Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

12.-A HERANÇA DE SANTO AGOSTINHO:

O MONACATO

Já se disse que Santo Agostinho, quando morreu, não deixou patrimônio, exceto a biblioteca e as recomendações sobre a custódia da mesma.

Conservamos, no entanto, seu espírito: essa maneira característica de ser cristão, de ser santo, de ser pastor... e de ser monge! Aqui está o mais precioso de sua herança, não só para os Agostinianos, mas também para toda a Igreja Universal.

Não é fácil resumir o ideal monástico de Santo Agostinho. Entre todos os seus escritos não encontramos um sequer, que seja dedicado expressamente ao monacato. Suas ideias sobre o mesmo se encontram espalhadas ao longo de suas obras.

Ser monge no bispo de Hipona é ser Agostinho mesmo, isto é, toda a vida está ligada a esta ideia. Antes e depois da conversão, durante o sacerdócio e os longos anos do episcopado, em suas pregações ao povo, em suas cartas polêmicas e demais escritos, vibra sempre o ideal de ser monge. Por isso a Santo Agostinho pode ser dado o título de Monge e Pai dos Monges.

Santo Agostinho era intelectualmente curioso, mas com uma curiosidade do divino. Seu afã de ser monge só se entende à luz da busca de Deus. Já se falou também de suas lutas em busca da verdade. Ser monge, em Santo Agostinho, significa penetrar no mistério de Deus, conhecê-lo pela fé e possuí-lo através do amor.

Pouco antes de converter-se, faz uma primeira tentativa de vida comum. Mas tudo vai por água abaixo, ante as dificuldades apresentadas pelo matrimônio. Depois de convertido em Cassiciaco, em Tagaste e durante os primeiros anos em Hipona, consegue fazer com que a ideia do monacato seja uma realidade um pouco idealista: se comove ante a beleza da natureza, vive um tanto separado de luta diária de seus contemporâneos, absorto na reflexão sobre a alma de Deus. A experiência pastoral, a polêmica antimaniqueia e o estudo mais atento de São Paulo lhe abrem um panorama mais real e universal.

A ordenação sacerdotal muda, em Agostinho, sua conceição sobre o monacato. Ele se dá conta de que deve se libertar dessa espécie de “egoísmo espiritual” e se entregar à obra da Igreja. Queria dedicar-se por inteiro à oração, à meditação-contemplação e ao estudo da Sagrada Escritura; mas a imensa comunidade chamada Igreja é mais importante que a pequena comunidade agostiniana. Por causa do serviço à Igreja de Cristo é necessário, às vezes, sacrificar o retiro e a tranquilidade do mosteiro.

Neste estilo de vida, acolheu quem quisesse viver a sua herança espiritual. O membro da comunidade tinha que saber ser religioso e pastor, ativo e contemplativo, estudante e mestre, homem de oração e missionário. Tudo isto ao mesmo tempo. Mas tem que ser antes de tudo obediente: à Igreja e à comunidade.

Santo Agostinho teve que percorrer todo um caminho para chegar a converter-se em Monge e Pai dos Monges. Chamamos isso de ‘itinerário monástico do santo”.

O descobrimento de sua vocação de monge aconteceu no ano 386, aos 32 anos de idade quando Ponticiano, “cristão de longas e frequentes orações” (Conf. VIII, 6, 4), narrou a Agostinho alguns detalhes da vida de Antão, o eremita e de outros mais, do qual Agostinho nada sabia. A narração ficou gravada de tal maneira em sua alma que desencadeou nela aquela feliz tempestade que o levou à conversão definitiva.

Agostinho já era crente antes do encontro com Ponticiano. Acreditava em Deus, em Cristo, na espiritualidade da alma e em outras verdades do cristianismo. O exemplo de Antão e dos cortesãos de Trévis, que haviam abandonado suas noivas para consagrar-se a Deus na vida monástica, veio em ajuda de sua fraca vontade, sacudiu sua covardia, proporcionou-lhe desapego da carne e o conduziu à vitória final.

