Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

ROMA, DESPERTA!

Dois amores edificaram

duas cidades

Pouco a pouco, o cristianismo assenhoreou‑se dos corações que antes davam abrigo aos falsos deuses. Os que, anteriormente, acorriam aos templos pagãos, agrupavam‑se agora nas Igrejas cristãs. Quem antes acudia a Esculápio procurando a saúde do corpo, agora recorre a Cristo, médico dos corpos e das almas. Os heróis do paganismo são substituídos pelos mártires cristãos. Na verdade, "o sangue dos mártires foi semente de cristãos" (Tertuliano).

No entanto, o paganismo não havia desaparecido completamente. Em muitos corações albergava‑se com a mesma força que em séculos passados. Era a herança dos pais, herança sacrossanta que era preciso conservar. Acaso Roma não chegou à grandeza quando prestava culto àqueles deuses? Por quê abandoná‑los agora?

Em outros espíritos o paganismo continuava vivo numa multiplicidade de formas diferentes. Tinham abraçado a fé cristã que não tinha criado raízes. Talvez porque era moda fazer‑se cristão, talvez por oportunismo; ou ainda para ter em Cristo mais um deus que o possa livrar de apuros. Possivelmente para dar gosto a um amigo. Mas, no fundo do seu íntimo, continuavam pagãos. Pagão o seu modo de pensar; pagã as esperanças com que se aproximavam de Cristo, pagãos sobretudo os seus hábitos. No máximo, podia perceber‑se que eram cristãos nos dias de festa; então iam à igreja para ouvir o que dizia o bispo, bater no peito quando ouviam a palavra "confesso", a reconhecerem‑se pecadores. Nos outros dias eram pagãos; não se lembravam da Igreja nem do próprio bispo. Interessava‑lhes mais o teatro e os cômicos. Podiam pensar que até eram cristãos, que acreditavam em Cristo com o fim de obter a vida eterna, enquanto que para assuntos desta terra continuavam a sacrificar aos deuses de sempre. Na melhor das hipóteses podemos pensar que eram cristãos quando tudo corria bem. Quando alguma coisa começava a entortar‑se, renegavam a Cristo e voltavam para os outros deuses a ver se as coisas melhoravam.

Contra um e outro tipo de pagãos, Agostinho teve de lutar toda a sua vida de pastor. É interessante ler os seus sermões. Defende‑se, ou melhor, defende a religião cristã contra os ataques de uns e outros; contra as palavras dos primeiros e contra a vida dos segundos. Mostra‑lhes as suas inconseqüências, a falta de lógica; o ridículo dos seus erros. No entanto, teve de acontecer um fato novo que obrigaria Agostinho a atuar com ainda mais energia.

24 de Agosto do ano de 410. Roma, dominadora do mundo durante séculos, a que tinha imposto a sua lei a quase todas as nações, cai em poder do inimigo. A que foi, durante tantos anos, invicta e invencível, foi saqueada pelas tropas do godo Alarico. As notícias, que chegam a Hipona trazida pelos que conseguiram escapar, são horrendas. Tudo foi destruído. Incêndios, violações, sangue que corre pelas ruas. Todos, cristãos e pagãos, estremecem perante tal notícia. Os pagãos apontavam o dedo aos cristãos como sendo os responsáveis da catástrofe: o abandono dos antigos deuses tinha deixado a cidade sem os seus protetores e defensores.

Muitos cristãos interrogavam‑se: onde estava o reflorescimento que se esperava para o império, agora que os habitantes, na sua maioria, adoravam o Deus verdadeiro. Até os imperadores se tinham submetido a Cristo e levavam a sua cruz adiante. Talvez a sua fé começasse a vacilar. Ainda os mais seguros das crenças cristãs se interrogavam sobre o significado de tal acontecimento. Que tinha querido Deus dizer por meio daquela página tão negra? Quem seria capaz de ler entre o pó das ruínas e o sangue dos massacres que ali tiveram lugar? Não era ocasião para voltar aos costumes dos pais e restabelecer o culto das antigas divindades?

Tal foi a ocasião que levou Agostinho a decidir‑se a escrever uma obra que desde há algum tempo estava projetando, a mais monumental de todas as que compôs: A Cidade de Deus. Nada menos que 12 livros, em cuja composição empregou 24 anos. Através das suas muitas páginas quer dar resposta cabal a pagãos e a cristãos. A estes recorda a fugacidade dos bens deste mundo, que não é pela felicidade nesta terra que servem a Cristo, mas sim pela do Além. Na fé cristã o sofrimento não está desprovido de valor: ressalta o seu valor purificador. Haja o que houver, o cristão nada deve temer porque a Providência rege os destinos da história. Deus tira o bem mesmo dos males. "Escreve direito por linhas tortas" (Santa Teresa).

