Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

UM IDEAL: CONHECER A DEUS NA TRANQÜILIDADE COM OS SEUS AMIGOS

O porto da filosofia

A decisão de Agostinho era definitiva: entregar‑se totalmente à conquista da sabedoria, vivendo só para Deus. A sua alma já estava livre das preocupações, de ambicionar honrarias, de ganhar dinheiro, "de revolver‑se e coçar‑se da sarna da lascívia". Deus era já a sua honraria, a sua riqueza, a sua saúde. Restava por fazer outra opção ainda mais concreta: continuar como professor até que chegasse o fim do ano letivo ou "romper estrondosamente". Não lhe pareceu esta última, a mais adequada. Por sorte, faltavam já poucos dias para as férias da vindima. Resolveu suporta‑los com paciência e retirar‑se no tempo habitual e "resgatado por Deus, não voltar a vender‑se" (IX, 2, 2).

Encontrou uma desculpa fácil e ao mesmo tempo um motivo real. Por causa do excessivo trabalho das aulas, naquele mesmo verão, os pulmões começaram a ressentir‑se e a respirar com dificuldade. As dores no peito que sofria indicavam que havia alguma lesão. O certo era que não podia falar com voz clara e firme durante muito tempo. Ao princípio isto tinha‑o preocupado porque o obrigaria a renunciar, quase por necessidade, ao ensino, ou pelo menos, a interrompê‑lo. Mas agora alegrava‑se que se lhe deparasse esta desculpa verdadeira que diminuiria o desagrado dos pais ao verem os filhos ficarem sem professor.

Assim chegou o dia em que renunciou efetivamente à cátedra da retórica. Deus libertou a sua língua daquilo de que já tinha libertado o seu coração. Como tinha pensado, acabadas as férias da vindima, avisou os milaneses que procurassem para os seus estudantes outro "vendedor de palavras", porque ele, por causa da dificuldade da respiração e a dor no peito, não tinha forças. A causa também, ainda que esta não a tenha dito, era a determinação de servir a Deus.

Abandonada a sua antiga profissão, Agostinho e o seu circulo de amigos retiram‑se para uma quinta que, nos arredores de Milão, possuía o amigo Verecundo que a tinha posto à sua disposição. O seu nome é já célebre: Cassiciaco. Depois de resolver os últimos assuntos na cidade dirigem‑se para lá nos primeiros dias de Novembro. Com ele iam dois alunos: Licencio, filho de Romaniano, seu benfeitor de outros tempos, e Trigécio; os primos Rústico e Lastidiano; Alípio, Adeodato, seu irmão Navígio e a mãe, Mônica.

A estadia em Cassiciaco foi para Agostinho um período de férias. Nada mais justo, terminado o ano letivo e com problemas de saúde. Nada mais necessário, depois de longos meses de angústia e de tensão, de problemas intelectuais e de incertezas morais, de luta e agonia interior, cuja dureza só é conhecida por quem a tenha experimentado. O seu espírito necessitava de paz e tranqüilidade até voltar a encontrar a serenidade completa.

Foi também um período de penitência, de oração e meditação. Na nova situação Deus passava a ser o personagem de primeira linha; tinha‑se tornado o principal interlocutor de Agostinho. Com Ele tinha de repensar o passado, programar o futuro. Tinha sentido a sua mão libertadora, era preciso dar‑Lhe graças. Experimentada a própria incapacidade, não podia prescindir d'Ele para o futuro. Qualquer projeto tinha de ser visto à Sua Luz e à luz da experiência e dos erros passados. Agostinho era dado à introspeção. Tinha de projetar a luz recém descoberta sobre si mesmo, sobre as pessoas que o rodeavam, sobre a natureza e o mundo inteiro que o cercavam, agora que o via de uma forma diferente. Tudo formava uma formosa melodia, bastava entendê‑la; as suas tonalidades, os seus sons. Durante muitas das horas da noite ele meditava e orava.

