Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

3ª.- OS ANOS DIFÍCEIS (16 - 17 anos de idade)

Terminado o estudo de gramática, Agostinho se viu obrigado a voltar para sua casa de Tagaste, onde permaneceu um ano inteiro, Em Madaura não havia professores de retórica que pudessem ensinar-lhe o caminho do porvir e da glória; estes estavam em Cartago. Mas a viagem era longa e a vida muito cara para as possibilidades financeiras de seus pais. Seu pai Patrício, por meio de grandes sacrifícios, podia assegurar a seu filho a educação nas escolas de Madaura; mas para os estudos em Cartago precisava recorrer à generosidade de algum amigo. Enquanto cuidava disso, decorreu um ano.

Entretanto, Agostinho, livre dos professores, ocioso e empurrado pelas más companhias, começou a entregar-se aos prazeres com todo o ardor de sua natureza apaixonada.

Colocado na funesta ladeira do vício, o jovem Agostinho deixou-se rolar morro abaixo. E, como seus companheiros se vangloriavam de suas próprias faltas e se orgulhavam tanto mais e quanto maiores e mais vergonhosos fossem seus pecados, Agostinho se esforçava em imitar-lhes para não ser inferior a eles. Estes desocupados e ociosos passavam as noites brincando nas ruas e praças. E, logo, cansados de jogos e diversões, se entregavam a coisas menos nobres. Agostinho nunca deixava de estar entre eles.

Uma tarde, o filho de Mônica, acompanhado dos amigos de sempre, subiu numa árvore carregada de pêras, num jardim perto do jardim de seu pai. As pêras não eram bonitas, mas estavam maduras. Agostinho podia encontrar melhores no jardim de seu pai; porém, pelos simples gosto de praticar atos de vandalismo, derrubaram ao chão todas as pêras e deixaram a marca de seus dentes em cada uma delas.

Eu, miserável, o que foi que amei em ti, furto meu, noturno delito dos meus dezesseis anos? Não eras belo, pois eras roubo! Mas, realmente és alguma coisa, para que eu possa dirigir-me a ti? As pêras que roubamos, sim, eram belas por serem criaturas tuas, ó Bom Deus, criador de toda beleza, sumo bem e meu verdadeiro bem! Sim, eram belas aquelas frutas, mas não era a elas que minha alma infeliz cobiçava; eu as possuía em abundância e melhores. Eu as colhi somente para roubar, e uma vez colhidas, atire-as fora para saciar-me apenas com a minha maldade, saboreada com alegria. Se alguma tocou meus lábios, foi o meu crime que me deu sabor”. (Conf. II, 6, 12)

Sua mãe, por todos os meios, se encarregava de conduzir seu filho pelo bom caminho.

Envergonhava-me de atender as suas solicitações, porque me pareciam conselhos de mulher. No entanto, eram teus os conselhos, eu não sabia! Eu estava convencido de que tu te calavas, e que era ela quem falava; mas, por meio dela, eras tu que me falavas; e, nela, eu te desprezava, eu teu servo, filho de tua serva”. (Conf. II, 3, 7)

Entretanto, Mônica chorava e rezava por seu filho. E o jovem continuava com suas diversões sem pensar em outras coisas!

Para compreender o verdadeiro retrato de Agostinho não podemos nos esquecer de que se trata de um jovem pagão. Certamente o exemplo e os conselhos de sua mãe supõem uma grave acusação ante a atitude do jovem. Ao mesmo tempo, porém, temos que levar em conta a influência dos maus exemplos que ele via em seus companheiros, e as dificuldades que tinha um jovem pagão de evitar as faltas.

Sua estada em Madaura, cidade onde pode viver livremente, o despertar das paixões precisamente no ano que permanecia ocioso em sua cidade natal, a companhia de amigos que não eram os melhores da cidade, tudo isso nos faz compreender com mais justiça, as faltas que o mesmo Agostinho recorda em suas Confissões.

Mônica, no entanto, não podia permanecer alheia a isto sem uma profunda preocupação. Falou-lhe seriamente e recomendou-lhe que evitasse toda fornicação. Como Agostinho admirava e venerava sua mãe, os conselhos lhe pareceriam certos. Com a sua idade e com os amigos que tinha, porém, era muito difícil levar isto em consideração.

Não podemos determinar até que ponto Agostinho caiu. Ele nos confessa as tristes recordações desse ano de “pecado” e declara que se precipitou no abismo, em grande parte, porque sentia vergonha de ser melhor que os companheiros de sua idade. Os jovens de Tagaste, certamente, não eram santos; e o filho de Patrício estava contente com a companhia deles. Sentia-se feliz com eles e passava os dias e as noites entregues, por completo, às diversões, ao jogo, ao furto e mentiras próprios daqueles jovens transviados.

Mas eu o ignorava para a minha perdição, com cegueira tal, que me envergonhava diante de meus companheiros, de parecer menos depravado que os outros, quando os ouvia exaltando as próprias infâmias, tanto mais dignas de glória quanto mais infames eram. Eu queria fazer o mesmo, não só pelo fato em si, mas pelo louvor que disso resultava.

Nada é tão digno de censura como o vício! No entanto, para não ser censurado, eu mergulhava ainda mais no vício! Quando não podia me igualar a meus companheiros corruptos, fingia ter praticado o que não praticara, para não parecer desprezível pela inocência, ou ridículo, por ser casto”. (Conf. II, 3, 7)

Ao ler este trecho, que revela as confidências de sua alma, temos a impressão de que, no meio de seus colegas, Agostinho era o melhor e o mais reservado. Podemos mesmo pensar que, muitas vezes, do fundo de sua consciência se elevava a voz do remorso que fazia descobrir a gravidade de suas faltas. Só um estúpido respeito humano o impedia sair daquele estado.

