Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

REPARTINDO O PÃO DA PALAVRA

Vejo‑me forçado a pregar;

se infondo terror é porque eu estou aterrorizado

A função primordial de todos os bispos na Igreja antiga era sempre a pregação. Agostinho foi também, e tinha disso consciência, antes de mais, um administrador da palavra de Deus. Os séculos quiseram que chegassem até nós cerca de 1000 sermões do santo bispo. Tal número representa apenas uma mínima parte de quanto na realidade pregou. Exerceu tal ministério sendo simples sacerdote. Nomeado bispo de Hipona já nunca mais pára.

Os fiéis de Hipona foram os seus ouvintes privilegiados. Muito afortunados foram também os de Cartago onde Agostinho passou grandes temporadas da sua vida. Escutaram‑no também os cristãos de todas e cada uma das cidades por onde passou nas suas inumeráveis viagens. Em qualquer lugar onde passava, ali devia repartir o pão da palavra de Deus aos que estavam ansiosos por ouvi‑lo. Em mais de uma ocasião se queixou que nunca tinha tido a dita de escutar, sempre lhe tinha cabido falar.

Ao contrário dos pagãos da sua época, Agostinho não procurava os aplausos, apesar de lhe agradarem. A sua intenção não era declamar um belo, elegante e bem composto discurso, conforme as normas da retórica clássica. Procurar, antes de mais ensinar e instruir aquela multidão de analfabetos que eram os seus fiéis. Não dispondo de livros, por um lado, supérfluos para muitos, que não sabiam ler, o único meio de instrução religiosa ao seu alcance, encontravam‑no na palavra do bispo. Não tem nada de estranho que passem horas e horas de pé, segundo o costume, interessados nas palavras de Agostinho, cheios de admiração e encanto. Mais de uma vez, depois de um sermão extremamente comprido, as pessoas pediram‑lhe que continuasse. Agostinho mais cansado que eles, apesar de estar sentado ‑ ao contrário dos nossos tempos ‑ teve de lhes dizer que não. "Mais vale que digirais o que já vos dei e o assimileis devidamente" (Sermões, 34, 14).

Ensinar e também comover; mover aqueles corações ardentes e inconstantes. Instá‑los continuamente para que vivam em conformidade com a palavra de que se alimentam; conforme aquilo que crêem. Insistir com teimosia, para que cumpram os preceitos do Senhor, para que sejam cristãos de verdade. Por vezes, até se sentiam incomodados pela sua insistência. Ele encontrava sempre resposta apropriada: "Se não quereis que vos mace mais, não erreis, não sigais pelo caminho da perdição" (Sermões, 46, 14). Agostinho era exigente porque sabia que Deus também o era: "Quem te fez, exige tudo de ti" (Sermões, 34, 7). Não queria que nenhum deles perecesse, desejava tê‑los a todos ao seu lado no reino do Pai: "Não quero salvar‑me se não for convosco" (Sermões, 17, 2).

Ensinar, comover e agradar. Agradar, não como fim em si mesmo, mas como meio para melhor conseguir os outros dois objetivos. Agostinho dispunha de recursos para tal. A ótima formação que tinha estava disposta para ser empregue ao serviço do povo de Deus. A sua linguagem é viva, por vezes florida, elegante apesar de não desdenhar o uso de palavras que não se encontram hoje no dicionário, mas que aquelas pessoas simples entendiam muito bem. Os jogos de palavras, as comparações, as antíteses, todas as belezas que tinha aprendido nos anos de estudo aparecem ao serviço da verdade e para deleite daquele povo que, como todos os antigos, sabia apreciar melhor que nós hoje, o valor da palavra falada. O nosso pregador sabia encontrar o estilo adequado para cada assunto tratado. Sabia ser sublime, menos sublime e até humilde, se o assunto o requeria. Ninguém disputou a Agostinho o seu valor como orador. Alguém afirmava nunca ter visto nele um cristão, mas sim, sempre, um orador nato e até, para dizê‑lo assim, um deus da eloquência. Esse alguém era maniqueu.

