Judas batiza? É Cristo quem batiza!
Quando nos referimos à África em que viveu Santo Agostinho, não podemos falar da Igreja sem acrescentar mais qualquer coisa. Como conseqüência da perseguição de Diocleciano deu‑se uma cisão na Igreja Africana. A faísca saltou ao ser consagrado Ceciliano, bispo de Cartago, consagração essa efetuada por alguém que, para evitar o martírio, tinha entregue os Livros Sagrados, sabendo que iam ser lançados às chamas. Por isto, um grupo de bispos negou o valor de tal consagração e separou‑se da unidade da Igreja formando a pars Donati, a Igreja donatista, assim chamada pelo nome do segundo bispo cismático, Donato.
A partir daquele momento, em quase todas as cidades do Norte de África, apesar de todas adorarem o mesmo Deus, crerem no mesmo Jesus, proclamarem a mesma esperança, lerem as mesmas Escrituras, administrarem os mesmos sacramentos, etc., existiam duas igrejas, dois bispos, dois cleros, duas celebrações simultâneas do culto divino. Por outras palavras, não existia a unidade. E foi assim que Agostinho encontrou Hipona, quando chegou para exercer o ministério sacerdotal e episcopal. Como em tantos outros lugares, também ali o donatismo era a Igreja com mais força, enquanto os católicos constituíam uma minoria.
"Somos a Igreja pura, imaculada, sem mancha". Assim diziam os donatistas. Auto‑proclamavam‑se a Igreja dos mártires devido às perseguições que sofreram, por parte do imperador, como hereges e cismáticos. Consideravam‑se como o povo eleito, que se tinha preservado sem se contaminarem com o mundo impuro. Portanto, a única Igreja de Cristo, a única que possuía o Espírito Santo, a única que podia dá-Lo na administração dos sacramentos. Só seria válido o batismo se fosse administrado por um donatista, porque pertencia a uma Igreja pura, que possuía o Espírito Santo.
Ao mesmo tempo, consideravam a Igreja Católica como a Igreja dos pecadores, dos "traidores", dos que entregaram os Livros Sagrados, Igreja perseguidora, porque o imperador a apoiava, não a perseguida como o tinha sido a de Cristo anteriormente. Portanto, encontrava‑se desprovida do Espírito. Os sacramentos administrados pelos católicos eram, em conseqüência, nulos. Quem pode dar o que não tem? Como é que um, que não é santo, pode fazer outro santo? Daqui, que todo o católico que, desertando, se passava para as fileiras de Donato, fosse por eles rebatizado.
A restabelecer a unidade do redil de Cristo dedicou Agostinho muitos dias e muitos anos da sua vida. Pregava, escrevia livros, rebatia os dos contrários, procurava debates com eles, na presença dos fiéis de um e outro grupo; escrevia folhetos e colocava‑os à porta da basílica para que todo aquele que entrasse pudesse tomar conhecimento do assunto; escrevia poesias para que deste modo, com música, as pessoas retivessem melhor a posição dos católicos, etc. Valia‑se de todos os meios que a sua rica inteligência e imaginação lhe ofereciam, para afastar os católicos dos donatistas e atrair estes à Igreja Católica.
Aos católicos informava, com documentos na mão, como se tinham passado, na realidade, as coisas. Mostrava‑lhes as calúnias dos adversários. Demonstrava‑lhes que aquilo de que eram acusados pelos donatistas, estes o haviam cometido anteriormente. Mas, acima de tudo, o seu afã era devolver a unidade a quantos se gloriavam do nome de cristãos, restituir à Igreja a unidade que Cristo desejou para ela e pela qual tinha orado ao Pai.
Mostrou aos donatistas que Cristo redimiu todo o mundo com o seu sangue, não apenas aos africanos e que, portanto, a Igreja de Donato não podia ser a verdadeira. Tentou fazer‑lhe ver como a Escritura tinha anunciado a expansão da Igreja por todo o globo, haviam de querer todos os povos e raças. Esforçou‑se por lhes demonstrar que era um sonho a Igreja pura, sem mancha, que eles pretendiam; que isso só se realizará na vida futura, enquanto aqui, segundo o Evangelho, a cizânia está sempre misturada com o trigo; que na pesca do Senhor sempre houve peixes bons e maus.
