Dos escritos de Agostinho

DEUS É A VIDA DE TUA ALMA

“Tua alma morre perdendo a sua vida. Tua alma é a vida do teu corpo, e Deus é a vida de tua alma. Do mesmo modo que o corpo morre quando perde a sua alma, que é sua vida, assim a alma morre quando perde a Deus, que é sua vida. Certamente, a alma é imortal, e de tal modo é imortal, que vive mesmo estando morta. Aquilo que disse o Apóstolo da viúva que vivia em deleites pode-se dizer também da alma que tem perdido o seu Deus: que vivendo está morta”.

(Com. Ev. de João, 47, 8)

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

10.- ESCRITOR E SANTO

Santo Agostinho estava morto aos olhos dos homens, mas começava a viver aos olhos de Deus. Certamente, sua alma, depois de tantos séculos, continua viva no meio de nós.

Quase sempre, os santos nos são apresentados como “super-homens”, que não conheceram quase nada do pecado, nem sequer da tentação. Santo Agostinho não foi assim. Todas as suas obras nos colocam em contato com um homem semelhante à maioria de nós; exposto, como nós, à concupiscência e vivendo, todos os dias, ante o temor do pecado.

Não nos importa saber até que ponto pôde, apesar de seus esforços, deixar-se vencer pelo mal. Já se escreveram muitas bobagens a respeito disso. Inclusive certos testemunhos do bispo de Hipona a respeito de suas faltas foram interpretadas fora de contexto e sentido reais. Se algumas características nos surpreendem na fisionomia de Agostinho, temos de pensar em seu caráter profundamente religioso.

As “Confissões” põem em relevo a profunda unidade de sua vida interior. Jamais interrompeu o caminho. Assim, não teve que lamentar seu passado, ao menos em certo sentido. Para ele, como para todos os que amam a Deus, nenhum pensamento, nenhuma ação deixou de estar relacionada com o bem, inclusive os próprios pecados.

Pessoa profundamente religiosa Agostinho, com certeza, buscou Deus, antes de encontrá-lo e possuí-lo. Por muito tempo seu coração esteve inquieto, porque ainda não conhecia o verdadeiro descanso que somente Deus é capaz de proporcionar.

Consagrou, mais tarde, todas as forças de seu amor, ao serviço de Deus e das pessoas. Mas não se contenta em amar aos cristãos. Ama também, com afeto semelhante, aos que não pertencem à verdadeira Igreja. Dirige sempre aos maniqueus, donatistas ou pelagianos, palavras de amor e boa vontade.

As vezes, fala com um tom mais emocional, mais carinhoso, mais simples, do amor de Deus; e conclui que a única atitude que podemos tomar diante de Deus é a do reconhecimento, do amor. Se Deus nos amou primeiro, também nós devemos amá-lo. Este amor é, precisamente, nossa maior recompensa. Do ensinamento de Agostinho, o que traduz de maneira mais completa as riquezas de seu espírito e de seu coração é uma palavra de amor: “ama e faz o que quiseres!”.

Santo Agostinho é, sem dúvida, o escritor mais fecundo da Igreja Latina. O que São Jerônimo havia escrito a respeito de Orígenes, logo pode repetir Possídio sobre o bispo de Hipona: “o número de suas obras é tão grande, que apenas um grande estudioso pode ler todas elas”.

Os escritos que chegaram até nós podem se dividir, conforme a finalidade e índole do seu conteúdo, em obras:

1. Filosóficas;

2. Apologéticas;

3. Exegéticas;

4. Dogmáticas;

5. Polêmicas;

6. Escritos de moral e pastoral;

7. Oratórias, e

8. Cartas

Nos últimos anos de sua vida, mais ou menos no ano 427, o próprio Agostinho revisou todas as suas obras publicadas. Sua intenção foi a de examinar atentamente cada uma delas. O fruto deste trabalho foi outra de suas obras, intitulada: “Retratações”, que é única na história da literatura antiga. No final de sua revisão, Agostinho afirma que escreveu 93 tratados em 232 livros. Entre as obras mais importantes estão:

a) Os Diálogos de Cassiciaco, que compreendem todas as obras compostas antes do seu batismo. São elas: “Contra os Acadêmicos”; “Sobre a Vida feliz’; “Sobre a Ordem”; “Solilóquios”. Estas obras, e as que foram escritas logo após o Batismo constituem os “escritos filosóficos”.

São os escritos compostos no sítio Cassiciaco, perto de Milão, em forma dialogada, quando se retirou para se preparar para receber o sacramento do batismo.

Já dissemos que Agostinho não estava só. Numerosos amigos o acompanhavam. E aquele retiro durou perto de sete meses, sendo verdadeiramente uma vida de paz e contemplação espiritual. Do ambiente essencialmente contemplativo de Cassiciaco e das conversas diárias das pessoas que ali estavam, nasceram estas obras que hoje são lidas com profundo interesse e contentamento espiritual.

Agostinho, depois de ter conversado com seus amigos, quer conversar consigo mesmo. Destas conversas nascem os “Solilóquios”, última das obras escrita no sitio de Verecundo. Os “Solilóquios” são um monumento insigne do gênio de Agostinho. Junto com as “Confissões”, nos ajudam a explorar as mais íntimas profundidades da consciência do nosso jovem, no momento mais crítico de sua vida.

b) As Confissões. Podem ser consideradas como uma das maiores obras da literatura universal. Além do valor literário, contêm inestimáveis valores espirituais.

Agostinho sentiu a necessidade de recordar seu passado e rever todos os favores que Deus lhe concedeu. Os treze livros das “Confissões” são um hino de ação de graças, um canto de louvor e reconhecimento a Deus, que criou tudo e orientou tudo para salvar o filho pródigo.

Às vezes, o leitor se cansa com as preces que interrompem o curso da narração. Acontece que Agostinho não quer contar uma história, a história de sua vida; quer, isto sim, dar testemunho da misericórdia de Deus.

O que são os acontecimentos exteriores em sua vida? Por que foi a Tagaste, a Madaura, a Cartago, a Roma e a Milão? Porque a mão de Deus o conduziu até o momento preciso em que queria manifestar seu poder e misericórdia. Uma só coisa conta a seus olhos: a resposta de Deus. E esta resposta não se produziria se o Senhor não a houvesse pronunciado por sua boca.

c) A Cidade de Deus. É um escrito ligado às circunstâncias. Por causa da invasão dos godos e do saque de Roma pelos vândalos de Alarico (410), os pagãos acusaram o cristianismo, culpando-lhe dos males acontecidos. Agostinho ouviu tais acusações; viu-se obrigado a respondê-las e compôs esta obra em 22 livros.

A Cidade de Deus é um monumento estupendo pela originalidade de forma e do pensamento, pela amplidão de desenhos, pela abundância de fatos e de ideias. Podemos considerá-la como a enciclopédia do século V: não há nada que não seja descrito em suas páginas. Nesta obra colossal se reuniu todo o saber humano. Nela encontramos uma filosofia da história, uma defesa do cristianismo, uma moral, uma física; e, junto a tudo isto, uma profunda erudição sagrada e profana, exposta em estilo eficaz e com eloquência fascinante.

d) O Epistolário. As “Cartas” de Santo Agostinho podem ser consideradas como o complemento da maravilhosa produção literária do santo. Apesar das muitas que se perderam, temos uma abundante coleção, que soma 276. Nem todas são de Agostinho: entre essas 276 há 53 em que seus destinatários se dirigem a ele.

As “Cartas” de Santo Agostinho são, sobretudo, de caráter didático. Sempre tem que demonstrar, esclarecer ou defender a verdade. Daí o tom de gravidade solene, doutrinal, catedrático, que se assemelha um pouco aos tratados e aos sermões.

As “Cartas” agostinianas são importantes porque nos fazem conhecer a atividade do bispo de Hipona, a evolução do seu pensamento e as condições intelectuais, morais e culturais da época. Uma multidão de religiosos, de leigos, de imperadores, de hereges, de virtuosos, de culpados, escrevem e recebem cartas de Agostinho.

e) Os Sermões: Já foi dito algo a respeito dos pronunciamentos de Santo Agostinho (Lição número 9). Normalmente pregava todos os domingos e dias de festa. Em geral, pregava sem levar escrito o que ia dizer; contentava-se em meditar as passagens bíblicas que deviam constituir o esqueleto do discurso.

