Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

A GRANDE CIDADE: CARTAGO

Amar e ser amado

Um rapaz da aldeia chega à grande cidade; um mundo abre‑se ante os seus olhos. Os mármores brancos multiplicam, com os seus reflexos, os raios de sol. Habitantes de todos os cantos do império encontram em Cartago o lugar ideal para vender as suas mercadorias ou as suas filosofias, ou ainda, procurar novos adoradores de divindades imigrantes, que competem com as antigas ainda bem arraigadas. Os navios carregados de trigo, levando consigo os temores e medos de quem sente um tétrico respeito às ondas e aos seus caprichos. Não menos freqüentemente esses navios transportam, não já alimentos, mas sim, homens famintos, senão de pão, ao menos de glória, de honrarias à sombra do imperador ou da administração imperial, de letras ou, simplesmente, de alunos mais tranqüilos e estudiosos. Podemos supor que Agostinho se dirigia, com freqüência, ao porto para aí passear, à procura de qualquer novidade que chegasse da outra margem do mar.

Em Cartago, Agostinho entregou‑se ao estudo da retórica. Esperava sobressair nesta disciplina, como antes noutras coisas. Ela poderia deste modo ir alimentando a sua vaidade humana. Uma vez mais o êxito e o triunfo foram os seus doces companheiros. "Era eu o primeiro da classe de retórica. Cheio de gozo, orgulhava‑me e inchava de vaidade" (III, 3, 6).

Continuou a cultivar a amizade dos seus companheiros de estudo. Os seus dotes naturais tornavam‑no perfeitamente capaz de distinguir entre os deveres da amizade e o aprovar tudo quanto faziam os amigos. Como norma mantinha‑se afastado das selvajarias dos seus revoltosos companheiros, apesar de experimentar certa vergonha de não ser como eles. Contudo andava com eles e tinha prazer na sua amizade. Mas detestava as suas façanhas. De um modo particular sentia‑se incomodado pelas partidas que pregavam aos caloiros recém‑chegados à capital, vindos de sítios diferentes. Sem motivo algum insultavam‑nos e ridicularizavam‑nos, fazendo deles objeto de partidas e divertimentos.

Mais longe ainda dos conselhos de sua mãe, dos quais talvez tivesse continuado a não fazer caso, a sua inquietação juvenil dispersa‑se ainda mais. Cartago era um remoinho. Ele compara‑a a uma panela onde fervem todo o tipo de amores impuros. E nela caiu Agostinho. "Ainda eu não amava mas amava amar... Procurava o que amar, amando o amar... Amar e ser amado era mais doce se gozava também do corpo do amado." (III, 1, 1). Com estas belas expressões descreve as suas ânsias daquela época e censura‑se o ter manchado a fonte da amizade com a imundície da concupiscência, turvando as suas águas com o lodo remexido da luxúria. Mas agora preocupa‑se com alguma coisa mais: apesar de ser desonesto, tudo faz para parecer elegante e cortês, "ressumando vaidade".

Os espetáculos teatrais entusiasmam‑no. Eram a lenha que aumentava a chama das paixões que sentia arder no seu interior.

Contudo, Agostinho encontra‑se insatisfeito. Nem o êxito nos seus estudos, nem a amizade dos companheiros enchem o seu vazio interior. Nem mesmo os espetáculos de teatro, nem o cultivo das suas paixões. O terreno está suficientemente preparado para a leitura do Hortênsio. Segundo a ordem habitual dos estudos, chega ao momento de ter acesso a este livrinho de Cícero que consiste no convite à sabedoria. O livro muda os seus afetos e desejos; endereça a Deus todas as suas súplicas e faz que sejam outras as suas aspirações a curto e a longo prazo. De momento, começa a parecer‑lhe desprezível tudo aquilo por que até então suspirava. Com incrível entusiasmo, decide entregar‑se à conquista da sabedoria.

A leitura de Cícero foi decisiva para a posterior evolução de Agostinho. Significava nada menos que o convite a abandonar os bens exteriores para se entregar plenamente à procura dos do espírito. Só uma coisa lhe parecia fria no meio de tantos ardores: não encontrava no livro o nome de Cristo. A razão é‑nos dita por ele próprio: "esse nome havia‑o bebido o meu tenro coração com o leite de minha mãe e tinha‑o profundamente gravado" (III, 4, 8). Não é de estranhar, portanto, que não o satisfizessem de todo, qualquer escrito onde estivesse ausente esse nome ainda que fosse elegante, polido e erudito.

