreitas fronteiras da sua diocese; tinha‑se estendido por toda a África e atravessado o mar. Os seus admiradores mostraram‑se impacientes. Até conseguiram roubar‑lhe o manuscrito antes de ele o ter completado e revisto. Gesto de admiração que não agradou muito a Agostinho que prometeu deixá‑la incompleta. Mas ele não era pessoa para cumprir promessas nascidas de um impulso momentâneo. Bastou que os amigos lhe pedissem a conclusão do tratado para que não soubesse recusar. Assim concluiu a tarefa.

Esta obra foi sem dúvida o maior monumento que Agostinho levantou a Deus: Deus Uno e Trino. Unidade de essência e Trindade de Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Cada uma das Pessoas é Deus e no entanto não existe mais que um só Deus. Assim aparece claramente nas Sagradas Escrituras, a razão humana pode chegar a vislumbrá‑lo. Trindade que deixa vestígios da sua presença em toda a criação; de modo especial no homem, especialmente nas suas partes superiores: memória, inteligência e vontade. Trindade sempre presente onde há amor. Isto não seria possível sem um que ama, sem algo amado e sem o próprio amor. Não é Deus amor?

Deste modo Agostinho apresenta a resposta mais completa e harmônica ao Arianismo. Doutrina herética que durante o século anterior tinha atormentado a Igreja, negando o dogma mais intocável que havia: o da Santíssima Trindade. Jesus ‑ dizia ‑ não foi filho natural de Deus; foi‑o como os outros homens, por adoção. Só o Pai é Deus; o Filho e o Espírito Santo são as mais excelentes das criaturas, mas criaturas apenas.

A luta, no entanto, teve de prosseguir. O santo gasta engenho e agudeza, a par de um conhecimento profundo da Palavra de Deus, para levá‑los à verdadeira fé ou, pelo menos, para impedir que os que não estavam contagiados se manchassem com o lodo do erro. Na época de Agostinho o arianismo ainda não estava muito arreigado em África, o que eqüivale a dizer que não se tinha implantado. Afirmava‑se com a chegada dos vândalos. No entanto, nos últimos anos da sua vida teve de pôr‑se a escrever para sair ao encontro das afirmações de alguns arianos, não duvidando em desafiá‑los para debates públicos, na presença de pessoas que escreviam o que se dizia. Coisa que os hereges nem sempre achavam do seu agrado, ao ficar escrito o que afirmavam, perdiam a liberdade de mentir e declararem‑se vencedores, quando a realidade os declarava derrotados.

A obra de Agostinho é um esforço gigantesco para compreender o que já crê. A fé é o princípio, a compreensão é a meta aonde pretende chegar: "Crê para que possas entender". A fé é o degrau para chegar ao andar superior onde é possível conhecer o mistério íntimo de Deus. Esse Deus que invoca, ao qual dá graças e pede perdão nas Confissões; na Cidade de Deus, o Deus, meta e satisfação das aspirações do homem; de tudo que se encontre insatisfeito, quer dizer de todos; simplesmente, Deus.

"Senhor meu e Deus meu, minha única esperança, ouve‑me para que não sucumba no desalento e deixe de te procurar. Anseie sempre pelo teu rosto com ardor. Dá‑me forças para a procura. Tu que fizeste que te encontrasse e me tens dado esperanças de um conhecimento mais perfeito. Diante de ti está a minha ciência e a minha ignorância; se me abres, recebe quem entra; se me fechas, abre ao que chama. Faz que me lembre de ti, te compreenda e te ame. Aumenta em mim estes dons até á minha completa reforma" (conclusão da obra).