Enquanto o bispo falava, os fieis escutavam de pé, como nos diz em algumas ocasiões o mesmo pregador. Este costume especial da Igreja africana, diferente da Itália e Gália, e que o próprio Agostinho reprova, pode explicar a brevidade às vezes excessiva, da maior parte dos sermões agostinianos.

Estenógrafos ou taquígrafos de ofício recolhiam as palavras do bispo. Desta maneira, formaram-se coleções de homilias, mais ou menos volumosas, que se difundiram, não só na África, mas por todo o mundo cristão.

Sem dúvida alguma que, sob o nome de Agostinho, começaram a circular outras coleções ou sermões que, certamente, não eram de Agostinho. Dai a confusão que muitas vezes surge com alguns desses sermões que, duvidosamente, se atribuem a Santo Agostinho.

Ao falar dos “SERMÕES DE SANTO AGOSTINHO” temos que fazer menção dos “Comentários aos Salmos”. Trata-se de sermões ou comentários a cada um dos 150 salmos da Bíblia. São, em geral, muito mais extensos que os mesmos sermões. Os temas são muito variados: catequese, moral, vida espiritual, etc.

 

O PROGRESSO NA IGREJA CATÓLICA POR OBRA DE SANTO AGOSTINHO

Dilatando-se, pois, a divina doutrina, alguns servos de Deus que viviam no mosteiro sob a direção e companhia de Santo Agostinho, começaram a ser ordenados clérigos para a Igreja de Hipona. E mais tarde no auge e resplendor do dia-a-dia da verdade da pregação da Igreja Católica, assim como do modo de viver dos santos e servos de Deus, sua continência e pobreza exemplar, a paz e unidade da Igreja, com grande solicitação começou primeiro a pedir e receber bispos e clérigos do mosteiro que havia começado a existir e florescia com aquele insigne varão. Pois, uns dez santos e veneráveis varões, continentes e doutos, que eu mesmo conheci, enviou Santo Agostinho sob pedido de várias igrejas, algumas de categoria. E eles também, seguindo o ideal daqueles santos, dilataram a Igreja e fundaram mosteiros. E, aumentando o desejo da edificação pela palavra divina, ordenando novos religiosos, proveram de ministros outras igrejas. Assim se expandia por muitos e entre muitos a doutrina saudável da fé, esperança e caridade da Igreja, não só por todas as partes da África, senão também por ultramar. (São Possídio)

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

9.- BISPO E PASTOR

(Dos 41 anos em diante)

Agostinho era um verdadeiro tesouro para a Igreja de Hipona, e o bispo o guardava com terna inquietude. Os fieis tinham medo de perdê-lo. Para prevenir todo perigo, Valério decidiu consagrá-lo bispo, designando-lhe logo como sucessor na sede de Hipona. Isto era contrário não só aos costumes africanos como também às determinações do Concílio de Nicéia. Os méritos de Agostinho, porém, eram tão grandes que bem mereciam uma exceção à regra.

Certo dia em que havia se reunido um bom número de bispos dos arredores e, estando de comum acordo com o bispo primado de Cartago, Valério declarou publicamente, na Igreja, sua intenção de associar Agostinho como bispo coadjutor.

O povo acolheu a notícia com imensa alegria. O único que se opôs, movido por certos rumores e fofocas, foi Megálio, bispo primado de Numídia. Mas logo se deu conta de que eram calúnias o que houvera e, havendo pedido perdão a Agostinho e seus colegas, ele mesmo o consagrou, tornando-o bispo de Hipona. Era o ano 395. Quatro anos, portanto, depois da ordenação sacerdotal.

Agostinho considerou sua consagração episcopal como uma pesada carga que, só por obediência à Igreja, poderia suportar. No fundo, depois de sua conversão, não desejava outra coisa a não ser o sossego e a solidão na meditação de Deus. Só por isso havia abandonado toda glória literária que o esperava. Obrigado pelas circunstâncias e mudar de vida, começou logo a ver em suas novas obrigações um novo meio de elevação e penitência, uma espécie de purificação heroica de todas as suas faltas passadas. Já não pensava em si. Tampouco pertencia a si próprio.

Aceitando o episcopado, se entregou por completo à Igreja. As almas, vítimas do erro e da luta interior, tinham necessidade dele. Dedicou, então, todo o tesouro de sua eloquência, parar convencê-las e curá-las. A Igreja se sentia assediada e ameaçada por mil inimigos. Agostinho se apressou em empunhar as armas de sua palavra e luta, sem descanso, em prol da glória e do triunfo de Cristo. Bispo, pastor, diretor de almas: Agostinho não queria ser mais que isto. A essa causa entregou os 35 anos restantes de sua vida.

Agostinho, como bispo de Hipona, sentia-se um grande proprietário, pois a diocese possuía muitas casas, enquanto muitos pequenos artesãos estavam quase morrendo de fome e miséria. O bispo precisava desenvolver toda sua habilidade para socorrer e alimentar tantos pobres na sua diocese. A partir do nosso ponto de vista moderno, não podemos nos dar conta claramente sobre este ministério puramente material que o bispo de Hipona exercia entre os membros mais necessitados da comunidade.

Além disto, Agostinho, em virtude das recentes constituições imperiais, tinha sobre os cristãos certa jurisdição nos assuntos civis. Por isso, todos os dias precisava ouvir as demandas e litígios e pronunciar as sentenças. O bispo recebia todos que se aproximassem dele. Sua casa estava sempre cheia de gente que buscava um conselho ou queriam dar um jeito em suas causas demandas e litígios.

Um dos principais ofícios do bispo era a pregação. Nela resumia e compendiava todo seu ministério apostólico. Agostinho pregava todos os dias. Em algumas ocasiões até mesmo várias vezes ao dia, apresar de sua precária saúde. Em consequência disto, seu peito frágil e a debilidade dos seus pulmões se ressentiam com esse exercício fatigante. Às vezes, se via obrigado a exigir um absoluto silêncio, já que sua fraca voz não podia ser escutada se continuassem comentando suas palavras.

O povo o escutava com curiosidade, simpatia, satisfação... E manifestava, com plena liberdade, suas próprias opiniões. Ora gritava, ora aplaudia, às vezes interrompia com aclamações ao pregador. Inclusive alguns começavam a discutir com ele e pediam explicações de alguma passagem bíblica. Agostinho vigiava continuamente seu auditório para não fatigá-lo. Às vezes pedia perdão se prolongava muito seu discurso, ou manifestava uma humilde preocupação ante os louvores e aplausos na Igreja.

Preocupava-se com os sentimentos do povo tal como se refletia em seus gestos e olhares. Cuidava para não cansá-los e conquistava seus corações com o atrativo da palavra e de sua eloquência. Agostinho sabia chegar ao íntimo de seus ouvintes. Sua pregação não era seca, nem se reduzia a um frio comentário de salmos ou dos livros da Bíblia. Sua erudição bíblica estava semeada de comparações tomadas da vida corrente, dos costumes populares, de parábolas e exemplos da vida de todos os dias: a verde campina que rodeava Hipona, os burrinhos que brincavam pelo caminho, o calor do clima africano, com sua comitiva de mosquitos, as corridas de cavalo, os combates das feras e gladiadores no circo... Tudo oferecia ao pregador, eloquente e sábio, uma ocasião para tornar mais suaves, mais variada e mais amável sua palavra e a exposição das verdades sagradas. Dizem que Agostinho foi o mais sábio dos santos, o mais santo dos homens e o mais humano dos santos. Sua abnegação aparecia especialmente no modo como cumpria seu dever de diretor de consciência: neste assunto, se via obrigado a doarse inteiramente às almas; estava sempre disposto a responder a todos, fosse por carta ou pessoalmente.

O bispo possuía umas qualidades excepcionais para impor a observância da disciplina cristã num ambiente em que inclusive os cristãos, se mantinham mais ou menos ligados às praticas de superstições pagãs.