Depois de convertido, Agostinho jamais seria um cristão comum. A luta o havia renovado e saia dela “sem desejo de mulher nem esperança alguma neste mundo” (Conf. VIII, 12, 30)

Em Cassiciaco, Agostinho inaugura um plano de vida que não corresponde plenamente a nenhum modelo precedente. Neste sentido, se pode falar de Santo Agostinho, não só como fundador, senão como inventor de um estilo de ser monge. Em companhia de seus amigos, dedica longas horas ao estudo das Escrituras, ao trabalho manual, à oração dos salmos e à contemplação religiosa. Era, porém, um primeiro ensaio que necessitava urgentemente de retoques, correções e complementos a Agostinho não tardará em introduzi-los.

A experiência e o estudo lhe manifestam pouco a pouco o verdadeiro rosto do monacato. Lembremos as viagens que fez, conhecendo diferentes estilos de vida monacal para escolher o seu.

Admira os anacoretas pelo retiro e solidão, mas não se sente atraído por eles. Também tem simpatia pelos cenobitas, que são anacoretas de vida comum, mas também não o satisfazem plenamente. Ele tem suas preferências: a vida comum, a concórdia dos corações, o desprendimento dos bens da terra, a moderação e liberdade no uso das coisas, o estudo e, sobretudo, a caridade. A caridade é a rainha dos mosteiros. Ela regula os alimentos, as palavras, os vestidos, o semblante. Quando se ofende a caridade, se é imediatamente expulso do mosteiro, pois sabem que “Cristo e os Apóstolos a recomendam tanto que, onde falta, tudo é vão; e onde está presente, tudo é pleno” (costumes da Igreja Católica, I, 33, 73)

Este será o estilo do monacato agostiniano: uma cópia o mais fiel possível do estilo de vida dos primeiros cristãos (At 4, 32-35).

FUNDAÇÕES MONÁSTICAS NO TEMPO DE SANTO AGOSTINHO

a) Tagaste: No final de 388, Agostinho funda seu primeiro mosteiro em Tagaste e começa a viver em comunidade com seus amigos. Infelizmente, pouco sabemos deste grupo, da sua vida quotidiana. Não temos os horários e regulamentos que nos informem sobre a distribuição dos dias e horas, sobre os requisitos para entrar e fazer parte da comunidade, sobre as obrigações de seus membros e suas relações com os superiores. Nem sequer quantos eram e se estavam batizados. Apenas consta com certeza a presença de Adeodato, o filho de Agostinho, Alípio, Evódio e Severo. São Possídio faz um resumo de como viviam.

Em Tagaste, o que fez Agostinho foi um ensaio de vida comum, muito mais estruturada que em Cassiciaco, mas ainda sujeita a mudanças e transformações.

b) Hipona, mosteiro do horto. Em Tagaste, Agostinho era um simples monge, contente em ser “o último da casa do Senhor”. Mas, no ano 391 sua vida deu uma volta de 90 graus. Com a ordenação sacerdotal ele se dá conta de que não pode dedicar-se inteiramente ao que ele chama de “ócio santo”, isto é, vida de oração e contemplação da Verdade Suprema.

A ordenação sacerdotal foi a causa que arrastou por água abaixo o ideal monástico do santo, já que em seu tempo a vida sacerdotal era incompatível com a vida monástica. Era um ou outro, nunca os dois ao mesmo tempo. Felizmente, o velho bispo Valério compreendeu a necessidade que sentia Agostinho de viver em companhia de seus irmãos e lhe deu licença para fundar outros mosteiros junto da igreja de Hipona, no horto, onde continuou a viver como em Tagaste.

No princípio este mosteiro se nutriu de monges vindos de Tagaste, embora com certeza só podemos identificar Evódio. Cedo, porém, a pregação de Agostinho encontrou novas vocações, pertencentes a todas as idades e classes sociais. A todos exigia a renúncia dos bens e a perfeita vida comum.