A custa de privações e economias, e com a ajuda de um amigo, os pais de Agostinho conseguiram reunir finalmente o dinheiro necessário para que pudesse realizar seus estudos na grande metrópole.

Não é necessário imaginarmos o entusiasmo do jovem provinciano ao chegar a Cartago, a esplêndida Cartago, que estava no auge de seu poder e riqueza.

Nesta cidade cosmopolita, se encontravam homens de toda religião, raça e língua. E os jovens chegaram em grande número para terminar seus estudos.

Quando Agostinho chegou em Cartago, logo se viu envolvido entre os do grupo dos “destruidores”, os que hoje chamamos “arruaceiros” ou “rebeldes”, que sobressaiam por qualquer coisa na cidade. Era impossível librar-se deles, já que eram de sua mesma idade, e seguiam os mesmos estudos. Mas não gostava da companhia deles. Seus costumes grosseiros, a ausência de delicadeza, sua tendência à desordem pública, lhe causaram um grande desagrado. O jovem Agostinho tinha suas fraquezas, mas ao mesmo tempo possuía um espírito elevado e era o suficientemente inteligente para não se deixar levar por uma vida de ociosidade.

Entretanto, se em Tagaste havia conhecido as primícias do pecado, em Cartago, seu temperamento ardente e empurrou até os mais baixos prazeres. Não pode resistir às seduções da cidade grande.

Contudo, inclusive em suas próprias faltas, Agostinho conservou sempre certa reserva. Não demorou em unir-se a certa mulher, com quem viveu maritalmente e a quem guardou fidelidade. Esta mulher logo lhe deu um filho, que chamou Adeodato (“dado por Deus”). Talvez Agostinho não o quisesse, mas como Deus lho havia dado, não pode deixar de amá-lo com todo seu coração. Sempre o conservou consigo e o educou com sumo cuidado.

Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos. Ainda não amava, e já gostava de ser amado, e, na minha profunda miséria, eu me odiava por não ser bastante miserável.

Desejando amar, procurava um objeto para esse amor, e detestava a segurança, as situações isentas de risco. Tinha dentro de mim uma fonte de alimento interior, fome de ti, ó meu Deus. Mas, não sentia essa fome, porque não me apeteciam os alimentos incorruptíveis, não por estar saciado, mas porque, quanto mais vazio, mais enfastiado eu me sentia.

Era para mim mais doce amar e ser amado, se eu pudesse gozar do corpo da pessoa amada. Assim, eu manchava e turbava a pureza delas com a espuma infernal das paixões. Não obstante eu ser feio e indigno, apresentava-me num excesso de vaidade, como pessoa elegante e refinada. Mergulhei, então, no amor em que desejava ser envolvido.

Deus meu, misericórdia minha, como foste bom em derramar tanto fel sobre meus prazeres! Fui amado e cheguei ocultamente às cadeias do prazer; mas, na alegria, eu me via amarrado por laços de sofrimento, castigado pelo ferro em brasa do ciúme, das suspeitas, dos temores, das cóleras e das contendas”. (Conf. III, 1, 1)

Sempre se considerou como “injustas” as referências a Patrício, e demasiadas ‘indulgentes” com Mônica. Destacaram-se os elogios que Agostinho fez de sua mãe e se afirma, quase sempre, que não se expressou bem sobre o seu pai. Mas de um autor se refere à dupla herança de Agostinho, na qual se havia misturado a sensualidade exagerada de seu pai e o suave misticismo materno. Segundo eles, a influência de seus pais gerou na alma de Agostinho aquele dualismo que o encadeou durante nove anos à heresia maniqueia.

Tudo isto é demasiadamente simplista. Certamente, Agostinho fala melhor de Mônica que de Patrício; porém, em mais de uma ocasião elogiou seu pai e censurou sua mãe. Narra, com legítimo orgulho, que aquele fez enormes sacrifícios para enviá-lo a Cartago, apesar de sua pobreza; esforço que outros, mais ricos, não faziam pelos seus filhos. Critica, ao contrário, a cristã Mônica por não haver tentado pôr freio à sensualidade do adolescente. Na realidade, tanto Patrício como Mônica acalentavam ambições terrenas a respeito do filho, e estavam decididos a não permitir que se opusessem obstáculos em seu caminho. Por outro lado, não era a primeira vez que Mônica relegava a um segundo plano o progresso moral de seu filho. Não havia ela, afinal, retardado seu batismo?

O que não se pode ocultar é o orgulho de Agostinho pela atitude sacrificada de sues pais nesta circunstância. Supõe Agostinho que sua mãe não queria que ele se casasse nessa época porque temia fosse prejudicada sua formação intelectual que era, no modo dela pensar, uma ajuda em sua posterior evolução espiritual.

 

O VERDADEIRO AGOSTINHO

A insistência de Agostinho em acusar-se de haver sido um “transviado” durante a adolescência e juventude costuma deixar a impressão de que foi um grande pecador. Mas a verdade é que fica difícil levar a serio as necessidades que tinha quando contava com seus quinze anos. Adolescente ocioso, freqüentava os banhos públicos e corria pelas ruas, quando chegava a noite, com companheiros pouco recomendáveis. Não era, porém, tão viciado como seus colegas, o que já é um indício de dignidade moral e aspiração pelo melhor. Um dos seus futuros adversários, o bispo donatista Vicente de Cartena, conta que Agostinho era conhecido entre os estudantes como um rapaz tranqüilo e exemplar. Juízo este muito mais verosímil que o de muitos autores que, por terem tomado, exageradamente ao pé da letra a retórica agostiniana, pintam-no com um estudante indecente e bagunceiro.