As ocupações que pesam sobre o bispo de Hipona lhe absorvem todo o tempo. Cada uma delas bastaria para ocupar toda a atividade de um homem. Mas esta longe de encher a vida de Agostinho.

Naquela época um bispo tinha muitos outros ofícios. Além da administração dos bens de sua igreja, a presidência de um tribunal, o cuidado de seus pobres, das viúvas e dos órfãos, devia também celebrar os ofícios litúrgicos, anunciar a seu povo a Palavra de Deus, visitar sua Diocese, converter os pagãos e hereges, tomar parte nos concílios, etc. E Agostinho fazia tudo isto. Quando terminava, não se dava o direito de descansar, já que as circunstâncias faziam dele, o bispo de uma cidade secundária, o chefe espiritual de toda a Igreja de África e, inclusive, doutor da Igreja Universal.

Oficialmente, Agostinho não possuía outro título senão o de bispo de Hipona. Estava mais ou menos subordinado ao bispo de Cartago que exercia, tradicionalmente, uma espécie de primazia sobre todos os colegas africanos. Desde 392, a sede de Cartago estava ocupada por Aurélio, que morre no ano 429 ou 430. Com prazer, fazia seu colega de Hipona pregar em uma ou outra basílica de sua diocese, quando este lhe visitava.

Aurélio não era um erudito, não publicou nada. É um homem de ação e um administrador consumado. Nos concílios, que se celebravam regularmente durante seu episcopado, sugeria a seus colegas decisões sábias e prudentes para o governo de suas igrejas e sobre a conduta que deviam observar frente aos dissidentes e hereges.

Amigo fiel e devoto de Agostinho, Aurélio lhe deixava as iniciativas intelectuais, a redação dos livros, das cartas, de discursos e discussões que haveriam. Ele reservava para si as iniciativas da administração; isto é, na maioria dos casos ele realizava as ideias que lhe sugeria o bispo de Hipona.

Os outros bispos africanos se contentavam também em ser executadores das ideias de Agostinho. Muitos deles são conhecidos nos anais da história agostiniana. Eram precisamente os amigos ou discípulos mais fieis de Agostinho. Depois que Alípio foi nomeado bispo de Tagaste, muitas igrejas africanas vieram a Hipona pedir pastores, seguras da qualidade dos monges formados por Santo Agostinho. Entre estes estão: Profuturo, bispo de Cirta; Evódio, bispo de Uzalis; Possídio, bispo de Calama; Severo, bispo de Milevi; Urbano, bispo de Sicca; Bonifácio, bispo de Cataque. Todos eles estiveram um tempo mais ou menos longo, no mosteiro agostiniano. A simples passagem pela escola do Mestre Agostinho era suficiente para deixar uma marca indelével. Entre eles, sobressai Possídio, que é o tipo perfeito de administrador entusiasta, de ouvinte atento, de amigo fiel e sincero, juntamente com Alípio.

Entretanto, até mesmo sobre os que não passaram por sua escola ou não o conheceram, Agostinho exercia uma grande influência. Em sua presença todos se calavam, por causa de seu duplo prestígio: de santidade e de ciência. Deste modo, mesmo nas igrejas que nada tinham a ver com Hipona, nosso bispo podia, não só pregar, mas, inclusive, sustentar controvérsias públicas com hereges. A impressão que se tem é de que, em toda parte, ele mesmo se sentia como em sua própria diocese: podia dizer e fazer tudo que gostava. Para Agostinho, seus colegas eram verdadeiros colaboradores.

Sua ação ultrapassa também as fronteiras africanas. Estende-se à Igreja inteira, num instante. O círculo de suas relações é dos mais extensos. Como primeiro meio de expressão, conta com os livros que escreve, cujos exemplares se disputam avidamente, logo que se têm notícias de sua publicação. Inclusive, se propagam nos meios públicos, sem que o autor se dê conta. É o que ocorre com os doze primeiros livros da obra sobre a Santíssima Trindade, que lhe tiraram e puseram em circulação, antes que pudesse revisá-los.

ORDENAÇÃO EPISCOPAL DE AGOSTINHO

Mas, o bem-aventurado ancião Valério, mais que ninguém transbordava de alegria, dando graças a Deus pelo benefício singular que havia feito à sua Igreja, começou a temer -e isto é coisa muito humana- que lhe enviassem para alguma outra Igreja, privada de sacerdote, consagrando-lhe bispo. E assim haveria de acontecer, sem dúvida, se não houvesse evitado o vigilante pastor, ocultando-lhe num lugar onde não pudessem encontrá-lo. Por isto, mais receoso a cada dia que passava, o venerável bispo, conhecendo sua fraqueza e idade avançada, com uma carta secreta recorreu ao bispo de Cartago, alegando sua idade avançada e gravidade de seus males, e rogando que ele nomeasse Agostinho bispo auxiliar de Hipona, não tanto para que lhe sucedesse na cátedra, mas para que colaborasse com ele no exercício pastoral.

Por escrito, conseguiu o que desejava e pedia com tanta insistência. Mais tarde, convidado para uma visita e estando presente na basílica de Hipona, o primado da Numídia, Megálio, bispo de Calama, o bispo Valério surpreendeu-o com a manifestação de seu propósito a todos os bispos que, por casualidade, estavam presentes e a todos os clérigos e fieis de Hipona, sendo acolhida a proposta por todos os ouvintes com alegria, congratulações e clamores de aprovação e desejo.

Somente Agostinho recusava a consagração episcopal alegando que isto ia contra o costume que não permitia outro bispo na diocese, enquanto vivesse seu bispo. Todos lhe convenceram do contrário, dando-lhe exemplos de Igrejas africanas e fatos semelhantes em Igrejas ultramarinas, coisa que ele ignorava. Finalmente, cedendo à pressão de suas razoes e pedidos, aceitou receber em seus ombros o encargo de um grau superior. Porém, depois, disse e escreveu que não deveriam tê-lo consagrado, fazendo isso com ele, estando o bispo vivo...”

(São Possídio, Vida de Santo Agostinho, c. 8)

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

O REGRESSO À PÁTRIA: O PRESBÍTERO AGOSTINHO

(Dos 34 aos 37 anos de idade)

A partir da morte de Mônica, a narração das “Confissões”, deixa de ser pessoal, e os quatro últimos livros (X, XI, XII, e XIII) estão consagrados à reflexão sobre o estado de alma de Agostinho no momento em que redige a obra. Com a morte de Mônica, fecha-se um período de sua vida. A partir de então, se inicia um caminho novo. Se quisermos ter em mãos fontes seguras, temos que apelar para outros escritos de Agostinho, sobretudo, para a “Vida de Santo Agostinho”, de São Possídio.

A morte de Mônica mudou os planos de Agostinho. Por causa disto ficou, mais do que pretendia em Óstia, e, estando próximo o inverno, achou perigoso aventurar-se numa viagem pelo mar. Talvez as notícias que chegavam da África, cujas costas estavam bloqueadas pela frota do usurpador Máximo, em luta com o imperador Teodósio, preocupassem os viajantes, temerosos de cair nas mãos do inimigo.

Por estas razões, possivelmente, decidiu voltar a Roma, onde permaneceu por um ano. Lá, não esteve inativo. Preocupou-se em converter a Cristo seus amigos que, com ele, haviam participado de tantos erros. Visitou os mosteiros da cidade, estudando sua organização para ver que modelo adotaria para a comunidade que pensava fundar em Tagaste. Recolheu muitos documentos referentes aos maniqueus, e contra eles escreveu dois livros, demonstrando a falsidade de suas promessas e denunciando a vida desregrada de seus prosélitos.

Também aproveita sua presença em Roma para escrever novas obras: “Os costumes da Igreja Católica”, “Os costumes dos maniqueus”, “Sobre a quantidade da alma”, e “Sobre o livre arbítrio”.

Quando as circunstâncias se tornaram mais favoráveis, Agostinho e seus companheiros embarcaram para a África. Desta vez, o adeus à Itália foi definitivo. Agostinho nunca mais regressou a Roma, nem a Milão, onde passou anos abençoados pela graça de Deus.

