Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

TEU AMIGO, AGOSTINHO 3

No ano 383 influenciado por meus amigos e em total oposição à minha mãe, decidi deixar Cartago e dirigir-me à capital do Império, Roma.

Ali me disseram que podia ser algo mais que um mero professor de Retórica, ganhar mais dinheiro e sobretudo livrar-me daqueles alunos que com sua desordem, gritos e gracejos, não me deixavam desenvolver boas aulas.

Assim que cheguei a Roma peguei uma febre que quase levou-me à morte. Passei muito mal e a recuperação foi lenta. E de novo Deus, a quem eu não "ligava", cuidava de mim como se fosse um filho. Nesta cidade continuei dentro da seita maniqueísta. Eles ajudaram-me muito nestes primeiros momentos difíceis, porém, pouco a pouco, comecei a distanciar-me deles e de suas doutrinas que já não me convenciam como antes...

Para sobreviver, recomecei as aulas de Retórica em minha casa. Os estudantes não eram tão bagunceiros como em Cartago; mas eram maus e tortos e, sobretudo, não pagavam as aulas... Devido a isso prestei um concurso que havia em Milão para obter a cátedra de Retórica e também concorri a uma vaga na corte do Império como orador oficial. Passei no concurso e ganhei a vaga.

Em Milão, além de meu trabalho de Retórica e orador que eu queria só para ganhar fama e dinheiro, dediquei muito tempo vasculhando onde estava a verdade com Alípio e Nebrídio, dentre outros muitos amigos. A doutrina maniqueísta já não me satisfazia, mas tampouco a católica. Era um mar de dúvidas e optei por não "ligar" para a questão, porém minha maneira apaixonada de ser, não me deixava tranqüilo. O bispo de Milão, Ambrósio, com suas palavras me ajudou muito; mas era eu quem tinha que optar e um dia após outro adiava a decisão para o dia seguinte. Amanhã, amanhã, amanhã!..., dizia-me, mas nunca chegava esse "amanhã".

Nesta época planejei, com um grupo de amigos, uma experiência de vida em comum, e quando já tínhamos quase tudo planejado..., não pudemos realizar. As mulheres foram o obstáculo.

Também decidi, influenciado por minha mãe que morava comigo e com meu filho, formalizar minhas relações sentimentais, casando-me. Mas a mulher que eu tinha eleito e prometido casamento era muito jovem e não podia casar-se legalmente. Por outro lado, eu tampouco estava nesse momento muito interessado em casar-me.

Neste momento crucial de minha vida e sofrendo o que não posso contar, também Deus veio em meu socorro. A leitura de uns livros de filósofos neoplatônicos levaram-me a descobrir em mim mesmo a verdade... Assim fui tirando as dúvidas e os problemas intelectuais que anteriormente me atormentavam...

Os escritos de São Paulo completaram esta obra e assim comecei a ver tudo de forma cada vez mais clara.

Por fim havia descoberto onde estava a Verdade e o Bem: em Cristo.

Mas me faltava o mais difícil e importante, dar o passo... Estava muito apegado aos vícios que havia adquirido nos anos passados: sexo, vaidade, orgulho,... bem, já sabes!, e me custava muito deixá-los.

Por esta época, um tal Simpliciano, homem culto -apesar de seu nome- e amigo meu, falou-me de Mário Victorino. Este era um filósofo bastante admirado que se havia convertido ao Cristianismo há pouco tempo. Seu exemplo me comoveu. Também me falaram de Antônio, fundador dos monges de Egito e de outros que como ele abandonaram tudo. Estes exemplos me causaram uma impressão muito forte e quase decisiva. Perguntava-me: Por que eles e não eu? Resistia, no entanto, a dar o passo final e tornar-me cristão, embora eu quisesse.