Comecei a reunir irmãos de boa vontade -diz Santo Agostinho- que, igual a mim, nada tiveram dispostos a imitar meu modo de viver, isto é, assim como eu havia vendido meu pobre patrimônio e havia repartido o fruto entre os pobres, fizeram o mesmo os que quiseram viver comigo para que todos vivêssemos do comum. Desta forma, todos possuiríamos em comum um grande e fertilíssimo campo, o mesmo Deus” (Sermão 355, 2).

Em Hipona, ao seu ideal monástico, se junta o ideal apostólico. Quando a mãe Igreja pede a nossa colaboração não podemos negar: esse era o lema do santo. Ao apostolado ele chama “negócio justo”, assim como à contemplação chama “ócio santo”.

c) Hipona, mosteiro de clérigos. A ordenação episcopal foi outro momento delicado no itinerário monástico de Agostinho. Tinha que conciliar solidão e retiro, próprios dos mosteiros, com a atividade pastoral e exigências sociais do episcopado. Parece que teria que renunciar à vida comum. No entanto, esta renúncia era muito dolorosa. Agostinho não havia nascido para viver só. Necessitava da companhia dos amigos e irmãos e essa necessidade aguçou sua imaginação e lhe permitiu superar o obstáculo, transformando-o em estímulo: abriria as portas da casa episcopal aos clérigos e, com eles, partilharia teto, mesa e roupas.

Nela acolheu a quantos clérigos quisessem viver em comum e partilhar o ideal de pobreza evangélica. Este mosteiro lhe serviria também para formar o clero da diocese, segundo o alto conceito que tinha do sacerdócio.

A vida neste mosteiro repousa sobre as mesmas bases do horto: vida comum perfeita, absoluta pobreza individual, equilíbrio entre ação e contemplação. Só o trabalho manual desapareceu ou, ao menos diminuiu notavelmente para dar lugar ao trabalho apostólico. Todos os clérigos participam ativamente da vida da diocese. Diariamente vão à igreja para a Eucaristia e oração das horas litúrgicas. Algumas vezes, os sacerdotes substituem o bispo na celebração da Eucaristia, na pregação e administração dos sacramentos.

d) Mosteiro de virgens. A vida virginal apareceu cedo na Igreja Africana. Seus dois grandes doutores, Tertuliano e São Cipriano, a promoveram com entusiasmo, fomentando a união e colaboração entre si.

Santo Agostinho fundou pelo menos um mosteiro de virgens em Hipona, do qual foi “priora”, por muitos anos, sua irmã; e do qual fizeram parte também algumas de suas sobrinhas. Não consta a data exata de sua fundação. Santo Agostinho amou este mosteiro com especial afeto. Amor que brotava espontâneo de sua estima pela virgindade e vida religiosa.

Muito pouco sabemos de seu estilo de vida e de sua orientação espiritual. Tudo, porém, nos leva a pensar que não se diferenciava muito da vida dos monges. Praticavam a vida comum perfeita e dividiam a jornada entre oração e trabalho, sem excluir talvez, a cópia de códigos e manuscritos antigos.

O número de monjas deve ter sido bastante elevado. Agostinho fala de uma “copiosa congregação”. A maioria era de virgens, mas também se admitia algumas viúvas. A irmã de Agostinho entrou depois da morte do marido. Consta também a presença de algumas meninas órfãs.

 

O MOSTEIRO AGOSTINIANO

O mosteiro de Santo Agostinho se converteu num autêntico mosaico de caracteres humanos. Os moradores eram muito diferentes uns dos outros pela idade, ilustração e origem social. A maioria provinha das camadas inferiores da sociedade. Agostinho fala de escravos, libertos, agricultores, operários e artesãos. Mas, não faltavam membros de famílias abastadas e até mesmo senatoriais. Havia monges ilustrados e monges ignorantes, ainda que os analfabetos eram uma exígua minoria. Aquele que, ao ingressar no mosteiro, não sabia ler, era instruído imediatamente. Também a idade variava. Consta a presença dalguns meninos e jovens. Ao que parece, entravam no mosteiro na qualidade de “pulio” e só aos 16 ou 18 anos de idade decidiam seu retorno ao mundo secular ou sua definitiva incorporação ao mosteiro. A quase totalidade dos monges eram leigos, ou seja, irmãos não clérigos. E vez em quando, contudo, é bem provável o ingresso de algum clérigo; e, com certeza, alguns monges foram agregados ao clero. Foram monges no mosteiro do horto: Evódio, Possídio, Severo e Antônio, bispos, respectivamente de Uzala, Calama, Milevi e Fussala, assim com vários outros

Cfr. A. Martínez Cuesta, San Agustín, monge y padre de monjes: Mayéutica 16 (1980).