No final do verão de 388, desembarca em Cartago. Cinco anos antes, havia partido para livrar-se dos “inoportunos” conselhos de sua mãe, e também dos apelos do Senhor. Agora, regressa conquistado pela bondade de Deus e pelo esplendor da santidade católica.

Agostinho e seus companheiros se detiveram muito pouco em Cartago. Um antigo advogado do substituto do Prefeito, chamado Inocente, os recebe em casa, onde permanecem uns poucos dias.

Logo que chegou em Tagaste, distribuiu aos pobres o pouco que lhe ficou dos bens paternos: a casa e uns campos. Quer, assim, desfrutar da liberdade total e seguir os exemplos dos Padres do deserto. Reserva somente o usufruto da casa, para nela alojar-se com seus companheiros. Seguindo o exemplo dos mosteiros que tinha visto em Milão e Roma, estabelece ai o seu.

Agostinho se sente feliz com seus acompanhantes. Pode ler, orar e dedicar-se ao estudo das Escrituras. Parecia-lhe a realização de um sonho acariciado por longo tempo.

Em Tagaste, terminou e corrigiu muitos dos tratados didáticos, começados em Milão. Entre estes se encontram os seis “Sobre a música”. Não achou oportuno abandonar as artes e letras profanas, Agostinho, como todo sábio, é humano e modesto; nunca fanático. Trata de extirpar o erro das consciências, mas reconhece a debilidade humana.

Dedica-se especialmente a desmascarar aos maniqueus, que continuam proclamando publicamente, nas praças, sua doutrina. Esta idéia deu origem a uma série de tratados escritos, não em forma clássica e elegante, mas num estilo popular e ao alcance dos menos cultos.

Agostinho, além disso, é o homem de negócios para todos os seus concidadãos. Em Tagaste é uma autoridade. Todos sabem que ele é muito influente nas altas esferas e a ele recorrem para obter proteção, conselho e orientação. Ele atende a todos. É o pai, o irmão, o amigo paciente e desinteressado... Não esquece os amigos ausentes e escreve cartas a todos. África, Itália, Espanha, Palestina recebem notícias e conselhos do “monge” de Tagaste, como lhe chamam nessa época. Entre tantas ocupações, e em meio a seus estudos, gozava de uma paz que nunca havia encontrado antes.

Na campina verde e fresquinha, repunha a saúde de seu peito cansado e enfermo e sua mente ia se preparando para as batalhas que estavam por vir. Sentia, lá, uma confiança enorme em Deus. Ante qualquer espetáculo da natureza, elevava-se a Deus.

Assim resume São Possídio a permanência de Agostinho em Tagaste:

Uma vez estabelecido em Tagaste, quase pelo espaço de três anos, renunciando a seus bens, vivia para Deus, com jejuns, orações e boas obras, meditando dia e noite a lei divina. Comunicava aos demais o que recebia do céu com seu estudo e oração, ensinando aos presentes e ausente com suas palavras e escritos” (Vida de S. Agostinho, c. 3).

Durante o retiro em Tagaste teve a tristeza de perder seu filho. Não sabemos quando. Parece que foi no final de sua estada em sua cidade natal. Podemos supor a dor intensa que sofreu Agostinho. Mas, como já fez ao contar a morte de sua mãe, também agora fará calar seu coração de pai frente ao dever e esperanças que lhe impunha a fé. O sexto capítulo do livro nove das Confissões está dedicado à recordação de Adeodato.

A história de como Agostinho chegou ao sacerdócio está rodeada de cenas curiosas e, ao mesmo tempo, comovedoras. No inicio do 391, fez uma viagem a Hipona, cidade que devia ter seus trinta mil habitantes. É uma antiga cidade fenícia, onde os romanos fizeram uma colônia. Sua importância se deve ao seu porto e aos caminhos que a comunicavam a Cirta, Tagaste, Madaura e Tebeste.

O bispo desta cidade, chamado Valério, devido a sua idade avançada já não podia atender aos cristãos. Todos estavam convencidos de que era necessário colocar à frente da Igreja de Hipona um homem jovem, ativo, originário do lugar e, sobretudo, capaz de opor-se aos hereges e cismáticos que abundavam pela cidade.

Certo dia, o bispo Valério pregava na Igreja e se lamentava da falta de um sacerdote que lhe ajudasse. Agostinho estava entre os ouvintes. Foi reconhecido e a multidão começou a gritar: Agostinho, presbítero, Agostinho presbítero!

Agostinho aceitou a vontade do povo como sinal da vontade divina, embora lhe atemorizasse a gravidade do ofício. Não se sentia com forças para este elevado ministério e, sobretudo, reconhecia não estar preparado. Pediu a Valério que lhe concedesse um pouco de tempo para preparar-se. Valério aceitou e emprestou-lhe uma casa de campo, perto de Hipona. Terminado o tempo, foi ordenado sacerdote, convertendo-se em coadjutor do bispo de Hipona.

Sentiu grande dor ao ter que deixar a comunidade de Tagaste. Contudo, logo obteve licença para trazer seus membros para Hipona. Ali estabeleceu nova comunidade e começou a viver com Evódio, Severo, Possídio e Fortunato, isto é, com quase todos que haviam partilhado com ele o retiro de Tagaste. Como Santo Agostinho, também eles foram chamados mais tarde a dirigir outras Igrejas da África, como bispos.

É o próprio Agostinho, quem, resumidamente nos refere estes fatos:

Vim, pois, a esta cidade (Hipona) para ver um amigo, a quem queria ganhar para Deus e para nosso convento. Vinha seguro, porque tínheis bispo. Mas, surpreendendo-me, forçaram-me a receber as ordens sagradas, e por este degrau cheguei à dignidade episcopal. Nada trouxe aqui; só vim com a própria roupa. E, como aqui queria viver em comunidade com meus irmãos, o ancião Valério, de feliz memória, conhecendo meu propósito, me deu o horto, onde agora, está o convento. Comecei a recrutar alguns irmãos que tinham vocação, pobres como eu, pois nada possuíam e, imitando o que eu fiz quando vendi e dei aos pobres o preço da minha pequena herança, seguiram o meu exemplo os que quiseram aderir-se a mim para viver em vida comum, sendo grande e abundantíssima a herança de todos: Deus, nosso Senhor” (Sermão 355, 1-2)

As normas que seguiam no convento não eram exigentes demais, nem excessivamente frouxas. Com o espírito prático que o caracteriza, Agostinho compreendeu que a melhor regra de disciplina era conservar a justa medida. O estudo, a oração de louvor e o exercício prático da caridade fraterna fazem da comunidade de Tagaste um reflexo vivo da primeira comunidade apostólica mandou escrever na parede do refeitório uma frase em latim que, traduzida, fica assim: “Aquele que gosta de falar mal dos ausentes, saiba que é indigno de sentar-se nesta mesa”. Um dia, nos conta São Possídio, como alguns de seus amigos e colegas no episcopado houvessem esquecido esta sentença, os repreendeu com severidade e disse, cheio de caritativo rigor, que, ou haviam de apagar-se aqueles versos ou ele se retiraria imediatamente.