Finalmente, em um dia de agosto do ano 386, Deus, vendo minha indecisão, deu-me o empurrão que faltava. Estando no jardim da casa onde morava, em estado de desassossego interior, de querer e não poder e chorando por ser incapaz de dar o salto definitivo..., escutei umas crianças que cantavam: "Toma e lê, toma e lê!" Interpretei estas palavras como se Deus me as dissesse e assim peguei a carta de São Paulo aos Romanos, que trazia comigo, e a li: "Nada de banquetes e bebedeiras, nada de prostituição e libertinagem, brigas e ciúmes. Mas vistam-se do Senhor Jesus Cristo" (13,13).

Estas palavras, como se fossem um raio penetraram em mim e dissiparam todas as minhas dúvidas e vacilações... Desde esse instante, decidi firmemente ser cristão com todas as conseqüências e deixar tudo o que antes havia buscado com tanto esforço. Cristo seria minha única luz, minha única verdade, meu único amor!

Estava ainda dando as aulas em Milão. Esperei que chegassem as férias, por ocasião do tempo da vindima, para deixar definitivamente a docência e a cátedra de Retórica.

Retirei-me para um lugar tranqüilo, perto de Milão, chamado Cassiciaco. Aqui um amigo deixou-nos, a minha família e meus amigos, sua casa e sua chácara para que estivéssemos à vontade durante o tempo que quiséssemos...

Durante seis meses permaneci neste lugar descansando, pensando, orando e conversando em amizade com os meus. Que tempo tão feliz passei aqui! Por aquela ocasião escrevi "Os Diálogos", recolhendo as reflexões e conversas que tínhamos sobre diversos temas da vida. Ao mesmo tempo, durante estes meses, fui-me preparando para receber o batismo.

Por fim, a noite de Páscoa do dia 24-25 de abril do ano 387, quando tinha 33 anos, recebi as águas do Batismo na Igreja de Milão... Comigo se batizou meu filho e Alípio, meu amigo. O bispo Ambrósio foi quem nos administrou o sacramento. Foi um grande dia. Minha mãe, Mônica, não cabia em si de tanto contentamento. Suas lágrimas e orações haviam dado resultado.

Cedo deixamos Milão a caminho de Roma. Havia decidido com meu filho e meus amigos servir somente a Deus em minha terra -África. Preparando a viagem de regresso, em Óstia Tiberina, porto de Roma, morreu minha mãe. Que grande mulher foi em todos os sentidos! Depois de sua morte senti uma tristeza imensa e um grande vazio me invadiu. Logo chorei. Só me consolava sabê-la ao lado de Deus a quem sempre esteve tão unida.

Depois deste acontecimento, adiei a viagem a África. Durante um ano estive em Roma. Ali dediquei-me a conhecer os mosteiros de religiosos que existiam. Impressionou-me sua forma de vida e queria imitá-la em minha terra natal.

TEU AMIGO, AGOSTINHO 2

Meus 19 anos, tenho-os muito gravados. O ano 372/3 foi muito importante para mim em todos os sentidos. Li um livro, que hoje, desgraçadamente, perdeu-se, intitulado "O Hortênsio", de Cícero, que era o grande filósofo da época.

Este livro abriu-me os olhos... Ajudou-me a amadurecer. Falava de ser "sábio" e feliz... De como saber viver a vida... e deu à minha vida um novo sentido... Também afeiçoei-me a ler e a buscar a "sabedoria" e com ela a verdade e a felicidade.

Buscando a "verdade", li a Bíblia e... Pasmem! Que linguagem tão pobre tinha! Era um livro para "beatos", pensei. Logo não lhe fiz nenhum caso e continuei vivendo a meu estilo e à margem de Deus.

Em minha busca da "verdade" encontrei-me em Cartago com uma espécie de seita conhecida com o nome dos "maniqueus". Eles só falavam de "verdade" e também ensinavam como consegui-la. Como um bobo caçaram-me e entrei nela.

Em poucas palavras e para não cansar-te, direi que suas idéias filosófico-religiosas vinham a sustentar que no mundo e em cada pessoa existem dois princípios em luta: o do Bem (a luz, o espírito) e o do Mal (as trevas, o material). Tratava-se de fazer com que prevalecesse o Bem e para isso era necessário lutar contra tudo o que fosse material, inclusive o corpo, até aniquilá-lo. A doutrina era uma mistura de idéias cristãs, zoroástricas e de outras religiões. Eram uns enrolões, inclusive o chefe: Fausto.