Agostinho não despreza o convite e lança‑se à conquista dessa sabedoria. Antes de a pedir a outros, pede‑a a Jesus através da Bíblia. Com efeito, resolve entregar‑se ao estudo das Escrituras para ver como são. Mas... a seu modo de ver não se podem comparar com os escritos de Cícero. "A minha vaidade recusava a simplicidade e a minha vista curta não penetrava até o seu interior" (III, 5, 9). Para aproximar‑se dela é necessário apresentar‑se como uma criancinha. Ele, ao contrário, desdenhava ser pequeno e "cheio de presunção tinha‑me por grande" (id.).

Não é de estranhar que o jovem estudante, habituado a ler os clássicos da língua latina achasse aquela leitura insuportável. A tradução era feita a partir do grego, quase sempre por pessoas simples e pouco cultas. O latim resultante aparecia salpicado de termos gregos latinizados, além de expressões, modismos e palavras da língua vulgar que destoavam na boca de quem pretendesse passar por educado e culto. O certo é que recusou as Escrituras mas não a Jesus.

Desiludido por este primeiro contato com a palavra de Deus, sempre à procura da sabedoria foi parar junto de uns homens que também falavam de Jesus. Apesar do seu coração e da sua cabeça estarem vazios dela, não cessavam de repetir: Verdade, Verdade!. "Muitos a nomeavam, mas nunca estava neles" (III, 6, 10). Por outras palavras, fez‑se maniqueu. A doutrina deste grupo será exposta mais adiante; agora basta‑nos recordar a rede estendida a Agostinho. Apresentavam‑se como vendedores de uma religião para pessoas doutas, quer dizer, onde não havia nada para crer; pelo contrário, era tudo racional, tudo compreensível pela razão. A religião católica, diziam os maniqueus, só pede fé, nunca dá explicações. Sobretudo a respeito da origem do mal, problema que o atormentava. Além disso a sua doutrina é absurda; Deus é apresentado com traços humanos; as Escrituras contradizem‑se; o Antigo e o Novo Testamento não são concordes. Neste último ponto, os maniqueus obtinham fáceis e rotundos triunfos sobre os cristãos simples.

Agostinho, jovem de dezanove anos, encontra‑se confrontado com o seguinte dilema: ou fé ou razão. Ele opta pela segunda, recusa, portanto, a fé dos católicos e adere à suposta ciência dos maniqueus. Terá de passar uma dezena de anos para que se dê conta de ter colocado mal o problema e de ter sido enganado.

Com a doutrina maniqueísta, pensava o jovem saciar a sua fome de Deus. Para isso apresentavam‑lhe muitos e volumosos livros. Foi grande a sua surpresa e decepção quando se encontrou com outro manjar diferente do procurado e apetecido. Em vez de lhe apresentarem Deus, de quem Agostinho tinha fome, falavam‑lhe do sol e da lua. Obras de Deus; obras formosas, sem dúvida, mas não o próprio Deus.

Nunca desejos melhores arrastaram mais lúcida inteligência para pior destino.

Naquele período da sua vida, Agostinho une‑se a uma mulher com quem vive em matrimônio, apesar de ser de segunda categoria, mulher que mais tarde poderá abandonar facilmente. A lei romana não permitia que se casassem pessoas de diferentes classes sociais, aprovando no entanto, esta forma de vida em comum. Mas deixemos que o próprio Agostinho nos conte: "Por aqueles anos comecei a viver com uma mulher a quem não estava unido em legítimo matrimônio. Foi a paixão cega que a procurou. Mas, isso sim, tive só uma e guardei‑lhe lealdade como a uma esposa. Nela experimentei, por mim mesmo, a diferença que existe entre o matrimônio legítimo, que se contrai para procriar filhos e a outra união, fruto do amor lascivo, onde nascem filhos contra a vontade dos pais, ainda que, depois de nascidos, obriguem que os amem" (IV, 2, 3).

Não há que ver nisto mais uma prova da perversão de Agostinho. Tudo quanto foi dito mostra, pelo contrário, o seu equilíbrio, um certo autodomínio, a sua capacidade de amar a uma pessoa. Não era freqüente, naquele tempo, que um jovem, como Agostinho, mantivesse tal fidelidade a uma mulher que não ia ser sua esposa para sempre e que a amasse com tanta força, como deixará ver quando tenha de separar‑se dela. Foi um caso excepcional. Não de paixão e de pecado, mas sim, de fidelidade e de entrega.

Concluídos os estudos volta de novo à sua terra natal. Era o ano de 375.