Agostinho exercia em Hipona o cargo de presbítero, de superior do mosteiro e de apóstolo. Atendia na preparação e na instrução dos catecúmenos; defendia a Igreja contra os dissidentes. Em resumo, assim vivia Agostinho e seus monges:

Fundou um mosteiro junto à Igreja e começou a viver com os servos de Deus segundo o modo e a regra estabelecida pelos apóstolos. Sobretudo, cuidava para que ninguém naquela comunidade possuísse bens, que tudo fosse comum e se distribuísse a cada qual segundo sua necessidade... E São Valério, seu ordenante, não cabia em si de gozo... e lhe deu poder para pregar o Evangelho em sua presença e dirigir freqüentemente a palavra ao povo, contra o uso e costume das igrejas da África... Depois, alguns presbíteros, com a permissão de seus bispos, começaram também a pregar ao povo diante de seus pastores” (Vida de Santo Agostinho, cap. 5)

 

ORDENAÇÃO SACERDOTAL DE AGOSTINHO

Regia, então, a igreja católica de Hipona o santo bispo Valério que, movido pela necessidade de seu rebanho, falou e exortou ais fieis para que providenciassem e ordenassem um sacerdote idôneo para a cidade. Os católicos, que já conheciam o gênero de vida e a doutrina de Santo Agostinho, arrebatando-o, porque se achava seguro no meio da multidão, sem prever o que podia acontecer -pois, como ele mesmo nos dizia quando era leigo, se afastava somente das igrejas que não tinham bispo-, o apressaram e, como acontece em tais casos, o apresentaram a Valério para o ordenasse, segundo o exigiam com clamor unânime e grande desejo. Entretanto, ele chorava copiosamente. Não faltaram aqueles que interpretaram mal as suas lágrimas, segundo nos referiu ele mesmo. e, como para consolar-lhe, diziam-lhe que, embora digno de maior honra, contudo, o grau de presbítero estava próximo de episcopado. Sendo assim, aquele homem de Deus, como sei por confidência sua, elevando-se às mais altas considerações, gemia pelos muitos e graves perigos que via cair sobre si com o regime e governo da Igreja. Assim se fez o que eles quiseram” (Vida de Santo Agostinho, cap. 4)

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

A PAZ DE CASSICIACO.A DOR DA ORFANDADE

(Aos 35 anos de idade)

Depois das angústias pelas quais acabava de passar, Agostinho sente a necessidade de recolher-se no silêncio e na paz. Um de seus amigos, Verecundo, que ensina gramática em Milão e do qual Nebrídio é auxiliar, põe à sua disposição a propriedade de Cassiciaco. Sem vacilar, aceita este generoso oferecimento e, quando fica livre de seus compromissos oficiais como professor, se retira ao campo.

Reúne junto a si, em Cassiciaco, um grupo de africanos, entre eles, seu irmão Navígio e seus primos Rústico e Lastidiano. Além deles, há dois jovens, Licêncio e Trigêncio, que foram seus alunos em Milão e que desejam seguí-lo. Alípio, também, é claro. Adeodato, o filho de Agostinho, é o mais jovem de todos e já começa a dar provas de uma inteligência precoce.

Juntamos também a nós Adeodato, filho do meu pecado, a quem tinhas dotado de grandes qualidades. Com quinze anos superava em talento a muitas pessoas maduras e eruditas” (Conf. IX, 6)

E junto a estes jovens, a presença de Mônica dava ao grupo de Cassiciaco um ambiente familiar. Ela é quem prepara as refeições e que assegura o bem estar de todos. É, verdadeiramente, a mãe de toda esta juventude; e, cada vez que aparece no grupo, é recebida com respeitosa alegria. Não falta o trabalho material, já que a propriedade de Verecundo é enorme. Normalmente, é Mônica quem dirige estes trabalhos. O principal objetivo deles, contudo, é o estudo, as discussões filosóficas e a oração.

Neste retiro de Cassiciaco, Agostinho escreve suas primeiras obras filosóficas: “Sobre a vida feliz”; “Contra os acadêmicos”; “Sobre a ordem”.

Ao aproximar-se a Quaresma do ano 387, todos deixam Cassiciaco para regressar a Milão. Agostinho e seu filho Adeodato têm que preparar-se para receber o batismo, que vai ser administrado por Ambrósio.

Não conhecemos os sentimentos de Agostinho durante as semanas que precederam seu batismo. Ele guardou, a respeito disto, absoluto silêncio. Em suas “Confissões”, que tantos detalhes dá de sua vida, sobretudo relativo à sua crise e conversão, nada diz relacionado aos dias que antecederam seu batismo. Resume numa frase suas impressões recebidas no momento do batismo: “Fomos batizados, e desapareceu qualquer preocupação quanto à vida passada” (Conf. IX, 6)

Tudo isto aconteceu na noite de 24 para 25 de abril do ano 387. Durante sua preparação para o batismo, escreveu outras duas obras: “Sobre a imortalidade da alma”; “Sobre a música”.

Uma vez batizados, Agostinho e seus amigos já não têm nada a fazer em Milão. O propósito de Agostinho é formar uma comunidade de irmãos entregues à perfeição cristã. Suas posses de Tagaste podiam servir-lhe para esta finalidade, e decide dirigir-se para lá.

Deve ter sido doloroso despedir-se do bispo que os havia atendido com solicitude paternal, do generoso Verecundo, que não pode receber com eles o batismo, de Teodoro, a quem dedicou o livro “Sobre a vida feliz”, e de tantos outros que lhe haviam demonstrado um afeto especial. No final do verão (setembro), todo este grupo se vê reunido em Óstia, porto próximo de Roma, onde vão embarcar para a África.

Como as ocasiões de atravessar o mar não eram muito freqüentes, tiveram que deter-se alguns dias em Óstia, alojando-se em casa de uma família cristã.

Óstia era uma cidade muito importante. Uma multidão cosmopolita, de diferentes línguas e costumes, se agitava em suas ruas, que se enchiam de um barulho ensurdecedor. Barcos carregados de azeite, trigo e todo tipo de mercadorias, enchiam o porto. Nos navios se escutavam as vozes estranhas dos marinheiros.

No centro desta cidade agitada e barulhenta, Agostinho e sua mãe saboreavam a oração e a contemplação das coisas de Deus. Apoiados, um dia na janela que dava para o jardim da casa, mãe e filho se entretinham comentando a grandeza de se poder unir a Deus na eternidade.

Durante esta conversa das coisas divinas, buscando, juntos, a luz e a verdade e pensando como seria a vida dos santos, de repente se sentiram em êxtase e, imensamente felizes, usufruíram da doçura da presença do Senhor. Que viram naquele êxtase? Ninguém sabe. Mãe e filho, porém se sentiram voar para Deus e chegaram até o céu. Esta cena passou para a história agostiniana com o nome de O ÊXTASE DE ÓSTIA.

Ao aproximar-se o dia de sua morte -dia que só Tu conhecias e nós ignorávamos- sucedeu, creio que por tua vontade e de modo misterioso como costumas fazer, que ela e eu nos encontrássemos sozinhos, apoiados a uma janela, cuja vista dava para o jardim interno da casa onde morávamos, em Óstia Tiberina. afastados da multidão, procurávamos depois das fadigas de uma longa viagem, recuperar as forças, tendo em vista a travessia marítima. Falávamos a sós, muito suavemente, esquecendo o passado e avançando para o futuro. Tentávamos imaginar na tua presença, tu que é a verdade, qual seria a vida eterna dos santos... E subíamos ainda mais ao interior de nós mesmos, meditando, celebrando e admirando as tuas obras. E chegamos assim ao íntimo de nossas almas. Indo além, atingindo a região da inesgotável abundância...

Assim falávamos, se bem que de modo e com palavras diversas. No entanto, Senhor, Tu sabes como nesse dia, durante esse colóquio, o mundo, com todos os seus prazeres, perdia para nós todo o seu valor, e minha mãe me disse:

- Meu filho, nada mais me atrai nesta vida; não sei o que ainda estou fazendo aqui, nem por que ainda estou aqui. Já se acabou toda esperança terrena. Por um só motivo desejava prolongar a vida nesta terra: ver-te católico antes de eu morrer. Deus me satisfez amplamente, porque te vejo desprezar a felicidade terrena e servi-lo. Por isso, o que é que estou fazendo aqui?” (Conf. IX, 10, 26)

Talvez Mônica tivesse o pressentimento de sua morte próxima. De qualquer forma, apenas alguns dias depois de haver deliciado e contemplado, durante um abrir e fechar de olhos, as coisas eternas, ela caiu gravemente enferma.

“Não me lembro bem o que foi que lhe respondi. Passados, porém, cinco dias ou pouco mais, ela caiu de cama com febre. Durante a doença, perdeu os sentidos, por alguns instantes não reconhecia os presentes, Acorremos logo, e ela imediatamente, voltou a si. Olhou para o meu irmão e para mim ao lado e, como se procurasse alguma coisa, perguntou-nos:

- onde é que estava?

Depois, notando o nosso espanto e tristeza, acrescentou:

- Enterrareis aqui a vossa mãe.