A beleza dos seus sermões nunca se tornou incompreensível. Agostinho soube como ninguém utilizar a sua arte, em prol da simplicidade e da fácil compreensão. Os seus sermões podiam ser compreendidos por todos, mesmo quando falava dos mais altos mistérios da fé cristã. Ainda nos maravilhamos com a profundidade e clareza que se unem nas suas palavras. Temas reservados hoje às aulas das universidades são expostos de forma compreensível para um público de ignorantes. Pode afirmar‑se que os sermões de Agostinho são, antes de mais, sermões populares. Agostinho não costumava prepará‑los antes, por escrito, bastava‑lhe a sua meditação habitual sobre as verdades cristãs e a arte da palavra que fluía da sua língua.

Os sermões do bispo de Hipona são um diálogo com o público, ainda que só ele fale. Diálogo com os ouvintes, tocando as cordas dos seus sentimentos, ânsias, preocupações e desejos. Às vezes, o diálogo faz‑se mais palpável; os fiéis intervêm ativamente, mas não com palavras, mas com lágrimas, golpes de peito, com gritos ou com aplausos. Com freqüência interrompem‑no; quando encontra uma expressão feliz, desentranha algum mistério, lhes toca alguma fibra do seu coração demasiado sensível ou lhes fala de um tema que os apaixona. Agostinho não pode deixar de responder a tais aplausos. Aqui está uma de tantas respostas: "Gosto dos aplausos, é humano e não seria honesto se o negasse. Mas não louvores de homens que levam má vida, isso infunde‑me horror e aborreço‑o. Dá‑me desgosto e não alegria... Penso no peso das minhas responsabilidades pois também dos vossos aplausos tenho de dar contas. Louvado sou‑o sempre, mas o que preocupa é como vivem os que me louvam" (Sermões, 339, 1). É um caso excepcional de compenetração entre um povo e o seu bispo.

Os temas da sua pregação era inúmeros: as virtudes cristãs; o heroísmo e exemplo dos mártires; as solenidades do ano litúrgico; qualquer versículo da Bíblia eram temas suficiente para um longo sermão a Escritura abastecia Agostinho mesmo quando exortava à prática das virtudes ou exaltava um mártir ou celebrava um mistério do Senhor. Queria alimentar as suas ovelhas com a sua própria palavra. Não tinha à sua disposição a palavra de Deus? Esta e só esta, pretenderá transmitir aos seus filhos.

Objeto predileto desta atividade foram os pequenos, as crianças na fé: os catecúmenos, os quais se preparavam para receber o batismo. Ele instruía‑os durante os compridos dias da quaresma. Explicava‑lhes os artigos da fé, o credo que tinham de aprender de cor antes de serem batizados. Destas pregações aos catecúmenos saíram os mais formosos comentários ao Pai Nosso que igualmente tinham de aprender de cor antes de serem iluminados pela água batismal na mais sagrada de todas as noites: a noite de Páscoa. Através dos seus sermões poderem perceber ainda quão difícil se tornava para muitos aprender as poucas linhas do Credo ou do Pai Nosso. Ele exortava‑os e dava‑lhes normas sobre a maneira de proceder para que não se lhes esquecesse.

Lendo as suas homilias revive‑se um ambiente totalmente familiar. Era também muito importante o modo como se deviam comportar uma vez que já eram plenamente cristãos: o que deviam fazer, o que deviam evitar quando já pertenciam à Igreja de Cristo: "Agora que sois membros de Cristo, exorto‑vos e aviso‑vos. Temo por vós e não tanto por causa dos (maus) cristãos. Escolhei vós no povo de Deus a quem ides imitar" (Sermões, 224,1).

No entanto, não lhe era agradável "Ter que pregar, recriminar, admoestar, sentir‑me responsável de cada um de vós; isto é um fardo pesado, um grande peso para mim, uma dura fadiga" (Sermões, 339,4). A palavra de Deus atava‑o; nada dela podia deixar no esquecimento. Mesmo o que não agradava aos seus ouvintes tinha que proclamá‑lo e com maior energia.

Fruto da sua pregação, além dos Sermões, são os

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