Demorei muito -nove anos- ao dar-me conta disso e lhes fiz o jogo. E mais, a alguns de meus amigos consegui convencer e eles entraram na seita.

Nem te conto o que sofreu minha mãe quando ficou a par de minha situação. Acredito que preferia ver-me morto a maniqueísta. Com orações e lágrimas pedia a Deus que me convertesse e batizasse. Embora eu me sentisse tão seguro do que cria que nem lhe fiz caso. Coisas de minha mãe!, pensava.

Neste mesmo ano, com uma jovem de minha idade, com a qual convivia e a quem guardava fidelidade, tive um filho. Chamei-lhe Adeodato. A ambos quis muito, muito,...

No ano seguinte, já terminada minha carreira, voltei a meu povoado e me propus a ensinar o que havia aprendido, convertendo-me num "vendedor de palavras bonitas" -como eu chamo aos retóricos- mas carentes de verdade.

Parece mentira, mas nestes anos, sendo todo um professor, tendo-me a mim mesmo por sábio e astuto, comecei a crer na astrologia e demais artes de adivinhação orientando minha vida segundo elas.

Nem um médico muito inteligente e famoso com quem falava com freqüência, nem meu amigo Nebrídio, que ria-se de minhas superstições, puderam com minha credulidade... No fundo era como uma criança, teimosa e ingênua a um só tempo.

Por um ano estive lecionando em Tagaste. Aqui vivi uma intensa amizade com um colega, até que a morte o separasse de mim. Isto foi para mim um golpe terrível. Creio que com isto Deus ensinou-me, sem que eu soubesse, a pouca consistência de qualquer amizade sem Ele. "Só quem sabe querer seus amigos em Deus, é que não os perde, porque Ele é quem nunca perdemos".

Esse acontecimento, junto com o desejo de obter uma cátedra melhor impulsionaram-me a fugir para Cartago para esquecer e ter assim um pouco de tranqüilidade interior.

Em Cartago, as aulas -freqüentemente interrompidas pela bagunça dos estudantes-, as leituras do filósofo Aristóteles e de outros pensadores e os amigos, preencheram todo meu tempo. Também escrevi uns livros sobre estética intitulados "O formoso e o apto", que acredito se tenham perdidos, onde expus minhas idéias sobre a beleza.

CARTA DE TEU AMIGO, AGOSTINHO 1

Querido amigo:

Pedem-me que te fale de minha vida... Dizem que, apesar do tempo, é em muitos aspectos igual à tua... Talvez não seja para tanto...

O ambiente em que me coube viver não se parece muito com este; embora em Deus todos somos contemporâneos.

Começarei com um pouco de ordem...

Nasci em 13 de novembro do ano 354, em Tagaste, um bonito povoado da província romana da Numidia, atual Argélia.

Sim, sou africano, embora, este lugar tenha mudado bastante desde então...

Economicamente era uma das cidades mais ricas do império e culturalmente podíamos ser quase comparados a Roma.

No aspecto religioso a maioria das pessoas era cristã, embora muito divididas e também existia um bom número de nostálgicos adoradores de deuses antigos, dentre eles, meu pai...

De minha família... Que posso contar? Meu pai chamava-se Patrício e minha mãe Mônica. Seu casamento não andou muito bem... Eram diferentes em quase tudo: caráter, idade, formação, religião,... Casaram-se por conveniências familiares (na época muito freqüentes) e, especialmente, minha mãe teve que suportar muita coisa que não lhe agradava... Não se divorciaram porque ela, cristã autêntica, não admitia isso... Preferiu calar, tolerar e rezar. Um método aparentemente não muito efetivo mas que deu bom resultado. Com sua tenacidade e constância meu pai chegou a mudar.

Éramos três irmãos. Eu era o mais velho. Minha infância foi como a de todos os meninos. Talvez mais inquieto e mais levado do que a maioria...