Sobretudo pôs‑lhes ante os olhos a sua presunção: querer fazer depender a obra de Cristo da liberdade humana. Porque um homem é pecador, já Cristo não pode atuar por meio dele? Não pode Ele, todo poderoso, escolher o instrumento que deseje? Cristo é superior a tudo e serve‑se mesmo dos pecadores para conceder a sua graça. Os católicos possuem o Espírito com mais direito que os donatistas, porque não se separaram do Corpo de Cristo, porque têm amor e não romperam a unidade. Quando os católicos administram os Sacramentos, estes são válidos. Porque, "Pedro batiza? É Cristo quem batiza. Judas batiza? É Cristo quem batiza." Quem batiza é sempre Cristo, por meio dos homens, mesmo pecadores. Como Ele é Santo, Ele faz santos. Quem dirá que é inválido o sacramento administrado por Cristo? Quem se atreverá a declará‑lo nulo? Tal é a doutrina de Agostinho. Portanto não se deve repetir. Cristo ao batizar pôs na alma do cristão um selo que não se apagará jamais, ainda que ele renegue a Cristo. Cristo tomou posse dele para sempre.
Agostinho estava disposto a tudo com o fim de restabelecer a unidade. Disposto até a deixar o episcopado de Hipona ou a compartilhar a cátedra com o colega donatista. A pergunta surge: conseguiu o seu objetivo? Em Hipona, conseguiu, em poucos anos, que os católicos fossem maioria; foi reduzindo ao silêncio os seus opositores. A sua atuação incansável no resto de África preparou o caminho para a desaparição que teve lugar, oficialmente, em 411, depois de um século de luta, com a ajuda da autoridade imperial. Agostinho era temido por todos e por todos evitado. Até lhe prepararam armadilhas para o matar, das quais se livrou graças a um erro do guia.
"Falem o que quiserem contra nós: nós amamo‑los ainda que não queiram. Compreendem que não têm fundamento na sua causa e dirigem as suas línguas contra mim. Muitas são as coisas que sabem e muitas as que ignoram. As que sabem são já passadas, pois fui algum tempo néscio, incrédulo, afastado de qualquer boa obra. Não nego que, louco e insensato, estive em erro perverso, mas quanto não nego a minha vida passada tanto mais louvo a Deus que me perdoou. Por quê, ó herege abandonas a tua causa e te enfrentas com o homem? Que sou eu? Que sou? Acaso sou eu a Católica? Por ventura sou eu a herança de Cristo estendida por todas as nações? Basta‑me estar dentro dela. Censuram‑me as minhas maldades passadas, que fazer de extraordinário? Mais severo sou eu com os meus vícios que tu; o que tu vituperaste, eu condenei. Oxalá quisesses imitar‑me para que o teu erro se fizesse nalgum tempo passado! Aqui vivi mal, confesso. E enquanto gozo da graça de Deus, que direi das minhas iniqüidades passadas? Doem‑me? Doer‑me‑ia se ainda permanecesse nelas. Mas que direi então? Alegro‑me? Também não posso dizer isso. Oxalá nunca tivesse cometido tal coisa!" (Comentário ao Salmo 36, III, 19).
Sempre foi benévolo com eles. Sempre esperou levá‑los à unidade sem o uso da força. Recusava que se os obrigasse a passar para a Católica. Sempre pediu misericórdia para eles. Sempre foi contrário à pena capital, mesmo para os delitos comuns. Nunca queria vê‑la aplicada. A sua atividade foi ininterrupta para conseguir que se mitigassem as penas dos que estavam sob o rigor da justiça.
Contudo, no final da luta aceitou o uso da força para conduzi‑los á unidade da Igreja. Mas só depois de ter visto que de outro modo os êxitos eram muito relativos. Depois de conhecer que muitos não passavam para a Católica, apesar de convertidos, por medo aos seus antigos companheiros e suas vinganças. Depois de ter observado a alegria de algumas aldeias que tinham sido obrigadas a abandonar o donatismo. Se aceitou o apoio da força imperial deve‑se, antes de mais, a sentir‑se pressionado pelos pareceres de muitos dos seus companheiros no episcopado. Estes, por sua vez, com tal atitude, procuraram salvar a sua própria vida que viam ameaçadas por uma parte dos donatistas: os fanáticos circunceliões.
Depois de 411, o donatismo deu‑lhe menos trabalho. A Igreja tinha conseguido a unidade. Não só pela força. A situação estava já preparada pela intensa atividade de Agostinho. Assim, o bispo de Hipona conseguiu restabelecer o que mais amava para a Igreja de Cristo: a unidade. Se não existe unidade não há amor. Se não há amor, ali não está Cristo e por tanto não se pode falar da Igreja de Cristo. E onde não está Cristo, que resta?
Das muitas obras escritas contra os donatistas recordamos:
Salmo contra os donatistas
Réplica à carta de Parmeniano
O batismo contra os donatistas
Réplica ás cartas de Petiliano
A unidade da Igreja.
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