Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

DA CAPITAL DA ÁFRICA À CAPITAL DO IMPÉRIO

Procurava uma falsa felicidade

Muitas vezes, em Cartago, Agostinho teria visto os navios zarparem rumo a Roma. Em mais de um ocasião ele teria sonhado em fazer‑se ao mar, vencendo o horror que sentia àquela enorme mole de água, personificação do mal. Para além do perigo estava Roma, a grande Roma, a capital do império. Acostumado ao triunfo, deve ter pensado que os seus dotes deveriam ter ali mais ressonância; os seus méritos podiam chegar com mais facilidade aos ouvidos do imperador; as portas das honrarias eram mais numerosas e era preciso estar presente para poder entrar por elas. Portas que conduziam igualmente às riquezas. Que importância tinha que fosse africano? Não tinha triunfado ali Hiério, provinciano como ele, sírio, para ser mais exato?

Os seus amigos não devem ter tido de se cansar muito para o convencerem a abandonar Cartago. Não lhe faltavam motivos. Não partiu dele a idéia de abandonar África. Foram os amigos que o impeliram a mudar‑se para Roma e a ensinar o que ensinava em Cartago. Ali ser‑lhe‑ia mais fácil enriquecer. Mas, se bem que isto também influísse no seu ânimo, não foi, no entanto, a razão principal que o decidiu a seguir os desejos dos seus amigos. Outras coisas pesaram mais na sua mente. Decepcionado e quase desvinculado interiormente do maniqueísmo, encontrava‑se contrafeito no cenário do seu proselitismo. Além disso, tinha ouvido dizer que os estudantes romanos tinham melhores costumes e eram mais disciplinados; que não entravam de roldão nas aulas dos que não eram seus mestres, nem saiam delas de forma inesperada. Os costumes que não quis aceitar como estudante, também não os queria passar como professor. Por isso agradou‑lhe a idéia de ir para Roma. Depois de nos ter narrado estas coisas, Agostinho, com uma frase digna de si, reflete sobre tudo isto: "Eu, que em Cartago detestava uma miséria verdadeira, procurava em Roma uma falsa felicidade" /V, 8, 14).

Mônica opôs-se a tal viagem e Agostinho tem de se servir de uma mentira para se desembaraçar dela. Enquanto ela vai rezar a uma capela perto do porto, ele finge ir despedir‑se de um amigo, que esperava vento favorável para se fazer ao mar. Quem, de fato, se faz ao mar é ele próprio. Passaram os anos e Agostinho continuará a sentir tal mágoa de ter enganado a sua mãe que na manhã seguinte sentiu profundamente a punhalada da traição, que tentou lavar com súplicas e lamentos, "Assim menti a minha mãe, e a que mãe!" (V, 8, 15).

Lamentos e súplicas que não foram em vão. Agostinho atribui‑lhes o terem‑lhe salvo a vida, evitando‑lhe assim uma morte afastada dos braços de Deus. A sua saúde ressentiu‑se ao chegar a Roma. Caiu gravemente doente, mas desta vez, não pediu o batismo, como tinha feito em circunstâncias idênticas quando era criança.

À medida que passava o tempo, Agostinho estava cada vez mais desiludido a respeito dos maniqueus, apesar deles o terem recebido e de se ter hospedado em sua casa. Sentia‑se defraudado. Tinham‑lhe prometido a verdade e deram‑lhe um conjunto de fábulas mais ignominiosas do que quanto punham na boca dos católicos. Oferecendo razões exigiam‑lhe credulidade. Não é para estranhar que já não defendesse o maniqueísmo com o entusiasmo de outros tempos. Mas a amizade que o unia a membros da seita tornava‑o preguiçoso para procurar a verdade noutro lugar. Pensar na Igreja Católica, da qual os maniqueus o tinham separado, era uma possibilidade posta de lado. E a sua posição era muito compreensível, considerando que o que ele pensava da fé católica estava muito longe da verdadeira realidade.

Com dúvidas potentes acerca do maniqueísmo e com uma desconfiança total na Igreja Católica, Agostinho abandona‑se ao cepticismo. Que se pode afirmar com certeza, se em toda a parte encontrei o erro? Melhor será abster‑se de fazer afirmações, duvidar de tudo; assim se evitará todo o equívoco.

Agostinho continuava exercendo em Roma a sua atividade de professor de retórica. Se os estudantes tinham sido um dos motivos que o levaram a deixar Cartago, estes mesmos tornariam ingrata a sua estadia na capital do império. Muito depressa teve conhecimento de que, em Roma, sucediam coisas que não tinha tido de agüentar na capital africana. Era certo, como lhe tinham assegurado, que não havia aqueles alvoroços provocados pelos estudantes. Mas, não seria mais desagradável ainda, que os alunos não lhe pagassem o devido pelo seu trabalho? Quando chegava a hora de pagar punham‑se de acordo entre eles e passavam para outro professor. Isto fez com que também não se sentisse bem.

Depressa se lhe deparou a ocasião de abandonar Roma. De Milão, então residência do Imperador, tinham pedido ao Perfeito da urbe, um professor de Retórica. Os seus amigos maniqueus movimentaram‑se para que ele fossa designado. Assim aconteceu depois de um exame. Sem dúvida ao Perfeito Símmaco, pagão que se esforçava por restaurar a religião dos seus antepassados, deve ter‑lhe parecido uma solução muito aceitável: um anti‑católico que podia fazer frente e sombra ao indomável Ambrósio.

E pôs-se a caminho de Milão. Era o outono do ano de 384.