Na época não havia o costume de batizar as crianças. A única coisa que se fazia era dar o sinal da cruz como promessa de que um dia seria cristão. Eu, no entanto, estive a ponto de ser batizado porque tive uma doença bastante grave. Quase morro... Mas tudo passou e as coisas ficaram como estavam.

Deus já cuidava de mim sem que eu soubesse.

Também fui à escola, como todos, embora prefiro não lembrar. Ali se aplicava o método "se não vai por bem, vai por mal"... Se dependesse dos golpes que apanhei deveria ter-me tornado um sábio. Rezava a Deus para livrar-me dos professores, mas... nada!

Meus pais estavam empenhados em que eu estudasse a qualquer custo... Já sabes... Meu pai, que era funcionário da Prefeitura, queria que seus filhos fossem mais do que ele, sobretudo eu, que parecia prometer muito...

Esta foi a razão pela qual, uma vez que aprendi tudo o que ensinavam na escola de Tagaste, meus pais enviaram-me a Madaura para prosseguir os estudos.

Era uma cidade a 30 km. ao sul de meu povoado; maior, mais culta e importante que Tagaste.

Ali passei minha adolescência...

Dos estudos de Gramática, que era o que estudava, não posso queixar-me. Meus professores diziam que teria um brilhante futuro.

Mas o que mais me entusiasmava era a amizade: fazer amigos e conservá-los...

"Amar e ser amado" foi meu lema, ao qual dediquei-me apaixonadamente...

Vivi estes anos longe do controle de minha família, à vontade, sem limites, sem freio... Os ensinamentos cristãos que minha mãe tinha-me inculcado estavam esquecidos ou rejeitados. Por que continuar umas normas que pareciam por limites à minha liberdade e aos meus instintos?

Quando terminei os estudos, voltei a Tagaste... Levava umas boas qualificações, um punhado de amigos e um monte de defeitos pessoais... Tudo isto cresceu no ano seguinte, em que nada tive a fazer.

Meu pai não pode juntar dinheiro suficiente para que eu fosse a Cartago para continuar estudando e perdi o tempo inutilmente... O teatro era a única coisa que me fazia feliz...

Deus, naquele momento, significava pouco para mim. Era mais uma idéia que uma realidade viva...

Por fim, um amigo de família, Romaniano, pagou-me os estudos em Cartago. Eram estudos superiores... Por essa razão fui a Cartago.

Cartago! Depois de Roma, a cidade mais bonita, culta e interessante de minha época. Tudo ali me dizía:"Vive! Desfrute! Divirta-se!" E foi isso que eu fiz.

Embora um pouco "caipira" não demorei a entrar em sintonia com o ambiente.

Dá-me vergonha dizer que cheguei a ser para meus amigos e colegas um modelo de elegância e de conhecimento das coisas do mundo...

Naquele momento passei a fazer parte de um grupo que se chamava "os demolidores"... Divertíamo-nos muito rindo de tudo e de todos... Troças, problemas, algazarra,... todos os dias, mas, no fundo, isto não me satisfazia e logo os deixei.

Eu preferia sonhar, ler e fazer poesia, ir ao teatro..., mas sobretudo amar... E no amor era possessivo e gostava de desfrutar dos prazeres da vida com a outra pessoa... Embora, logo, dado o meu temperamento, os ciúmes, as suspeitas, os desgostos..., não me deixavam viver tranqüilo.

No ano em que estava em Cartago morreu meu pai, que foi batizado, antes de morrer, por insistência e constância de minha mãe.

À sua maneira, foi um bom pai... Embora nunca estivéssemos muito entrosados, reconheço que ele se sacrificou muito por meus irmãos, principalmente por mim, para que nada nos faltasse.

O que eu estudava em Cartago era "Retórica", que consistia em saber falar e expressar-se bem, com elegância e distinção. Saber convencer com as palavras. Com estes estudos poderia ser um bom advogado, principalmente porque era o primeiro colocado de minha turma.