Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

A VELHICE SEM DESCANSO

Vim para esta cidade na

flor da minha juventude.

Então era jovem, agora sou ancião

A velhice também bateu à porta de Agostinho e ele não teve outro remédio senão deixá‑la entrar. Velhice salpicada de horas de luz e momentos de amargura. Os monges, aquilo que mais amava, de toda a sua igreja, são fonte de preocupação. Em Hipona, algum, atreveu‑se a fazer testamento, tendo anteriormente feito profissão de pobreza absoluta. Já o lembramos. Em Hadrumeto queriam tirar conclusões exageradas da sua teoria da graça. Outro mosteiro, este de monjas, após o falecimento da irmã de Agostinho, que tinha estado muito tempo à frente do mosteiro, não aceitam a nova superiora. Agostinho teve de intervir combinando caridade com firmeza. Ao mesmo tempo, tem de lamentar um engano seu. Contra o parecer de todos, nomeou bispo de Fúsala um jovem, Antonino, que depois resultou num tirano para a sua comunidade. Teve de suar para desmanchar a embrulhada e contrariar as manobras do culpado.

Mas nem tudo é amargura. Da Terra Santa acabaram de chegar os restos do mártir Santo Estevão. A África toda enche‑se de capelas em sua honra. Naqueles momentos de angústia, os pobres habitantes procuram um protetor celeste; não Romaniano, mas Estevão. Os prodígios multiplicam‑se; as curas sucedem‑se umas às outras. Agostinho entusiasma‑se e manda recolher dados sobre cada uma delas. Há que publicá‑las; há que dar‑lhes publicidade. Deus não abandona a sua Igreja, os seus filhos. Sente‑se inspirado a escrever poesia para ornamentar as paredes da capela que Hipona construiu para o seu generoso protetor.

A sua atividade intelectual não se diminui. Responde aos que procuram a sua ciência como remédio capaz de resolver todas as questões. Acaba a importante obra A Doutrina Cristã; termina a monumental Cidade de Deus; escreve um importante catálogo de heresias ‑ oitenta e oito ‑ antigas e contemporâneas, a pedido de um diácono de Cartago. Muitas delas refutou ao longo da sua vida. Agora ocupa‑se dos arianos e, sobretudo, dos pelagianos, os últimos hereges citados no catálogo. Emprega muitas horas do dia a combater Julião de Eclana. A compor a sua doutrina sobre a graça.

Não lhe chega o tempo. Deseja renunciar a muitos assuntos de administração temporal. Começam a faltar‑lhe as forças físicas. Deseja ter mais tempo livre para a meditação das Sagradas Escrituras e rever os seus escritos. Nomeia um sucessor em 426. Este será o seu substituto e levará sobre os ombros grande parte do peso da diocese. Agostinho poderá dedicar‑se aos seus afazeres. O seu nome é Heráclio, um dos clérigos do seu mosteiro, o construtor da memória de Santo Estevão.

Agostinho sabe que a morte se aproxima. Enquanto se é criança pode‑se esperar ser jovem,; depois adulto, homem maduro, por fim ancião. Mas quando se é ancião não se pode esperar nada mais que a morte. Mental e fisicamente conservou‑se ativo. Era consciente do prestígio que as suas obras tinham alcançado. Não ignorava que iam ser o alimento espiritual para os corações vindouros. Ao mesmo tempo sabia as muitas mudanças que as suas idéias tinham sofrido. "Progredindo escrevia e escrevendo progredia". O que noutros tempos tinha sido a ponta firme do seu pensamento agora achava que era erro. Os inimigos não tinham escrúpulo em servir‑se da imprecisão dos seus primeiros escritos, ou simplesmente atribuir‑lhe o que nunca tinha afirmado. Assim empreende a titânica obra de rever todos os seus escritos. Lê‑os de novo. Daqui sai a obra intitulada Revisões. Única e original, como as Confissões, Solilóquios, a Cidade de Deus. Nela indica‑nos quando foi escrita cada uma das obras, em que ocasião e com que finalidade, o que encontra que não está consoante o seu pensamento de homem já maduro; o que ele disse e o que os hereges o fazem dizer. Livro fundamental para conhecer Agostinho. A morte surpreendeu‑o sem o ter deixado acabar. Ficaram‑lhe por rever as suas cartas e os seus muitíssimos sermões e trabalhou até aos últimos momentos da sua vida. De dia compunha a resposta a Julião; de noite revia os seus escritos.

A África romana ia sucumbir. Procedentes de Espanha, atravessando o estreito de Gibraltar, tinham passado a terra africana, os vândalos capitaneados por Genserico. Uma a uma iam caindo todas as cidades. O poder romano não era capaz de lhe oferecer resistência. As cenas de horror lembravam as que Agostinho tinha ouvido contar quando do saque de Roma. Os bispos, entre eles Posídio, acorrem a Hipona. Agostinho convida‑os a não abandonarem os fiéis, de quem são pastores. Por fim, os invasores chegam a Hipona. Cercaram‑na durante quatorze meses. Após três meses, Agostinho adoece, aproveita a doença para fazer penitência. "Pondo os cadernos na parede, em frente dos olhos, dia e noite, o santo doente olhava e lia, chorando copiosamente. E, para que nada o distraísse da sua ocupação, mas uns dias antes de morrer, pediu‑nos, na nossa presença, que ninguém entrasse a vê‑lo fora das horas em que o visitavam os médicos ou lhe levavam a refeição" (Vida, 31).

Prestes a cumprir 76 anos, a 28 de Agosto de 430, entregou a sua alma a Deus. O seu coração inquieto conheceu o descanso. O seu peso, o seu amor, impelia a sua queda para o alto, para Deus. N'Ele encontrou o repouso procurado, a paz do eterno sábado.

"O corpo com o seu peso tende ao seu lugar. O peso não vai apenas para baixo, mas sim para o seu lugar. O fogo tende a subir, a pedra tende a descer. Pelos seus pesos se movem e vão ao seu lugar. O azeite derramado levanta‑se sobre a água a água derramada sobre o azeite submerge‑se debaixo dele. Pelos seus pesos se movem e vão ao seu lugar.

As coisas não bem ordenadas estão inquietas; quando se as põe em ordem, descansam.

O meu peso é o meu amor; onde quer que vá sou levado por ele. O teu dom incendeia‑nos e leva‑nos para cima; atrevemo‑nos e subimos...

Com o teu fogo atrevemo‑nos e caminhamos, porque vamos para cima, para a paz de Jerusalém; porque me ofereci quando me disseram: vamos para a Casa do Senhor. Ali nos colocará a tua boa vontade e não queremos outras coisas senão permanecer ali eternamente" (Confissões, XIII, 9, 10).

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