Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

TUDO É BOM

Eu não posso ser cruel convosco

Durante o seu sacerdócio e episcopado, Agostinho continuou a tarefa que encetara mal fora batizado: refutar o maniqueísmo, a religião que o teve prisioneiro durante nove anos. Ninguém se achava em melhores condições que ele, para o fazer. A sua adesão tinha sido fervorosa e com exemplar aplicação dedicara‑se à leitura dos livros da seita.

O maniqueísmo, grupo religioso procedente da Pérsia, tinha‑se difundido, com surpreendente rapidez, por todo o império romano do oriente e ocidente. A clandestinidade tinha sido o seu meio de vida normal. Proscrito pelas leis imperiais, os pagãos olhavam‑no com horror e os cristãos ortodoxos com temor e ódio. Era um concorrente perigoso; também ele se fazia passar por cristão, aceitando a seu modo o Novo Testamento e recusando o Antigo como ignominioso.

A doutrina de Manes, o seu fundador, baseava‑se no dualismo; no começo existiam dois princípios, dois reinos, inimigos e irreconciliáveis entre si; um bom e outro mau; o "reino da luz" e o "reino das trevas". Este último, invejoso da felicidade do primeiro, ataca‑o. O outro, para se defender, entrega‑lhe uma parte de si próprio, que é instantaneamente devorada pelo princípio mau. Uma parte da luz encontra‑se aprisionada nas trevas. É neste momento que começa a história. A criação do mundo foi levada a cabo para executar a libertação. Todos os seres vivos contêm esses dois princípios: a matéria, intrinsecamente má porquanto é formada por elementos do reino das trevas, e uma parte de luz, portanto boa.

O homem não é excluído, dentro de si há um elemento bom e outro mau, que obram respectivamente o bem e o mal. Para o homem maniqueísta não existe liberdade. Não é o homem quem peca, mas sim o princípio mau que habita no seu interior. Não é de estranhar que Agostinho achasse esta doutrina atraente, que lhe explicava, por um lado, a origem do mal ‑ não procede do Deus bom, coisa inconcebível ‑ e, por outro, acreditava que o libertava da responsabilidade dos seus pecados.

"Sejam cruéis convosco os que ignoram quanto custa encontrar a verdade e quão difícil é evitar os erros.

Sejam cruéis convosco os que desconhecem quão poucas vezes e com quanta dificuldade acontece poder superar as imagens carnais com a serenidade de uma mente piedosa.

Sejam cruéis convosco os que não sabem o que custa sarar o olho interior do homem, de modo que possa ver o seu sol. Não este a quem vós adorais, dotado de um corpo celeste, que brilha e emite os seus raios aos olhos carnais de homens e animais, mas aquele de quem escreve o profeta: nasceu‑me o sol de justiça; e no Evangelho: a luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo.

Sejam cruéis convosco o que desconhecem quanto é preciso suspirar e gemer até chegar a poder compreender alguma coisa de Deus.

Finalmente, sejam cruéis convosco os que nunca se viram apanhados no erro no qual vos vêem a vós.".

Contudo, o maniqueísmo tinha uns deveres muito concretos: Libertar o seu deus. Libertar do poder da matéria a partícula de luz presente em toda a criação; nas pedras, nas plantas, nos animais, no próprio homem. No maniqueísmo não é Deus que redime o homem; é o próprio homem que redime a Deus!

Daqui procedem as normas, a que deve ajustar a sua conduta todo o fiel maniqueu: os ouvintes, categoria inferior, na medida do possível, e os eleitos, ou perfeitos, de forma absoluta. Tais normas eram contidas no que eles chamavam os três selos: da boca, das mãos e do ventre. Pelo selo da boca era‑lhes proibido blasfemar e comer carne por se considerar que pertencia ao reino das trevas. Pelo selo das mãos era‑lhes proibido tirar a vida a qualquer ser vivo, mesmo vegetal, por exemplo: apanhar figos, porque era maltratar a Deus. O do ventre proibia‑os de contrair matrimônio, pois gerar filhos significava aumentar o número de prisões para a divindade.

Os eleitos, a quem era proibido romper qualquer destes selos, eram alimentados pelos ouvintes e de forma totalmente vegetariana. Nas oficinas dos seus estômagos efetuava-se a desejada libertação. A partícula de luz que tinha recobrado a liberdade era levada ao reino do Pai. O meio de transporte era o sol e a lua que periodicamente efetuavam o seu percurso. Quando esta se achava em quarto crescente, ia; quando em minguante, vinha. Assim seguiam com uma série enorme de mitos que Agostinho se encarregava de pôr a ridículo, interpretando‑os em sentido literal.