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

11.- MARTELO DOS HEREGES ATÉ O FIM

(Idade: 76 anos)

Um dos títulos que recebia Agostinho era o de “Martelo dos hereges”, devido a sua luta contra os mesmos. Maniqueus, donatistas e pelagianos formaram o triângulo das heresias mais notáveis de luta agostiniana. Nenhuma delas existe na atualidade, mas em tempos de Santo Agostinho estavam em pleno vigor. Não se pode separar a luta contra as heresias do apostolado do bispo de Hipona, porque delas saíram várias de suas obras mais importantes. Um exemplo é o tratado sobre a graça divina, escrito contra os pelagianos.

Já foi feita uma breve alusão aos donatistas e maniqueus (lições 1 e 4). Quanto ao pelagianismo, trata-se da doutrina de um monge irlandês chamado Pelágio. Desembarcou na África em 411. Sua morte deu-se, provavelmente, em 418, no Oriente. Pelágio negava o pecado original. Não admitia o batismo de crianças. Afirmava que o homem é capaz de salvar-se por suas próprias forças, sem necessidade da graça divina. Mais tarde suas doutrinas se estenderam por toda a parte. Santo Agostinho combaterá vigorosamente os partidários de Pelágio.

A fama de Agostinho não tinha limites. De todas as partes acorriam a ele em busca de soluções às dificuldades que aumentavam sem cessar. Suas obras são conhecidas em toda a Igreja. São lidas, tanto na Espanha quanto no Oriente, na Itália ou na Gália. E, quando está quase na hora de se reunir o Concílio de Éfeso, lhe é dirigido um convite especial para tomar parte nesta assembleia. Mas o convite chegará a Hipona depois da morte de Agostinho. Este convite constitui um eloquente testemunho da reputação a que chegou Santo Agostinho e que se deve unicamente ao zelo que não deixou de mostrar em favor da verdade católica.

É lastimável que Santo Agostinho não tenha podido participar do Concílio de Éfeso (431). Sua contribuição teria sido extraordinária. Especialmente em relação a doutrina sobre a Virgem Maria que, nesse Concílio foi proclamada “Mãe de Deus”.

INVASÃO DA ÁFRICA

Dia 24 de agosto de 410, no meio de uma enorme tormenta, os godos, sob o comando de Alarico, entram em Roma e tocam fogo na cidade. O saque da capital durou três dias e três noites. As crônicas nos falam de uma destruição completa: incêndios, assassinatos em massa, torturas e mutilações. Mas, o que os godos procuravam era, sobretudo, o ouro; e, ao partir, levaram os carros repletos de um valorosíssimo confisco.

Não é fácil, depois de quinze séculos estimar as perdas materiais. Sem dúvida que os historiadores exageraram, devido ao sentimento de patriotismo, ao se referir a esse evento. O certo é que a invasão de Roma deve ter causado uma marca profunda nos habitantes das províncias. A triste notícia provocou um eco de comoção e espanto.

Os pagãos quiseram acusar à Igreja Católica como responsável pela ruína de Roma. Estes fatos históricos deram a Agostinho motivos para escrever uma das suas obras mais importantes: “A Cidade de Deus”.