Aquele período de uns cinco meses, significou para Agostinho, ver realizado o que antes tinha vislumbrado como sendo apenas um sonho: viver em comum com um grupo de amigos, todos interessados na busca da sabedoria. Às horas de trabalho manual, de refeições, de oração, sucediam‑se as empregues em conversas, na discussão de problemas profundos. Conservam‑se os livros escritos naquele tempo, fruto da participação de todos, incluindo a avó Mônica. Três diálogos formosos, nos quais Agostinho tem a parte de leão: Contra os cépticos, A vida feliz, A ordem. Aparecem os temas que preocupavam e ocupavam aqueles amigos: o da verdade: podemos estar seguros de conhecer a verdade?; a felicidade: que é?, em que consiste?, como consegui‑la?; a ordem presente na criação, o mal e a providência; um programa de estudos, etc. .

Daquele tempo é também a obra famosíssima, chamada Solilóquios e que consiste num diálogo entre a razão e a alma de Agostinho. Original em tudo, começando pelo próprio título. É o primeiro auto‑retrato escrito para os amigos e para a posteridade. Encontramos aí as metas intelectuais a que se propunha chegar. ‑Que desejas conhecer? ‑Desejo conhecer a Deus e à alma. ‑Nada mais? ‑Nada mais.

Deus a quem começa invocando com uma oração que adquiriu fama pelo seu conteúdo e pela sua forma. Alma que deve purificar‑se para poder chegar ao gozo de Deus. A meditação do antigo professor prolonga‑se com reflexões sobre a imortalidade da alma. A obra ficou incompleta.

Nas obras a que temos feito referência, vê‑se um Agostinho que evolui, que se vai adaptando à nova situação criada na sua vida. Cristo tem já a máxima autoridade. Todo o saber há de assentar sobre dois pilares: a razão e a autoridade de Cristo, que impedirá aquela de se extraviar. Sente‑se membro da Igreja. Por outras palavras, o Agostinho "pagão" vai dando lugar ao Agostinho cristão. A procura da sabedoria identifica‑se com a procura do Deus de Jesus Cristo; a purificação da alma é levada a efeito pelo cumprimento dos seu mandamentos.

No entanto, as férias de Cassiciaco foram, antes de mais, um período de preparação para o batismo. Com anterioridade tinha escrito ao bispo S. Ambrósio informando‑o dos seus antigos erros e do seu atual propósito, para que lhe aconselhasse quais os livros da Escritura lhe seriam mais úteis ler como preparação para receber o sacramento. Recomendou‑lhe a leitura do profeta Isaias porque ‑ pensou Agostinho ‑ anuncia com mais claridade que os outros, o Evangelho e a vocação dos gentios. Agostinho seguiu o conselho do Santo, mas não entendeu a sua leitura.

Mais tarde ao aproximar‑se a quaresma, quando deviam inscrever‑se no número dos candidatos ao batismo, deixando o campo, voltaram para Milão. Finalmente, depois de ter assistido à catequese dirigida pelo bispo, Agostinho foi batizado pela mão de S. Ambrósio. Era a noite de 24 para 25 de Abril do ano de 387. Com ele entrou a formar parte da Igreja de Deus, Alípio, "revestido já de humildade cristã e grande domador do seu corpo, até ao ponto de se atrever a percorrer descalço o solo gelado de Itália" e, com os dois, Adeodato "nascido carnalmente de mim, fruto do meu pecado" (IX, 6, 14).

Receberam o batismo e fugiu deles toda a intranqüilidade pela vida passada. Foram dias de entusiasmo em que Agostinho não se cansava de pensar na grandeza do plano salvador de Deus. "Quanto chorei, ao ouvir os vossos hinos e cânticos, fortemente comovido pelas vozes da tua Igreja, que cantava com suavidade! Entravam aquelas vozes nos meus ouvidos e a vossa verdade derretia‑se no meu coração; com isto inflamava‑se o afeto de piedade e corriam as lágrimas e com elas sentia‑me bem" (id.). É Agostinho quem fala e é Deus aquele com quem está a falar.

Na época em que escreve As Confissões, ainda conserva fresca a memória: "Quando penso nas lágrimas que derramei ao ouvir os cânticos da Igreja, pouco tempo depois de ter recobrado a fé, reconheço uma vez mais a utilidade deste costume de cantar na Igreja. Ainda agora me comovo, não com o canto, mas com as coisas que se cantam, quando se faz com voz suave e modelada" (X, 33, 50).

Mas na sua mente já pensava abandonar aquelas terras.

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