Aos pagãos recorda que se muitos salvaram as suas vidas foi precisamente por se terem refugiado em templos cristãos que os saqueadores não se atreveram a destruir. A causa da destruição hão de procurá‑la nos pecados dos homens. Mais ainda, a clemência de Deus temperou a destruição. Mas acima de tudo, põe‑lhe ante os olhos a vaidade do culto dos deuses, tanto para a vida presente como para a futura. Passa em revista a mitologia romana para mostrar os absurdos e contradições que ali encontra. A grandeza de Roma não foi obra de tais divindades, que não existem, ou não foram outra coisa que homens divinizados depois de mortos. De modo especial aponta a sua lança contra o império romano, expressão da soberba e da vontade de domínio sobre os outros. A sua própria história começou com um assassinato: com a morte de Remo por parte de seu irmão Rómulo. No entanto, nem tudo é condenação. Agostinho reconhece as muitas virtudes que os romanos possuíram, virtudes que só seriam úteis aos habitantes da cidade de Deus. Pois, de que lhes serviram? Tal é o assunto dos dez primeiros livros.

Os doze restantes apresentam uma concepção grandiosa de toda a história da humanidade. Dado o delito de Caím dando a morte a seu irmão Abel, nos primórdios da história, todos os homens têm sido consciente ou inconscientemente, moradores de uma das duas cidades, a celeste ou a terrena, as únicas possíveis. Todos militaram sob as ordens de um dos estrategas Deus ou Satanás, defendendo as respectivas bandeiras.

"Dois amores fundaram duas cidades, a saber: o amor próprio até ao desprezo de Deus, a terrena, e o amor de Deus até ao desprezo de si próprio, a celestial. A primeira gloria‑se em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela procura a glória dos homens e a esta tem por máxima glória a Deus, testemunho da sua consciência. Aquela incha‑se na sua glória e esta diz a seu Deus: Tu és a minha glória. Naquela os seus príncipes e nações sujeitadas, vêm‑se sob o jugo da concupiscência de domínio, e nesta servem‑se em mútua caridade, os governantes aconselhando e os súbditos obedecendo..." (A Cidade de Deus, XIV, 28).

Agostinho dedica quatro livros a expor a origem de ambas as cidades, quatro a seu desenvolvimento futuro e os quatro últimos, ao seu destino. A cidade terrena teve origem em Caím que, por inveja, matou o seu irmão e foi‑se prolongando em todos os impérios pagãos que se foram sucedendo até à chegada do império romano que significa a sua mais perfeita expressão. Ao contrário, a cidade de Deus teve a sua origem em Abel e dela fazem parte os profetas, patriarcas e os santos do povo de Israel. Mas a sua plena instituição só teve lugar com a vinda de Cristo e a fundação da sua Igreja. A partir deste momento a cidade do diabo e a Cidade de Deus estão misturadas, só Deus sabe quem pertence a uma e a outra. Apenas no fim dos tempos a separação será definitiva e total. Enquanto as riquezas de Satanás serão condenadas a arder com ele no fogo eterno do inferno, os que militavam sob a bandeira de Deus irão gozar d'Ele por toda a eternidade. "Ali descansaremos e veremos; veremos e amaremos; amaremos e louvaremos. Esta é a essência deste fim sem fim e que fim mais vosso do que chegar ao reino que não terá fim!"(XXII, 30, 5: conclusão da obra).

A Cidade de Deus representa uma enciclopédia da cultura antiga. · seriedade das acusações, Agostinho respondeu com a seriedade da defesa. Leu, documentou‑se, refletiu, fez tudo o que estava sob seu alcance para dar uma resposta total e inapelável aos que acusavam a religião cristã. Todos os ramos da ciência antiga serviram para o seu fim. Aos que não podia convencer pela Escritura, por lhes faltar a fé nela, intenta, com enorme gasto de energia e de perspicácia, convencê‑los a partir dos seus próprios instrumentos, das suas próprias crenças.

A Cidade de Deus foi o livro que configurou toda a Idade Média. Os estudos atuais sobre esta obra agostiniana contam‑se por milhares.

"Oh nobre natureza humana! Escolhe agora o teu caminho a fim de que possas ter uma glória verdadeira, não em ti, mas sim em Deus. Um tempo não te faltou a verdadeira religião a escolher. Acorda! É dia! Acorda como acordaram alguns dos teus, de cuja virtude e de cujos sofrimentos pela fé nos gloriamos. Esses, combatendo contra os irreconciliáveis poderes hostis, vencendo‑os com a sua morte valorosa e com o seu sangue, deram‑nos esta prática.

Nós convidamos‑te, exortamos‑te a vir para esta pátria, para que te contes entre o número de cidadãos cujo asilo é, de certo modo, a verdadeira remissão dos pecados. Não prestes ouvidos aos que de ti degeneraram. São detratores de Cristo e dos cristãos e acusadores destes tempos como calamitosos. É que procuram tempos em que a vida não seja pacifica mas sim bem segura a malícia. Um tempo semelhante nunca tu o quiseste, nem mesmo para a tua pátria terrena. Agora vira‑te para a pátria celeste. Por ela trabalharás muito pouco e nela terás um reino eterno e verdadeiro... Não andes à caça de deuses falsos e falaciosos! Despreza‑os e arroja‑os para longe, elevando‑te à verdadeira liberdade! Não são deuses, são espíritos malignos, para os quais a tua felicidade é um suplício" (Cidade de Deus, II, 29, 1‑2).

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