Como nas restantes controvérsias, os caminhos seguidos por Agostinho para combater o erro foram múltiplos: livros, pregação, encontros pessoais com membros do grupo opositor, debates públicos, etc..

Não é difícil enumerar as verdades, das quais Agostinho se tornou advogado contra os maniqueus. Antes de mais demonstrou o caráter de fábula e mítico de toda aquela construção, que se opunha ostensivamente a todas as afirmações da ciência, em especial da astronomia. Aos que, no seu modo de ver, dotes científicos exigiam que acreditassem no que ia contra as verdades mais certas e seguras das ciências.

Nega‑lhes o nome de cristãos. Não pertence aos que não aceitam íntegros o Antigo e o Novo Testamento, nem os que recusam a Cristo, tal como aparece nos Evangelhos, quer dizer, um Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, de carne e osso. O Cristo deles era uma espécie de fantasma, sem carne, ainda que a aparentasse. Também não se podiam arrogar o nome de cristãos aqueles que negavam verdades fundamentais que Agostinho defendeu, com afinco, contra eles.

Princípio Supremo só há um, o Deus bom, criador de tudo quanto existe, com absoluta liberdade. Criador por amor, não por necessidade.

Por conseqüência, a criação é boa. Tudo quanto existe, enquanto criado por Deus, é bom.

O mal moral tem a sua origem na vontade do homem, que decidiu livremente afastar‑se de Deus. Não procede de nenhum outro princípio. O mal físico procede do próprio ser de criaturas, ser deficiente, não pleno como o de Deus.

O homem é livre para escolher o bem ou o mal. Deus ao criá‑lo dotou‑o com esse dom. Nenhuma força irresistível o ata. O mal que o homem sente dentro de si e que o inclina ao pecado, teve a sua origem no pecado de Adão.

O verdadeiro Redentor é Cristo, não o homem. O redimido é o homem, não Deus.

Os três selos maniqueus são um absurdo evidente. A carne é obra de Deus: portanto é boa e pode comer‑se. A criação foi posta pelo Senhor nas mãos do homem para que este se sirva dela. Nada impede matar animais ou servir‑se de plantas para o próprio sustento. O matrimônio é coisa santa e boa. Proibi-lo é afastar‑se da verdade. O que não obsta que muitos, procurando uma perfeição superior renunciem a ele, para se entregarem total e integralmente a Deus.

"Mas eu, que inchado por uma enorme jactância durante muito tempo, por fim pude contemplar em que consiste aquela sinceridade que se percebe sem necessidade de fábulas vazias de conteúdo.

Que miserável, mal merecia com a ajuda de Deus vencer as vãs imaginações da minha mente presa pelas mais variadas opiniões e erros.

Que, para dissipar as névoas da minha mente, demorei tanto em submeter‑me ao médico, cheio de clemência que me chamava e me afagava.

Que chorei por muito tempo para que a Substância imutável que não pode admitir mácula alguma, que fala nas Sagradas Escrituras, se dignasse persuadir o meu coração.

Que, finalmente, procurei com curiosidade todas aquelas ilusões, que vos têm atados e prisioneiros na força do hábito, que as escutei com muita atenção e as acreditei sem tirar delas proveito e trabalhei sem descanso para convencer a quantos pude e defendi‑as com constância e valentia contra outros.

Eu não posso ser cruel convosco, a quem agora devo suportar como, noutro tempo, a mim próprio e com quem devo ter tanta paciência quanta tiveram comigo aqueles que viviam a meu lado, quando errava no vosso erro, cheio de raiva e cegueira." (Réplica à Carta de Manes, chamada "Do fundamento", 2‑3, 3‑4).

Na sua luta contra os maniqueus, Agostinho serve‑se de todos os meios de que dispunha a sua ótima preparação. Dá razões, apresenta textos bíblicos aceites pelos adversários, mostra os despropósitos que se seguem da sua doutrina, do seu modo de obrar, ironiza, satiriza, etc., mas, ao mesmo tempo respeita‑os. A sua intenção era destruir o erro e salvar o que erra, recuperá‑lo para a verdadeira fé de Cristo. Princípio que foi norma constante da sua vida. "Odeia o erro e ama o homem que erra". Esta é a sua doutrina: "não ames no homem o erro, mas o homem, pois o homem é obra de Deus; ao contrário o erro é obra do homem. Ama a obra de Deus e não ames a obra do homem. Quando amas o homem, arranca‑lo do erro; quando o amas ajuda‑lo a emendar‑se". (Comentário à Carta I de João, 7, 11).

Entre as obras contra o maniqueísmo recordamos:

Os costumes da Igreja Católica e os dos maniqueus.

Réplica à Carta "do Fundamento".

Réplica a Fausto, o maniqueu (33 livros).

A natureza do bem.

Resposta ao maniqueu Secundino.

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