Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

O MISTÉRIO DE DEUS

Quem isto ler, se tem a certeza, avance comigo;

indague comigo, se duvida: volte a mim,

se reconhecer o seu erro e endireite os meus passos quando me extravie

A maior parte da obras de Santo Agostinho tiveram a sua origem na vida da Igreja. Defesa da fé, refutação dos erros dos hereges, ensino dos fiéis, exortação aos indecisos, condescendência ao amor que a todos devia; estavam sempre ao serviço da mãe Igreja.

Não obstante, Agostinho amadurecia projetos no seu coração. Um deles, O Tratado sobre a Santíssima Trindade, o De Trinitate. Uma da poucas obras agostinianas escrita por necessidade interior do santo, sem causa exterior imediata que o impulsionasse a fazê‑lo. A obra era grandiosa na sua concepção e foi‑o na sua realização. Consta de 15 livros. Empregou mais de 20 anos na sua composição. "Comecei‑os na minha juventude e conclui‑os sendo já velho." (Carta, 174). O tempo escasseava. Outras necessidades urgentes da Igreja obrigavam‑no a interromper continuamente o trabalho. Sobre o assunto já se tinha escrito muito, mas quase tudo em grego, língua que ele não dominava. As dificuldades aumentavam ao tentar encontrar os códices. A obra tinha, portanto, de amadurecer à base do tempo, da meditação. Sem dúvida a mais profunda de quantas escreveu o santo, revela a sua enorme capacidade de reflexão e especulação.

Como todos os seus escritos, também este gozou de uma aceitação sem limites. Compreende‑se. A sua fama tinha ultrapassado as estreitas fronteiras da sua diocese; tinha‑se estendido por toda a África e atravessado o mar. Os seus admiradores mostraram‑se impacientes. Até conseguiram roubar‑lhe o manuscrito antes de ele o ter completado e revisto. Gesto de admiração que não agradou muito a Agostinho que prometeu deixá‑la incompleta. Mas ele não era pessoa para cumprir promessas nascidas de um impulso momentâneo. Bastou que os amigos lhe pedissem a conclusão do tratado para que não soubesse recusar. Assim concluiu a tarefa.

Esta obra foi sem dúvida o maior monumento que Agostinho levantou a Deus: Deus Uno e Trino. Unidade de essência e Trindade de Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Cada uma das Pessoas é Deus e no entanto não existe mais que um só Deus. Assim aparece claramente nas Sagradas Escrituras, a razão humana pode chegar a vislumbrá‑lo. Trindade que deixa vestígios da sua presença em toda a criação; de modo especial no homem, especialmente nas suas partes superiores: memória, inteligência e vontade. Trindade sempre presente onde há amor. Isto não seria possível sem um que ama, sem algo amado e sem o próprio amor. Não é Deus amor?

Deste modo Agostinho apresenta a resposta mais completa e harmônica ao Arianismo. Doutrina herética que durante o século anterior tinha atormentado a Igreja, negando o dogma mais intocável que havia: o da Santíssima Trindade. Jesus ‑ dizia ‑ não foi filho natural de Deus; foi‑o como os outros homens, por adoção. Só o Pai é Deus; o Filho e o Espírito Santo são as mais excelentes das criaturas, mas criaturas apenas.

A luta, no entanto, teve de prosseguir. O santo gasta engenho e agudeza, a par de um conhecimento profundo da Palavra de Deus, para levá‑los à verdadeira fé ou, pelo menos, para impedir que os que não estavam contagiados se manchassem com o lodo do erro. Na época de Agostinho o arianismo ainda não estava muito arreigado em África, o que eqüivale a dizer que não se tinha implantado. Afirmava‑se com a chegada dos vândalos. No entanto, nos últimos anos da sua vida teve de pôr‑se a escrever para sair ao encontro das afirmações de alguns arianos, não duvidando em desafiá‑los para debates públicos, na presença de pessoas que escreviam o que se dizia. Coisa que os hereges nem sempre achavam do seu agrado, ao ficar escrito o que afirmavam, perdiam a liberdade de mentir e declararem‑se vencedores, quando a realidade os declarava derrotados.

A obra de Agostinho é um esforço gigantesco para compreender o que já crê. A fé é o princípio, a compreensão é a meta aonde pretende chegar: "Crê para que possas entender". A fé é o degrau para chegar ao andar superior onde é possível conhecer o mistério íntimo de Deus. Esse Deus que invoca, ao qual dá graças e pede perdão nas Confissões; na Cidade de Deus, o Deus, meta e satisfação das aspirações do homem; de tudo que se encontre insatisfeito, quer dizer de todos; simplesmente, Deus.

"Senhor meu e Deus meu, minha única esperança, ouve‑me para que não sucumba no desalento e deixe de te procurar. Anseie sempre pelo teu rosto com ardor. Dá‑me forças para a procura. Tu que fizeste que te encontrasse e me tens dado esperanças de um conhecimento mais perfeito. Diante de ti está a minha ciência e a minha ignorância; se me abres, recebe quem entra; se me fechas, abre ao que chama. Faz que me lembre de ti, te compreenda e te ame. Aumenta em mim estes dons até á minha completa reforma" (conclusão da obra).

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