Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

SEMPRE CARTAGO

Conversar e rir‑mo‑nos juntos

Com o coração profundamente ferido prossegue a sua vida em Cartago enquanto espera a cura. Só o reanimava e confortava a consolação dos amigos. Encontrava alívio a conversar com eles e rir‑se em sua companhia e nas mútuas atenções de amizade e em tantas outras coisas que ele nos descreve: "Ler juntos livros amenos; brincar uns com os outros dando‑nos provas de estima recíproca; discutir sem paixão; ensinar ou aprender alguma coisa com o outro; ter saudades dos ausentes; recebê‑los com alegria no regresso. Com estes e outros sinais semelhantes, que nascem do amor do coração daqueles que se amam uns aos outros e o manifestam pela expressão, pela palavra, pelo olhar e outros mil gestos agradáveis, fundiam‑se, com o seu calor, as nossas almas e de muitas se fazia uma só." (IV, 8, 13).

A amizade foi o bálsamo que a pouco e pouco curou as suas feridas.

Durante esta segunda estadia na capital africana, a dos 26 ou 27 anos, compõe a sua primeira obra, que se perdeu para nós, O belo e o conveniente, e foi dedicada a um famoso orador de Roma. Apesar de não o conhecer pessoalmente apreciava‑o pela fama da sua doutrina. Mas o que mais lhe agradava era o fato de os outros gostarem dele ao ponto de se fazerem arautos da sua arte e de se admirarem que, tendo sido educado na eloquência grega, tivesse chegado a ser orador admirável na língua latina.

Em Cartago abre uma escola de retórica. O tempo que lhe sobra emprega‑o em completar a sua formação intelectual. Não lhe bastava o que tinha recebido na escola. Agora interessa‑se sobretudo pela filosofia, concretamente, por Aristóteles. O seu talento privilegiado poupa‑lhe a necessidade de mestres. A prova disto está em que com vinte anos lê e compreende, sem que ninguém lho explicasse, um livro do mencionado filósofo, que lhe veio parar às mãos, intitulado As dez categorias; livro que outros só com dificuldade conseguiam entender, mesmo depois de lhes ter sido explicado de muitas maneiras por sábios mestres.

Lia todos os livros que lhe chegavam às mãos. Não só de filosofia mas também do que então se chamavam as artes liberais: a retórica e a dialética, a geometria, a música e a aritmética. Tudo percebia sem que ninguém lho expusesse, prova evidente duma lúcida inteligência, como o prova a seguinte confissão do próprio Agostinho: "Só quando tive de explicar aos outros me dei conta de quão difíceis são de entender mesmo para pessoas estudiosas e inteligentes. Entre os meus alunos, era o melhor aquele que não tardava em seguir a minha exposição" (IV, 16, 30).

Diante disto, a pergunta de Agostinho, dirigida a Deus, soa assim: "Que me aproveitava, pois, então a inteligência desperta para aquelas ciências e o ter posto a claro, sem auxílio de nenhum mestre humano, tantos livros cheios de dificuldades, se na doutrina da religião, errava monstruosamente e com sacrílega maldade?" (IV, 16, 31).

Ainda que pergunte, fingindo não saber, Agostinho não desconhecia que o proveito que tirou foi imenso. O estudo das ciências deu‑lhe capacidade para perceber a falsidade das doutrinas maniqueístas. Pelo menos, começou a ver a oposição entre a fé de Manes, o fundador da seita, e as afirmações da seita. Manes, a seus olhos cai em descrédito. Agostinho não pára de pôr questões de todo o tipo a que ninguém sabe responder. Os que lhe tinham prometido dar explicações de tudo, convidam‑no a esperar. Esperar pelo grande doutor da seita, de seu nome, Fausto. Mais tarde, Agostinho falará dele como de uma hábil armadilha do demônio em que muitos caiam, enganados pela suavidade das suas palavras. Tinha‑lhe sido apresentado como muito douto em todos os ramos do saber e bastante instruído nas artes liberais. Entretanto não perdia o tempo. Consoante o fio das suas leituras, ia comparando mais e mais o que diziam os filósofos com as inúmeras fábulas dos maniqueus. É fácil de entender que já lhe parecia mais razoável o que diziam os primeiros do que os sonhos dos segundos.

Os últimos anos, que Agostinho viveu no maniqueísmo, foram os anos de espera pela chegada de Fausto. Eram muitas as coisas que esperava tratar em diálogo franco com ele. Procurava soluções para problemas pessoais e outros não tão pessoais, mas igualmente importantes.

Por fim, chegou o momento do esperado encontro. O resultado foi uma desilusão. Depressa compreendeu que era ignorante nas artes em que o julgava sábio. O que significava que tinha de ir perdendo a esperança de achar solução para as questões que o inquietavam, como de fato aconteceu. Mas Agostinho louva a prudência do maniqueu. Reconhecendo a sua ignorância declinou responder a quanto se lhe perguntava. Desconhecia aquelas questões e não se envergonhava de o dizer. Não ignorava de todo a sua ignorância, dirá Agostinho. Não quis entrar num combate que o poria em apertos e donde não lhe seria fácil encontrar uma saída, sem ter qualquer possibilidade de retirada. Foi este o gesto que mais agradou ao jovem. E dá a razão: "porque mais formosa é a modéstia de uma alma que se conhece a si própria, do que a ciência que eu desejava conhecer" (V, 7, 12).

Já bispo, Agostinho escreveria uma obra monumental para refutar o bispo maniqueu: Contra Fausto. Mais importante para nós agora é o resultado deste encontro. Apaga‑se o entusiasmo com que se tinha aplicado a estudar os escritos de Manes. A sua desconfiança estende‑se a todos os doutores da seita. O empenho que tinha resolvido pôr, para progredir nela, vem‑se abaixo ao conhecer aquele homem, se bem que ainda não vai ao ponto de se separar totalmente dos maniqueus. Mas só até descobrir outra coisa melhor. A decisão é provisória.

A vida de Agostinho foi a de um inquieto pesquisador. Conheceu muitas coisas que, se o deixavam insatisfeito, o estimulavam a continuar a busca. Mas, ainda que não fossem do seu total agrado nunca as abandonava até ter encontrado algo superior. Isso encontrá‑lo‑á dentre em breve e noutro lugar.

Por razões, que diremos a seguir, Agostinho muda‑se para Roma. Era o ano de 383. Contava então 29 primaveras.

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