Permaneci mudo procurando conter as lágrimas. Meu irmão, porém, proferiu algumas palavras, mostrando o desejo de vê-la morrer na pátria e não em terra estranha. Minha mãe repreendeu-o com olhar severo por pensar de tal maneira. E disse aos dois:

- Enterrai este corpo em qualquer lugar, e não vos preocupeis com ele. Faço-vos apenas um pedido: lembrai-vos de mim no altar do Senhor, seja qual for o lugar onde estiverdes...

Pelo nono dia de doença, aos cinqüenta e seis anos de idade, quando eu tinha trinta e três, essa alma fiel e piedosa libertou-se do corpo. Fechei-lhe os olhos e uma tristeza infinita invadiu-me a alma. Estava prestes a transbordar em torrentes de lágrimas. Contudo, por um violento ato de vontade, meus olhos as absorveram até secar-lhes a fonte. Eu me senti mal ao fazer tal esforço. Quando ela exalou o último suspiro, o jovem Adeodato prorrogou em soluços, mas, instado por nós, calou-se. Assim também eu, naquele resto de infância que tendia a manifestar-se em lágrimas, também eu calava, vencido pela voz do adulto, pela voz de espírito. De fato, não nos parecia justo celebrar o funeral com lamentos e choros, pois essas demonstrações servem usualmente para deplorar a morte como infelicidade ou como aniquilamento total, ao passo que essa morte, não era uma desgraça nem era para sempre...

Quando seu corpo foi levado, fomos à sepultura, e de lá voltamos sem chorar. Nem mesmo chorei durante as orações, quando oferecemos por ela o sacrifício de nossa redenção, com o corpo colocado já ao lado do túmulo, antes do enterro, segundo era costume do lugar. Nem durante essas preces chorei.

No entanto, durante o dia todo, me oprimia uma dor íntima e, com o coração perturbado, eu te suplicava, quanto podia, que aliviasses meu sofrimento. E Tu não o fizeste... Pensei então tomar um banho, pois ouvira dizer que o nome “banho” vem do grego “balanion”, porque afasta os sofrimentos da alma. Confesso também isso à tua misericórdia, ó Pai dos órfãos; confesso que sai do banho como estava antes, sem conseguir expulsar do coração essa amarga tristeza,. Depois adormeci. Quando acordei, a dor era bem menor... Depois, pouco a pouco, voltava a recordar os primeiros pensamentos sobre a tua serva, seu comportamento piedoso para contigo... e queria ainda chorar diante de Ti... Afinal, não mais reprimi as lágrimas, que correram à vontade; e sobre elas pousei o coração que nelas encontrou repouso” (Conf. IX, 11 e 12)

Atualmente, em Óstia, há uma pequena capela que, segundo a tradição, aponta o lugar onde estava a casa que habitavam Mônica e Agostinho. Este lugar é glorioso e venerável, porque foi testemunha da morte admirável de uma santa e da dor religiosa e humana de um dos maiores homens que brilharam na história da Igreja e da humanidade.

 

Santa Mônica, mãe de Agostinho

Santa Mônica nasceu no ano 322, de pais católicos, provavelmente em Tagaste. Foi educada com esmero e piedosamente por uma criada já idosa, muito bondosa e fiel, estimada da família por sua prudência e devoção. Santa Mônica foi batizada logo. Sempre levou uma vida irrepreensível quanto aos costumes e piedade. Quando ficou adulta, casou-se com Patrício, pagão ainda, natural de Tagaste. Obedeceu sempre a seu marido como a seu senhor. Empenhou-se em conquistá-lo para Deus com exemplos e bons costumes. Tinha o dom da concórdia e da paz por sua profunda união com Deus. Este dom rendeu ótimos frutos de paciência. Quando Agostinho tinha 16 anos, no ano 370, Patrício estava inscrito no número dos catecúmenos. Morreu, já batizado, no ano seguinte. Santa Mônica estava, então com 40 anos de idade.

Como viúva, levou uma vida casta e sóbria, praticando a esmola, a oração pelos pecadores, o serviço à Igreja e aos servos de Deus. Todos que a conheciam louvavam e bendiziam a Deus por sua grande virtude e bons exemplos.

Seu fervor deve ter sido extraordinário, porque mereceu a veneração e o respeito de um grande santo: Santo Ambrósio. Ia à igreja duas vezes ao dia, de manhã e de tarde, sempre submergida na oração interior.

Finalmente, praticou, ao pé da letra, o que ensinou o Apóstolo São Paulo sobre as viúvas em sua primeira epístola a Timóteo (5, 9-10)

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

6ª.- DA LUTA INTERIOR À PAZ DA VIDA NOVA

(De 31 à 32 anos de idade)

O estado de ânimo em que se encontra Agostinho nesse momento é de indecisão. Quer e não quer ao mesmo tempo. Busca e tem medo de encontrar o que busca. Entre os problemas que se apresentam, ao menos um deve ser resolvido o quanto antes: o do matrimônio. Já faz dez anos que vive com a mesma mulher, a mãe de Adeodato, a quem guardou fidelidade. Com esta mulher, porém, segundo o costume de então, não podia constituir um verdadeiro matrimônio por causa de sua condição social. 

Mônica, que não busca para seu filho senão a paz e tranqüilidade, crê que o único obstáculo é a presença daquela concubina. Trata de afastá-la de seu filho, ajeitando um possível casamento.

Entretanto, insistiam constantemente para que eu me casasse... Quem mais trabalhava neste sentido era minha mãe... insistia junto a mim nesse matrimônio, e foi feito o pedido formal a uma jovem. Faltavam-lhe ainda dois anos para a idade núbil, mas por ser do agrado de todos, ia-se esperando”. (Conf. VI, 13, 23)

Nós não podemos aprovar a atitude de Mônica nesta ocasião. Menos ainda a submissão de Agostinho. O certo é que aquela mulher, deixando seu filho aos cuidados de Agostinho, acabou se separando dele. A separação foi profundamente dolorosa. O coração de Agostinho experimenta uma ferida grave. Sente correr rios de sangue ante o abandono daquela que lhe deu um filho:

No entanto, multiplicavam-se os meus pecados. Quando de mim foi arrebatada a mulher com quem vivia, considerada impedimento para meu casamento, meu coração, que lhe era afeiçoadíssimo, ficou profundamente ferido e sangrou por muito tempo. Ela voltou para África fazendo a Ti o voto de jamais pertencer a outro homem e deixando para mim o filho que me havia dado”. (Conf. VI, 15, 25)

Agostinho, no entanto, depois de haver deixado partir sua mulher sente-se incapaz de guardar castidade e arranja outra mulher. Nas conversas que tem com seus amigos, os problemas do casamento e da castidade ocupam um lugar predominante.

Mas eu, infelizmente, fui incapaz de imitar a esta mulher! Eu não conseguia suportara a espera de dois anos para receber a esposa que tinha pedido. Na realidade eu não amava o matrimônio; eu era, sim, escravo do prazer. E tratei de arranjar outra mulher, não como esposa legítima, para manter e alimentar intacta ou agravar a doença de minha alma até o casamento, e ai chegar sem haver interrompido meus hábitos”. (Conf. VI, 15, 25)

Não era a primeira vez que Agostinho tentava ajeitar sua vida; num esforço por superar-se e de ver-se livre de ataduras humanas, decidiu fazer a experiência, com uns amigos, de viver somente para as coisas sublimes, dedicando-se inteiramente à vida intelectual. Mas, logo abandonam o projeto.

Tínhamos organizado o nosso retiro, de modo a colocar em comum os bens que possuíamos, formando assim um patrimônio único...; parecia-nos ser possível reunir numa única sociedade uma dezena de pessoas, algumas muito ricas, sobretudo Romaniano, meu conterrâneo e grande amigo desde a infância... Mas, quando se procurou imaginar como seria tal idéia recebida pelas esposas, que já alguns tinham e outros, como eu, desejavam ter, o plano tão bem formulado, se desfez em nossas mãos, despedaçou-se e foi abandonado”. (Conf. VI, 14, 24)

Um pouco adiante Agostinho voltará a expressar sua dificuldade em guardar a castidade e continência.

