Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

UMA INQUIETAÇÃO: DESCOBRIR A VERDADE. DE NOVO EM TAGASTE

Tive um amigo a quem amei excessivamente

Quando Agostinho voltou para casa de sua mãe ‑seu pai tinha morrido três anos antes‑ não voltou só. Viajavam com ele as teias de aranha do erro maniqueísta, que o impediam de ver a verdade e lhe fecharam as portas da casa materna.

Com ele viajava também uma mulher, cujo nome nunca nos quis revelar, e o filho que lhe tinha dado, a quem chamou Adeodato, que significa "dado por Deus".

Junto com a "superstição" maniqueísta, acompanhava‑o a fé nos astrólogos.

Mas principalmente era acompanhado por tudo o que tinha acumulado nos estudos daqueles anos, feitos com seriedade e que, no dia de amanhã, tanto o iriam ajudar. Dedicou‑se ao ensino, também sem dúvida para ganhar o seu sustento e não ser pesado a Romaniano, sempre benfeitor, que lhe tinha oferecido a sua hospitalidade. Dava aulas de retórica, isto é, ensinava a arte de bem falar. Com expressões suas, "a arte de vencer pela palavra" ou "a arte de enganar" (IV, 2, 2). Este juízo, tão severo, é emitido por Agostinho, já bispo. Sem dúvida ele desempenhava o seu ofício com dignidade e seriedade. Põe Deus por testemunha da sua boa fé no ensino.

Finalmente, acompanhavam‑no também os seus amigos. A todos quantos giravam à sua volta e a outros que se lhes juntaram mais tarde, conseguiu arrastar para a fé maniqueísta, incluindo o próprio Romaniano. A sua personalidade era avassaladora. No entanto conhecemos duas excepções: a sua mãe Mônica, e a sua amante.

Entretanto, Mônica chora a morte de seu filho e não cessa de rezar para que volte ao verdadeiro redil de Cristo. É para ela uma obsessão, refletida no sonho que Agostinho nos conta. Está muito triste e desfeita em lágrimas, de pé sobre uma trave de madeira. Aproxima‑se dela um jovem, resplandecente, de rosto alegre e risonho. Pergunta‑lhe a causa do seu desgosto e das suas lágrimas para lhe poder dar alívio. Ela responde que chora a perda de seu filho. O jovem roga‑lhe que não se aflija, que abra os olhos e observe que onde ela está, está também o filho. Mônica olha com atenção e vê a seu lado Agostinho, de pé, sobre a mesma trave. A partir de então, a certeza de Mônica acerca da conversão de seu filho é total, ao ponto de decidir admiti‑lo novamente sob o seu tecto. De nada serve que Agostinho tente torcer as palavras daquele jovem. Ela replica em seguida "não me disse onde está ele estarás tu; mas sim: onde tu estás estará ele" (III, 11, 20).

A sua estadia em Tagaste não durará muito. O desgosto causado pela morte de um amigo fá‑lo‑á voltar para Cartago.

Desde os seus dias de escola em Tagaste, Agostinho conservava ali um amigo íntimo. Tinha sido seu companheiro, era da mesma idade e ambos estavam na flor da juventude. Tal amigo morreu pouco mais tarde e, para maior infelicidade do jovem maniqueu, faleceu depois de ter recebido o batismo católico e não permitindo que ninguém troçasse dele. Nada melhor que as suas palavras para narrar os sentimentos de então: "O meu coração encheu‑se de trevas e em todas as coisas via a morte. A terra onde nasci era para mim um suplício e a casa paterna tornara‑se insuportável. As coisas que tinha partilhado com ele tinham‑se tornado num crudelíssimo tormento sem ele. Todas as coisas tornaram‑se odiosas porque não encontrava o amigo entre eles, nem me podiam dizer:«olha‑o, aí vem», como antes, quando voltava depois de uma ausência. Cheguei a tornar‑me insuportável a mim próprio... Só o choro me era doce e, no lugar do amigo, fazia as delícias da minha alma" (IV, 4, 8).

Admirava‑se que os outros mortais vivessem, tendo morrido aquele a quem tinha amado como se nunca tivesse de morrer. Admirava‑se também de ele próprio continuar a viver, tendo morrido o amigo que era o outro ele. Porque sentia que a sua alma e a do amigo era uma só em dois corpos. Por isso a vida causava‑lhe horror: porque não queria viver com metade do seu ser; e talvez por isso, tinha medo de morrer, porque significaria a morte total daquele a quem tão exageradamente tinha amado.

Ainda que sejam bastante literários são formosos estes pensamentos com que Agostinho, muitos anos depois, recorda aqueles acontecimentos como são os que vamos transcrever para concluir este capítulo. "Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o que não era aquele homem era‑me insuportável e odioso. Só a gemer e a chorar encontrava repouso. Assim, fugi da minha terra natal, pensando que os meus olhos o procurariam menos em sítios onde não era costume vê‑lo. Da cidade de Tagaste fui para Cartago" (IV, 7, 12). Era o ano de 376.

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