Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

TUDO É GRAÇA

Dá‑me Senhor, o que pedes

e pede‑me o quiseres

Foi contra o pelagianismo que Agostinho travou a última e mais dura, das suas grandes polêmicas em defesa da fé da mãe Igreja. Três pessoas estão conotadas com este erro: Pelágio, de quem a heresia recebe o nome; Celéstio, que fez estalar a contenda e Julião de Eclana, o mais capaz e mais inteligente dos opositores de Agostinho, o qual continuou a polêmica, mesmo depois dos outros terem deposto as armas. Esta luta, que começou cerca do ano de 411, concluiu com a própria morte de Agostinho, quase vinte anos mais tarde. Esta surpreendeu‑o, de fato, antes de ter podido acabar uma volumosa obra, que por isso mesmo, tem por título: Obra inacabada contra Julião, bispo de Eclana. Incompleta, como está, consta de seis livros.

Se compararmos esta controvérsia com as outras grandes controvérsias: as dirigidas contra o donatismo e a contra o maniqueísmo, encontramos vários traços particulares. O primeiro, o caráter internacional por assim dizer. A disputa, que teve e sua origem em África, depressa se estendeu a Itália e até ao próprio Oriente. Fez‑se intervir o Bispo de Roma, o que nunca tinha acontecido nas contendas anteriores. Particular é também o fato de se ter levado a cabo, de forma quase exclusiva, no terreno literário, por meio de livros. Agostinho e os seus opositores conhecem‑se por notícias que outros enviam, pelos respectivos escritos, mas nunca chegaram a encontrar‑se face a face. É típico o elevado tom intelectual, o cristão mediano não estava apto a saber se existia erro e onde. O pelagianismo e a luta que se lhe seguiu foi apenas combatida por personalidades seletas; o povo cristão quase não foi posto em causa de forma direta.

Pelágio era um bom cristão, com desejos ascéticos. Aspirava ser perfeito, convencido de que podia chegar a sê‑lo. Visto que era possível, considerava‑o obrigatório, não só para si, mas para todos os cristãos. Ele propunha‑se reformar o povo crente, que se tinha relaxado um pouco nos seus costume, devido principalmente à grande multidão, aquela que, com a chegada de Constantino, se deixou batizar sem estar completamente convencida ou sem preparação suficiente.

Queria fazer do povo cristão uma comunidade fervorosa que cumprisse fielmente as leis de Deus. Deus tinha dotado o homem de liberdade; podia, portanto, cumprir livremente aquelas normas que Ele lhe exigia. Normas ou leis que se podiam conhecer claramente; não foi em vão que Deus no‑las tinha deixado escritas na Bíblia. Além disso, tem o bom exemplo de tantos santos profetas e patriarcas do Antigo Testamento. Daqui também conhece os castigos que Deus proporcionou aos que não são fiéis, o primeiro de todos, o sofrido por Adão. Pode imitar, antes de mais, o exemplo de Cristo, obediente ao Pai até à morte na Cruz. Para isso veio ao mundo: para nos dar o exemplo.

Se era isto o pensamento de Pelágio, onde está o erro, onde a heresia? Talvez não a tenhas visto, como também não se aperceberam muitos homens, incluindo bispos, do tempo de Agostinho. A ele coube‑lhe a sorte, queremos dizer, a inteligência de trazer à luz o erro de Pelágio, encoberto nas suas palavras. Não só o que expressava mas também aonde podiam levar os seus princípios e pressupostos.

Com efeito, ele viu detrás daquelas palavras que exortavam à santidade, o "inimigo da graça de Deus", a negação da mesma, o desprestigiador da obra de Cristo. Para Pelágio e seus sequazes, o homem era completamente livre, capaz de levar a cabo, por si próprio, o bem que se propusesse realizar. Nenhuma força o retraia, pelo menos interior. Admitia, no entanto, que o mau exemplo dos outros podia exercer um efeito negativo sobre nós. Por outras palavras, negava o pecado original, sim, Adão tinha pecado; mas o seu pecado não foi herdado pelos seus filhos. A eles apenas lhes legava o mau exemplo.

Compreende‑se, portanto, que negassem a necessidade absoluta do batismo para evitar as penas do inferno, ainda que fosse imprescindível para obter a glória de Deus. Nada havia no homem que tivesse de ser perdoado. Referimo‑nos às crianças porque os adultos têm, logicamente, de responder por todas as suas faltas. Concebiam o pecado como algo de superficial, uma escolha errada, que se pode apagar com outra escolha acertada, em conformidade com a vontade de Deus. Daqui outra figura de Jesus Cristo: era apenas um companheiro que nos tinha dado muito bom exemplo; um mestre que nos deu leis novas e mais perfeitas, mas não o Redentor. Qual a sua necessidade, se o próprio homem era capaz de curar os seus males? Que necessidade havia da graça? Que pouco tinha valido a morte de Cristo!

Isto não bastava a Agostinho. Tinha vivido com a experiência do pecado, da luta, da incapacidade de sobrevivência, se Deus não lhe tivesse estendido a mão. Donde provinha tal insuficiências? Deus bom não criou o homem bom? Sim, mas depois Adão pecou. Pecado gravíssimo, visto que vivia na mais completa felicidade. Ele, rico, arruinou‑se e tornou participantes da sua pobreza todos os seus descendentes, chamados a participar da sua riqueza. Todos herdamos o seu pecado. Como prova então os males que vemos à nossa volta. Todos sofremos, mesmo as crianças inocentes. Se não existisse neles um pecado, como é que Deus, que é justo, pode castigá‑los assim? Prova disso são também os vícios que nos arrastam: a inveja, o orgulho, a concupiscência, a morte, etc.

