Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

AQUELE DÉCIMO SEXTO ANO DA MINHA VIDA

 

“Doce é também a amizade dos homens com nó de amor

porque faz de muitas almas uma só”

Madaura está situada a poucos quilômetros ao sul de Tagaste. Passou à posteridade como pátria do poeta latino Apuleio. Os costumes e os ânimos dos seus habitantes achavam‑se ainda impregnados de paganismo. Aqui continuou Agostinho a sua marcha pelos caminhos da cultura e da formação literária, uma vez terminados os estudos elementares na sua terra natal. Ele, como seus pais, sonhava com Cartago, coisa impossível naquele momento. Terminada a sua instrução em Madaura e sem meios para continuar os estudos na capital da África romana, teve de voltar para Tagaste.

Ali vive com os seus pais, que nunca como então, lamentaram a sua pobreza. Para Agostinho, com os seus dezasseis anos, emerge uma vida nova com o despertar de um inesperado e mais intenso sentido social. Esforça‑se por parecer agradável aos homens; descobre o prazer de amar e de sentir‑se amado. Porém, inexperiente, foi incapaz de manter o equilíbrio e, com palavras suas, " ultrapassa a barreira luminosa das exigências da amizade" (II, 2, 2). Nada estranho que recolha os frutos da inatividade. Sem nada que fazer, sem ocupação estável a que dedicar‑se, os espinhos da lascívia ou impureza encontraram terreno fértil na natureza pujante da sua adolescência. "Cresceram mais altos que a minha cabeça e não houve mão que os arrancasse" (II, 3, 6). Se não houve mão que os arrancasse, foi devido, talvez, a que ele o não tenha deixado. Em vão, Mônica tentava manter o filho dentro da lei do Senhor; em vão, se cansava para que não se afastasse de Deus. Os seus conselhos pareciam‑lhe coisa de "beatas" e até se teria envergonhado de segui‑los. Mais tarde ao contrário, sentirá vergonha de não o ter feito.

À falta de ocupação útil, emprega o tempo fazendo tropelias com os companheiros. Havia junto da vinha de seu pai uma pereira carregada de fruto. Nem o aspecto em o gosto chamavam a atenção. Isso não foi obstáculo para um grupo de moços, entre os quais estava Agostinho, decidirem ir, uma noite, despojar a árvore das suas pêras. Sacudiram‑na e levaram grande quantidade, não para comê‑las, mas sim para as atirar aos porcos. Significava ser mau sem razão. Como ele dirá, não havia outra causa para aquela maldade, senão a própria maldade. "Era uma risota, como umas cócegas no coração, ver que estávamos enganando quem não suspeitava que fizéssemos tais coisas e que o ia levar muito a mal" (II, 9, 17).

Quem leia estas páginas e outras, que não estão transcritas aqui, poderá tirar a conclusão que Agostinho foi um jovem pervertido. Nada menos certo. Agostinho escreve as Confissões quando já era bispo, à luz de Deus, diante de quem todo o pecado é monstruoso. A sua fé carregava de cores negras qualquer ação contra a lei do Senhor. Entre os seus companheiros devia ser pouco menos do que um santo, a julgar pelas suas próprias palavras. Entre os da sua idade, envergonhava‑se de ser o menos desavergonhado. Quando ouvia a outros pavonear as suas malandrices e gabarem‑se delas, tanto mais quanto piores eram, tinha vontade de fazer outras parecidas. Não só pelo gosto de fazei-las mas também para ser louvado. Fazia‑se vicioso para que os companheiros não troçassem dele. Até ao ponto que, quando não tinha feito nada que se pudesse comparar às façanhas dos outros, gabava‑se diante deles de coisas que apenas tinham tido existência na sua imaginação. Tinha medo que ao parecer inocente fosse considerado cobarde, incapaz e a sua conduta pouco viril.

Até no roubo das pêras, que pinta com cores tão negras, brilha uma faceta típica da sua personalidade. Não amou o furto, apenas a companhia dos amigos. Assegura‑nos que sozinho nunca o teria feito e põe a Deus por testemunha da veracidade dessa afirmação. Ele sozinho nunca teria cometido aquele furto em que não tinha prazer no objeto do roubo, mas sim no ato de roubar. Nem sequer lhe teria agradado ter tido de o fazer sozinho. Portanto não o teria feito. Ele próprio tirou a conclusão: "Logo, o que amei naquele furto, foi a companhia dos cúmplices com quem o cometi. Basta que alguém diga «vamos, façamo‑lo» e ficasse logo envergonhado de não ser desavergonhado" (II, 9, 17).

Agostinho não podia viver sozinho. Necessitava o afeto. "Que outra coisa me deleitava senão amar e ser amado" pergunta‑se. Formosa realidade mas torvada pelo modo concreto como a levava a cabo. Tão nobre desejo de amor não ia pelos limpos caminhos da amizade autêntica mas achava‑se envolto no lodo da concupiscência da carne. Em plena puberdade não era capaz de distinguir a luminosidade do amor casto da escuridão da impureza.

Finalmente, Patrício e Mônica conseguiram os meios econômicos que iriam permitir‑lhe a viagem para Cartago, graças à ajuda de um homem rico da terra, Romaniano. E Agostinho partiu para uma terra nova, ignorando o que o futuro lhe tinha reservado. Era o ano de 371.