Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

OS PROBLEMAS DA INTELIGÊNCIA

Antes duvidaria de que vivo

Agostinho estava atormentado não apenas por estas hesitações sobre o plano de vida a realizar. Outros problemas de ordem puramente intelectual ocupavam a sua mente. O primeiro de todos: como conceber o ser de Deus? Afastava a idéia de que Deus tivesse forma de homem; ao mesmo tempo dava como certo que o ser divino era incorruptível, imutável. Mas sendo incapaz de se representar um ser espiritual, via‑se obrigado a imaginá‑lo como algo corpóreo, que se estendia pelo espaço. As imagens que circulavam pela sua mente eram as mesmas que lhe passavam pelos o olhos.

Entretanto continuava a procurar razões e argumentos para afastar de uma forma definitiva o fantasma do Deus maniqueísta, e os outros que se lhe seguiam, segundo uma lógica precisa. Preocupava‑o de um modo especial o problema do mal. Quem tinha plantado no seu interior "um alfobre de amargura", dado que tinha sido criado por Deus, que era extremamente doce? Com tais pensamentos afundava‑se cada vez mais e quase se afogava, mas já sem se submergir naquele "inferno do erro maniqueísta".

A ignorância em torno da origem do mal encontrava‑se unida a não poucas certezas; algumas nunca o tinham abandonado; outras reconquistadas naquele período de pesquisa e reflexão. "Eu ‑ são palavras suas ‑ continuava a procurar a origem do mal sem encontrar saída. Mas Deus não permitia que as vagas daqueles pensamentos me afastassem da fé pela qual cria na sua existência, que o seu ser não estava sujeito a qualquer mudança, que tinha providencia de todos os homens e que os havia de julgar. Conservava a fé em Jesus e acreditava nas Sagradas Escrituras tal como a Igreja as explicava. Estava já convencido de que nelas Deus tinha posto o caminho para a salvação eterna" (VII, 7, 11).

Depressa se lhe aclararam os enigmas e se somaram às certezas. Quis Deus que caíssem nas suas mãos os livros de alguns filósofos neoplatônicos. Um famoso orador pagão, Mário Vitorino, tinha‑os traduzido do grego para o latim e tinha‑os tingido do Evangelho. Tais livros resolveram‑lhe problemas que pouco antes lhe pareciam quase insolúveis. Permitiram‑lhe conhecer o verdadeiro ser de Deus, ser espiritual. Deus fez‑lhe ver algo que antes não era capaz de ver. Com expressão sua, Deus deslumbrou os seus olhos débeis, reverberando em cheio neles, e estremeceu de amor e de horror. Compreendeu que se encontrava numa região distante donde Deus lhe falava para lhe dizer "Sou alimento de grandes: cresce e comer‑me‑ás. Mas tu não me transformarás em ti, como o alimento da tua carne, mas sim, te transformarás tu em mim" (VII, 10, 16).

A certeza adquirida foi absoluta e total. Ouviu isto "como se ouvem as coisas no coração, sem poder de modo algum duvidar. Antes de duvidar da existência daquela verdade, duvidaria que estou vivo" (idem). Descoberto o verdadeiro Deus, descobre o verdadeiro ser das coisas, participação do ser de Deus, que portanto, são boas como Ele e que só a sua existência é um canto de louvor a quem as criou.

Ao mesmo tempo, encontrou soluções para o problema do mal. O mal físico, lógica conseqüência do fato de que a criação não é Deus. Todo o criado participa do ser, não é o ser; num sentido é e noutro não é. Neste não‑ser consiste o mal; é a falta de perfeição. Também achou solução para o mal moral. Não é outra coisa senão um desvio da vontade, que se afasta de Deus para se voltar para o que não é Deus, para as criaturas.

Os progressos realizados eram grandes, mas o caminho ainda não estava livre para se entregar totalmente a Deus. Já não amava um fantasma no lugar de Deus, mas sim a Deus mesmo. Mas alguma coisa ainda o impedia de gozar com plenitude e de se confiar sem reservas. Era o peso do hábito carnal que o mantinha apegado à terra.

Agostinho tinha descoberto a Deus, pátria e gozo definitivo. Averiguou para onde deve caminhar mas ignora por onde; desconhece o caminho que conduz, não apenas a vislumbrar a pátria bem‑aventurada, mas também a habitá‑la.

O caminho não é outro senão Jesus. Mas d'Ele tinham Agostinho e Alípio uma opinião errada. Ainda não sentiam a respeito de Cristo o mesmo que sentia a Igreja. Enquanto ela vê em Jesus o Filho de Deus, o Verbo do Pai e, portanto, Deus como Ele, Agostinho via n'Ele um homem extraordinário cuja sabedoria ninguém podia igualar; homem extraordinário também conquanto nascera maravilhosamente de uma virgem para dar‑nos o exemplo de como desprezar as coisas terrenas para alcançar as eternas. Por tudo isto tinha merecido ser considerado como um grande mestre. Mas ainda não compreendia o que queria dizer aquilo que tantas vezes ouvira: o Verbo se fez carne. Mais ainda, nem o podia suspeitar. Como é possível a sua ignorância neste campo? Não lhe tinha Mônica ensinado a verdadeira fé da Igreja? Tão longe o tinha levado o seu erro?

A solução definitiva encontrou‑a no único sítio onde a podia encontrar. Depois de lidos os livros dos platônicos, pôs a ler com entusiasmo as Sagradas Escrituras, em especial o apóstolo S. Paulo. Começou então a compreendê‑las. Já não via contradição entre uns livros e outros, entre o Antigo e o Novo Testamento. "Desvendou‑se a meus olhos ‑ dirá ‑ o único rosto das castas palavras de Deus e aprendi a alegrar‑me com temor" (VII, 21, 27). Que diferença entre esta leitura e a primeira vez que teve acesso à Bíblia! Não foi em vão que tinham já passado mais de dez anos de angústias e de fome espiritual.

Ultrapassado o materialismo, as dúvidas da sua inteligência estavam dissipadas. Seria capaz de se entregar a esse Cristo totalmente descoberto na sua divindade? Quem lhe iria impedir tal generosidade? Melhor, quem o ajudaria a dar o salto vital até às mãos de Deus?

Nenhum comentário:

Postar um comentário