"A ser possível tentemos que os nossos irmãos não nos acusem de hereges, coisa que nós ao disputar com eles talvez pudéssemos fazer, se quiséssemos, mas no entanto evitamos. Sofra‑os ainda a piedosa Mãe (a Igreja) com as suas entranhas misericordiosas, para os sarar; guie‑os para os instruir e não os chorar mortos. Porque muito vão avançando: é demasiado, é intolerável, requer-se paciência para os agüentar. Não abusem da paciência da Igreja e corrijam‑se. Como amigos os exortamos, não porfiamos com eles como inimigos. Murmuram contra nós, suportamo‑lo. Já sei que me fizeram alvo das suas iras; sofro‑o. Mas não vão contra o amor das divinas letras, contra a regra da fé; não contradigam a verdade. Não ataquem a Igreja santa, que todos os dias com tanta solicitude se interessa pela remissão do pecado original nas crianças. É uma prática de muito bons fundamentos. Deve‑se suportar ao contendor que erre noutras matérias da Igreja; então o erro é tolerável mas este não deve chegar até minar o próprio fundamento da Igreja. Não chegou ainda a hora oportuna; talvez a nossa paciência ainda não seja censurável; mas também devemos temer que se nos acuse de negligência. Basta isto para a vossa caridade; vós que os conheceis tratai‑os como amigos, como irmãos, pacificamente, com amor e compaixão. Fazei quanto vos sugerir a vossa caridade para ganhá‑los, porque depois não haverá ímpios a quem amar" (Sermão, 294, 21).

A liberdade ficou recortada, limitada. Dentro do homem há algo que o arrasta para o mal. Não se trata apenas de mau exemplo de Adão pecador; mais ainda, dele recebemos uma debilidade interior, que nos torna impossível cumprir, por nós próprios, a lei do Senhor. A vontade não é suficiente, tem de ser empurrada. Não chega que Deus nos dê a conhecer as suas leis; necessitamos da sua força para as cumprir. Nem são suficientes os bons exemplos. Os maus arrastam‑nos tanto ou mais. Era preciso a vinda de Cristo, para que desse remédio à nossa enfermidade. Ele traz‑nos a graça que nos cura, que nos sara, que ajuda. Ele traz‑nos a força: "Vós, diz Agostinho aos pelagianos, enumerais muitos caminhos através dos quais Deus nos socorre, os mandamentos das Sagradas Escrituras, as bênçãos, as curas, mortificações, incitações e inspirações; mas que Ele nos dá o amor e que desse modo nos ajuda, isso não o dizeis " (Carta a Julião, III, 106).

Participamos da redenção de Cristo através do batismo; por isso é necessário. O batismo cura‑nos a ferida causada por Adão, mas deixa‑nos a fraqueza. · cura seguirá um longo período de convalescença que durará até ao fim da nossa existência terrena. Também durante este período necessitamos dos cuidados de Cristo médico. Necessitamos da sua ajuda. Sem Ele nada podemos fazer. Todos os nossos tempos são tempos de Cristo e nossos. "Quando Deus coroa os nossos méritos, coroa os seus dons".

Agostinho chegou até ao limite das suas forças na sua luta contra os "inimigos da graça de Deus". Eles não negavam a graça, mas sim a necessidade absoluta da mesma. E em defesa de tal necessidade Agostinho não cessou de agir: assistiu a concílios, escreveu cartas, fez intervir o Papa e acima de tudo refutou as más doutrinas em inúmeros livros. Ele descobriu a heresia e refutou com tanta força, com tanto excesso de trabalho e especulação, com tão profundo estudo da Escritura e da tradição cristã, que com razão lhe é dado o título de DOUTOR DA GRAÇA, que vai sempre junto com o outro de DOUTOR DA HUMILDADE. Que é o homem sem a graça de Deus?

No entanto, a vitória não foi fácil. Os inimigos tinham nível intelectual, apesar de a alguns, em certas ocasiões, lhes faltar nível moral. ·s razões especulativas juntavam‑se até os insultos. Mais de uma ver Agostinho perdeu a serenidade. Havia coisas pelas quais não podia passar. Por exemplo, que se metessem com a sua defunta mãe, chamando‑lhe "bêbeda", mal da infância, do qual a graça do Senhor a tinha livrado. A tenacidade de Agostinho fez com que fosse temido pelos seus contrários. E também odiado. É o maior elogio que lhe pode fazer São Jerónimo: "Para a frente! És conhecido em todo o mundo. Os católicos veneram‑te e olham‑te como a um novo fundador da fé e, o que é sinal de maior glória, todos os hereges te detestam" (Carta, 195).

Recordamos, entre as obras que Agostinho escreveu contra os pelagianos, as seguintes:

As conseqüências e perdão dos pecados

O Espírito e a letra

A natureza e a graça

O matrimônio e a concupiscência

Réplica a Julião (seis livros)

A correção e a graça

A predestinação dos santos

O dom da perseverança

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