Mas eu, adolescente desventurado em extremo, tinha chegado a pedir-te a castidade dizendo: - Dai-me a castidade e a continência, mas não agora”. (Conf. VII, 7, 17)

Agostinho não conseguia encher o vazio que sentia em sua alma. Buscava Deus que, contudo, lhe parecia estar num cume elevadíssimo, distante. Não havia caminho senão Jesus Cristo, capaz de levá-lo ao cume. Mas Agostinho não sabia disto. Descobriu-o na leitura das cartas de São Paulo. Nelas foi aprendendo que, para unir-se a Deus, é absolutamente necessário que a alma se purifique, sane as debilidades da carne, faça penitência e se humilhe. “Somente um coração contrito e humilhado pode ver a Deus”.

Assim como o artista, para poder expressar com nobreza as imagens de sua fantasia, deve antes libertar-se de qualquer pensamento baixo e vulgar, assim o cristão, para penetrar no mistério de Deus, deve purificar-se por meio da humildade e da penitência.

Quanto mais lia as cartas de São Paulo, mais se sentia comovido e mais se admirava de sua doutrina.

Agostinho, contudo, não encontrava a maneira de libertar seu espírito do turbilhão de seus sentidos. Até então, havia vivido entregue aos prazeres. No princípio, levado pelo impulso de sua natureza ardente e apaixonada; depois, em virtude da inércia, sentia-se ainda preso ao pecado.

Eis o que espantava Agostinho: como viver privado, não só dos prazeres da carne, senão também daqueles outros pequenos caprichos que ainda traz consigo? Agostinho se sentia enfermo interiormente. Notava dentro de si uma força que o impulsionara ao mal, a qual era impossível de dominar.

Ficava preso às mais insignificantes bagatelas, às vaidades das vaidades, minhas velhas amigas que me solicitavam a natureza carnal, murmurando: ‘Tu nos vais abandonar?’ E também: ‘De agora em diante, nunca mais estaremos contigo’. E ainda: ‘De agora em diante, não poderás fazer isto ou aquilo’ E que pensamentos me sugeriam, meu Deus, ao dizerem: ‘Isto e aquilo...’

Do lado para onde voltava o rosto e por onde temia passar, apresentava-se a mim a casta dignidade da Continência, com serena alegria e sem desordem... Encontravam-se ai meninos e meninas, grande número de jovens e pessoas de todas as idades, dignas viúvas, virgens, idosas. Em todas elas não era estéril a continência, e sim a mãe fecunda das alegrias geradas de ti, Senhor seu esposo. E a Continência ria, de mim e ao mesmo tempo me exortava, como se dissesse: ‘Não poderás tu fazer o mesmo que fizeram estes e aquelas...”. (Conf. VIII, 11, 26-27)

Um dia estava Agostinho em companhia de Alípio, quando recebeu a visita de um conterrâneo seu, certo Ponticiano, que ocupava um cargo no Palácio Imperial. Ao ver sobre a mesa as cartas de São Paulo, alegrou-se e começou a falar do ascetismo e, de modo concreto, de Antão, eremita cujo nome andava de boca em boca. Como nem Alípio nem Agostinho conheciam nada do movimento ascético dos desertos de Egito, Ponticiano lhes deixou alguns frutos de santidade que se haviam produzido recentemente. Contou-lhes também a história de dois jovens de Trévis, convertidos pela leitura da vida de Santo Antão.

A narração de Ponticiano havia chegado até a última fibra do sentimento de Agostinho. Quando ele partiu, suas palavras continuaram ressoando como um eco e um convite incessante no fundo da sua consciência.

Em seguida, Agostinho se volta para Alípio e, perturbado em seu interior e também em seu aspecto externo, lhe diz:

“O que é que nos aflige tanto? Que significa isso que também tu acabas de ouvir? Erguem-se os incultos e tomam de assalto o reino do céu, enquanto nós, com o nosso saber insensato, nos debatemos na carne e no sangue! Será que nos envergonhamos de seguí-los porque chegaram primeiro, e não nos envergonhamos de deixar de segui-los?.“ (Conf. VIII, 8, 19)

Alípio contemplava em silêncio seu amigo. Na realidade, sua voz tinha algo de estranho e insólito. Seu rosto, seu olhar, seus gestos, a cor do rosto expressavam, com mais eloqüência que as palavras, a luta atroz que se realizava em seu interior. Agostinho desceu ao jardim. Alípio, inquieto e temeroso, o seguiu. Sentaram-se em silêncio afastados da casa, entre as sombras das árvores. Agostinho sentia que tinha chegado o momento de firmar um pacto com Deus. A tempestade das dúvidas rugia em seu interior. Seu espírito retorcia-se delirante, entre o arrependimento e a penitência. Já havia começado a luta da carne contra o espírito.

Quando essas severas reflexões me fizeram emergir do íntimo e expuseram toda a minha miséria à contemplação do coração, desencadeou-se uma grande tempestade portadora de copiosa torrente de lágrimas. Para dar-lhes vazão com naturalidade, levantei-me e afastei-me de Alípio, o necessário para que sua presença não me perturbasse, pois a solidão me parecia mais apropriada ao pranto. Alípio percebeu o estado em que me encontrava: o tom da voz embargada pelas lágrimas, ao dizer-lhe alguma coisa, havia-me traído. Levantei-me, ele permaneceu atônito, onde estávamos sentados. Deixei-me, não sei como, cair debaixo de uma figueira e dei livre curso às lágrimas, que jorravam de meus olhos aos borbotões, como sacrifício agradável a Ti. E muitas coisas eu Te disse, não exatamente nestes termos, mas com o seguinte sentido: E Tu. Senhor, até quando? Até quando continuarás irritado? Não te lembres de nossas culpas passadas! Sentia-me ainda preso ao passado, e por isso gritava desesperadamente: Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim à minha indignidade? Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de repente, ouço uma voz vinda da casa vizinha. Parecia de um menino ou menina repetindo continuamente uma canção. Toma e lê, toma e lê. Mudei de semblante e comecei com a máxima atenção a observar se se tratava de alguma cantilena que as crianças gostam de repetir em seus jogos. Não me lembrava, porém de tê-la ouvido antes. Reprimi o pranto e levantei-me. A única interpretação possível, para mim, era a de uma ordem divina para abrir o livro e ler as primeiras palavras que encontrasse. Tinha ouvido que Antão, assistindo por acaso a uma leitura evangélica, sentiu um chamado, como se a passagem lida fosse pessoalmente dirigida a ele: ‘Vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me’. E logo, voltei ao lugar onde Alípio ficara sentado, pois, ao levantar-me, havia deixado ai o livro do Apóstolo.. Peguei-o, abri e li em silêncio o primeiro capítulo sobre o qual caiu o meu olhar: ‘Não em orgias nem bebedeiras, nem a devastação e libertinagem, nem nas rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne. Não quis ler mais, nem era necessário. Mal terminara a leitura dessa frase dissiparam-se em mim todas as trevas da dúvida, como se penetrasse no meu coração uma luz de certeza”. (Conf. VIII, 12, 28-29)

Tudo isto ocorreu no mês de setembro do ano 386. Só faltavam alguns dias para o fim do curso. Preferindo a chegada das férias, Agostinho continuou, por mais três semanas, as aulas. Desta maneira evitou os comentários de sua repentina conversão e poupou aos alunos e seus pais os inconvenientes de buscar um novo professor. Por outro lado, o estado de saúde seria uma boa desculpa para abandonar o ensino oficial. A umidade do clima milanês produziu-lhe uma espécie de bronquite crônica.

Passados, pois, aqueles dias finais do curso, Agostinho, livre de todo compromisso, pode em silêncio e recolhimento, preparar-se para receber o sacramento do batismo.

AGOSTINHO SE CONVERTE TOTALMENTE PARA DEUS

Marcando a passagem com o dedo ou com outro sinal qualquer, fechei o livro e, de semblante mais tranqüilo, o mostrei a Alípio. Também ele, por sua vez demonstrou o que lhe acontecera e que eu ignorava. Pediu-me que lhe mostrasse a passagem lida por mim. Mostrei-a, e ele prosseguiu além do que eu havia lido, ignorando eu, portanto o que estava escrito. O texto era o seguinte: Acolhei ao fraco na fé. Alípio aplicou-o a si mesmo e o revelou a sim. Fomos imediatamente à minha mãe e lhe contamos o sucedido. Ela ficou radiante. E nós lhe relatamos como os fatos se tinham desenvolvido. E ela exulta e triunfa, bendizendo-Te, Senhor, que és poderoso além do que pedimos. Verificava que lhe havia concedido muito mais do que ela pedira com lágrimas e orações em meu favor.