A invasão da África nos é contada por Possídio de Calama, testemunha ocular dos acontecimentos:

Algum tempo depois, dispôs a Divina Providência que numerosas tropas de bárbaros cruéis, vândalos e alanos, misturados com godos e outros povos vindos da Espanha com todo tipo de armas e preparados para a guerra, desembarcassem e irrompessem na África. Após atravessar todas as regiões da Mauritânia, penetraram em nossas províncias, deixando em toda parte rastros de sua crueldade e barbaridade, assolando tudo com incêndios, despojos e outros inumeráveis e horríveis males. Não tinham nenhuma distinção entre sexo e idade. Não perdoavam os sacerdotes nem os ministros de Deus, nem respeitavam os ornamentos sagrados, nem os edifícios dedicados ao culto divino” (Vida de Santo Agostinho, c. 28)

A cidade de Hipona estava solidamente fortificada e preparada para uma longa resistência aos invasores. Por este motivo, se converteu em refúgio aos habitantes dos arredores. Muitos bispos estavam entre os refugiados.

O assédio à cidade começou no final de maio do ano 430. Agostinho, também chamado “Águia de Hipona”, já tinha entrado nos seus 76 anos de idade. Embora com as forças diminuídas, não mudou em nada seu regime de vida: orava, escrevei, anunciava o Evangelho, acolhia aos fieis, preparava-se, enfim, para o encontro definitivo com Cristo.

Catorze meses durou o assédio completo, porque bloquearam a cidade totalmente até pela parte do litoral. Lá eu me refugiei com outros bispos e lá permanecemos durante o tempo do assédio. O tema ordinário de nossas conversas era a terrível ameaça dos bárbaros, deixando nas mãos de Deus nossos destinos e dizíamos: ‘Justo sois Senhor, e retos teus juízos’. E misturando nossas lágrimas, gemidos e lamentos orávamos, unidos ao Pai de toda misericórdia, para que dignasse fortalecer-nos em tão tremenda prova” (Possídio, Vida de Santo Agostinho, cap. 28)

Um dia, conversando à noite, Agostinho nos disse: - Haveis de saber que eu, neste tempo de angústias, peço a Deus ou que livre a cidade de cerco dos inimigos ou, se é outro seu beneplácito, fortifique seus servos para cumprir sua vontade, ou me arrebate deste mundo para levar-me consigo. Dizia isto para nossa instrução e edificação. Depois, todos nós levamos à Deus as nossas súplicas’” (Possídio, Vida de Santo Agostinho, cap. 29)

Deus se dignou escutar as súplicas do seu servo. Antes que terminasse o terceiro mês de assédio, caiu enfermo. Quando sentiu a elevada febre de sua enfermidade, deu-se conta que seus dias estavam contados. Já fazia algum tempo que sua saúde deixava a desejar. Todos sabiam disto e se preocupavam. O conde Dario demonstrou-lhe sua simpatia, enviando-lhe alguns remédios que seu médico lhe havia recomendado. Outros, sem dúvida, fizeram o mesmo. Mas, Agostinho era ancião, e, com o peso da idade, as emoções, as angústias, as privações, já lhe era impossível ter qualquer tipo de ilusão e alimentar esperanças humanas.

Por outro lado, que importância teria para Santo Agostinho a vida aqui neste mundo? Desde o momento de sua conversão desejava conhecer e amar cada vez mais a Deus. Buscava contemplá-lo, possuí-lo sem limites. Não cessou de buscar o rosto de Deus. Agora, com alegria, sentia ter chegado o momento de dizer adeus às coisas deste mundo. E pôde fazê-lo com a consciência e o coração tranquilos e cheios de alegria.

Nos últimos dias de sua vida, Agostinho revisava todo o seu passado: Patrício, que havia morrido o primeiro da família; Mônica, que havia tido a alegria de ver convertidos, primeiro seu esposo, depois, o próprio Agostinho; seus irmãos que haviam descansado na paz do Senhor.

Depois repassava, em sua memória: a adolescência irrequieta, tempo de seus grandes pecados, mas também de grandes graças; a mulher com quem havia vivido durante tanto tempo; seu filho Adeodato; os amigos, Alípio e Nebrídio, que lhe rodearam sempre. Este último havia morrido na flor da juventude. Alípio ainda vivia e Agostinho não cessava de agradecer a Deus por haver-lhe conservado junto de si nos últimos momentos.

Vinham a seguir as horas decisivas de sua conversão. Simpliciano e Ambrósio tinham sido para ele, naquelas horas, os mensageiros da graça divina. Ele agora os ia encontrar na luz de Deus e com eles voltaria a cantar, sem interrupção, o eterno louvor de Deus.

No leito onde estava deitado, tinha um pouco de descanso e tempo livre para pensar em Deus, para meditar e orar. Tinha pedido a seus amigos e aos que lhe atendiam que o deixassem só, menos na hora em que o médico vinha vê-lo ou quando tinham que medicar-lhe com os remédios ou os alimentos. Embora fosse muito dura esta ordem do doente, todos a cumpriam, já que sabiam que Agostinho desejava dedicar os últimos momentos ao Criador.

Também havia manifestado desejos de que lhe copiassem os salmos penitenciais em caracteres grandes para que pudesse lê-los do leito. Assim se fez e as paredes apareceram adornadas com uma cópia dos salmos.

Agostinho era pobre. Desde sua chegada a Hipona havia feito a renuncia de todos os seus bens. Viveu sempre em comunidade com seus clérigos, sem possuir nada próprio. Não tinha nada para colocar em testamento. À sua Igreja de Hipona não tinha outra coisa para deixar senão seus livros: tanto os que ele mesmo havia escrito como os que havia adquirido ou recebido de seus amigos. Uma das últimas recomendações foi que conservassem cuidadosamente sua biblioteca para os que viessem depois dele.

Após alguns dias, os amigos que lhe atendiam viram que Agostinho não se curaria. A debilidade do enfermo aumentava. Sua mente continuava lúcida até o último momento e não parou de dirigir as suas recomendações espirituais. Incessantemente orava a Deus. Possídio e os que o acompanhavam respondiam às suas preces.

Fora das muralhas fervia a luta entre defensores e atacantes. No quarto do enfermo tudo era paz e silêncio. O clero de Hipona de joelhos, recitava em silêncio a oração dos agonizantes. Entretanto o doutor da graça e do amor, depois de 76 anos de vida e 40 de incansável luta em favor da Igreja, cai na agonia para ser recebido com júbilo na Cidade Santa de Deus.

No dia 28 de agosto do ano 430, o filho de Patrício e Mônica, Agostinho, bispo de Hipona, dormia na paz do Senhor. Contava com 75 anos, 10 meses e 15 dias...

 

AS RELÍQUIAS DE SANTO AGOSTINHO

Os restos mortais de Santo Agostinho foram depositados na Basílica da Paz, em Hipona, onde o santo havia exercido seu ministério pastoral. Depois de quase 70 anos, ante o perigo de profanação por parte dos invasores, os bispos da África os trasladaram para a ilha da Sardenha, onde permaneceram 223 anos na igreja de São Saturnino de Cagliari. Quando a ilha caiu em poder dos sarracenos, o piedoso rei dos lombardos, Luitprando, os resgatou por 70 mil escudos de outro levando-os consigo, no ano 730, para a cidade de Pavia, Itália, e depositando-os na Igreja de São Pedro “in coelo aureo” (no céu dourado).

Vários papas proibiram a exibição pública de seus restos mortais, pois estavam sendo roubadas partes dos mesmos. Por este motivo se perderam as notícias e a memória do lugar onde estavam. No ano 1695, no entanto, por ocasião de reforma da Igreja, foram descobertos numa caixa de prata com a inscrição: Augustinus. O Papa Bento XIII declarou-os autênticos.

Novos transtornos políticos ocorrem na Itália. Com medo de novas profanações, em 1832, o bispo de Pavia os transferiu para a catedral de mesma cidade. No ano 1900, o padre Tomás Rodrigues, Superior Geral da Ordem Agostiniana, conseguiu que fossem devolvidos à Igreja de São Pedro, propriedade dos Agostinianos, onde repousa atualmente.

A estes sagrados restos faltam: o braço, que foi enviado a Cartago em 1842, a pedido de Monsenhor Dupunch, primeiro bispo de Argel; e o coração, que se conserva em Lion.

Semblanzas de San Agustín, 500.