De tal forma me converteste a Ti, que eu já não procurava esposa, nem esperança alguma terrena, mas permanecia firme naquela fé em que tantos anos antes me tinhas mostrado em sonho e minha mãe. Transformaste sua tristeza em alegria. Alegria muito maior do que ela poderia esperar dos netos nascidos de minha carne”. (Conf. VIII, 12, 30).

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

5ª - CARTAGO - ROMA - MILÃO

(De 22 à 30 anos)

Durante sua permanência em Cartago, Agostinho teve que lutar, desde o princípio, com urgentes necessidades materiais. Tinha que providenciar sustento, não só da mulher e do filho, senão também de sua mãe e, talvez, de seus dois irmãos. Aqui temos Agostinho, dedicado inteiramente a seu ofício de “vendedor de palavras” (Conf. IV, 2, 2). A atenção dos jovens não demorou em dirigir-se ao novo professor, que dava provas de extraordinárias qualidades oratórias e intelectuais.

Na sua escola se encontravam não poucos alunos de Tagaste, aos quais se somaram outros. Assim podemos cita Licencio, filho de Romaniano, Eulógio, Honorato e Alípio, que deve ter sido sucessor, no coração de Agostinho, do amigo que morreu.

Ao ensino de retórica unia a doutrina moral. Isso sabemos por ele mesmo. Conta-nos que censurou em uma de suas aulas, aos jogos de circo. Tal censura induziu Alípio, que era muito afeiçoado a tais jogos a abandoná-los (Conf. IV 7, 12)

O que atraiu Agostinho ao maniqueismo foi o desejo de encontrar a verdade. Os maniqueus a haviam prometido e ofereceram demonstrações claras e decisivas. No decorrer do tempo, contudo, Agostinho se dá conta de que, quanto mais pensa, mais descobre que as promessas deles não foram e jamais podiam ser cumpridas.

As dificuldades eram muitas. Agostinho só conservou-se fiel ao maniqueismo graças à “santidade dos eleitos”. Se estes levavam uma vida moral irreprovável, não constituía isto indicio de que fosse verdadeira a doutrina que os dirigia à santidade? Mas este motivo deixava de ser válido já que, aqueles que faziam profissão de virtude e santidade, não passavam de uns farsantes hipócritas.

Agostinho esperava com impaciência a chegada em Cartago, do célebre bispo dos maniqueus, Fausto que, sem dúvida, havia de resolver-lhe as dificuldades que se apresentavam. Era o que lhe prometiam os mesmos maniqueus. E, de fato, conseguiu uma entrevista com Fausto, porém, não foi satisfatório. Fausto contestou as objeções de Agostinho com evasivas e muita ignorância

Quando finalmente, me foi possível, com alguns amigos, fazer que ele me escutasse num momento oportuno, então lhe apresentei algumas dificuldades que me perturbavam. Descobri logo que ele nada entendia das disciplinas liberais, com exceção da gramática, da qual conhecia apenas o corriqueiro. Tinha lido algumas obras de poetas, e umas poucas de seus correligionários, escritas em latim melhor cuidado. E como se exercitava diariamente na oratória, havia adquirido facilidade de falar, tornada ainda mais agradável e sedutora pelo emprego inteligente de seu talento e de certa graça natural” (Conf. V, 6)

Agostinho já tem 29 anos de idade. Nesta época já escreveu sua primeira obra, “De pulchro et apto”, que se perdeu.

Em Cartago encontrou alguns amigos extraordinários. E, no círculo de seus estudantes, descobriu discípulos de uma fidelidade a toda prova. Mas este círculo se quebrou, pelas circunstâncias, à medida que cada um dos alunos terminava seus estudos. Alípio, concretamente, decidiu partir para Roma, onde foi estudar direito. Por outro lado, o ambiente de Cartago, desagradava cada vez mais ao jovem professor, que não se acostumava aos modos grosseiros dos chamados “destruidores” (rebeldes). Seu modo de ser sofre ao ver aqueles tumultos e gritarias.

Certamente que, junto com ele, estavam a mulher que ama e o filho. Também sua mãe veio morar na grande cidade. Não sabemos os motivos nem o tempo de sua chegada. Sua influência continua pesando sobre Agostinho, o que não é suficiente.

Disseram a Agostinho que, se quisesse, poderia encontrar facilmente em Roma, uma ocupação muito mais importante e um salário muito melhor. O que mais convence Agostinho, no entanto, é a convicção de que os estudantes de Roma eram muito mais responsáveis que os de Cartago.

No ano 383 prepara sua viagem; mas de uma maneira pouco digna: enganando à mãe. De fato, sob o pretexto de ir até o porto despedir-se de um amigo e aproveitando que Mônica tinha ido a uma capela próxima para rezar, Agostinho fuge.

No entanto, somente tu, meu Deus, conhecias os motivos que me faziam deixar Cartago e me levavam a Roma, mas não manifestavas à minha mãe nem a mim. Ela chorou amargamente a minha partida e me seguiu até o mar. Quando me apertou estreitamente, tentando persuadir-me a voltar ao a deixá-la vir comigo, enganei fingindo que desejava acompanhar um amigo que aguardava vento favorável para navegar. Menti a minha mãe, e que mãe! Fugi dela!

Recusando voltar sem mim, eu a convenci com esforço a passar a noite numa capela dedicada a São Cipriano, vizinha ao lugar onde se achava nosso navio. Nessa mesma noite parti escondido e ela ficou a chorar e a rezar”(Conf., V, 8, 5)

No outono de 383 Agostinho chega, são e salvo, a Roma. Leva cartas de recomendação para alguns personagens influentes da seita dos maniqueus e é recebido na casa de um deles.

O começo em Roma não é nada agradável. Logo que chega, cai doente. Tal vez o fraco organismo de que é dotado, não resiste ao incômodo da viagem e à mudança de clima e de alimentação. Durante alguns dias, Agostinho encontra-se entre a vida e a morte. Mais tarde, se lamentará por não ter pedido o batismo, como quando criança, nas mesmas circunstâncias. De qualquer modo, temos de reconhecer que Agostinho sente-se muito debilitado pela febre para ter consciência clara de seu estado. Sobretudo seu pensamento andava muito longe do catolicismo para sentir-se capaz de pedir sua admissão na Igreja.

Logo que se recompôs de sua doença quis organizar sua nova vida. Com a ajuda de seus amigos africanos, Agostinho abre, em sua própria casa, uma escola particular; e inaugura o curso.

Sua preocupação consiste em reunir alunos. Não é rico e, portanto, tem que assegurar a sobrevivência, tanto pessoal, quanto de sua mulher e de seu filho que vai crescendo. Sem demora consegue reunir alguns alunos que, por sua vez, trazem outros. Mas logo constata que os alunos de Roma não são mais constantes e sérios que os africanos. Além do mais, têm um defeito muito grave: não pagam seus professores. Assistem por algum tempo as aulas e, quando chega a hora de pagar a quota desaparecem de tal forma que torna-se difícil encontrá-los. O inconveniente é muito mais grave ainda para quem, como Agostinho não pode suportar esta falta de delicadeza e busca uma ocasião para abandonar Roma.

Tomando conhecimento que na cidade de Milão estão procurando um professor de retórica, não duvida. Com a ajuda de um amigo, se candidata e é aceito. Imediatamente se dirige a Milão.

Agostinho tinha então 30 anos, idade em que amadureceram as mais profundas crises espirituais. Prepara-se para ser um dos mais ilustres personagens de seu tempo, numa grandiosa cidade, a segunda capital do império ocidental, residência da corte imperial.

Logo em seguida começou o ensino de retórica, que devia durar apenas dois anos. Os jovens milaneses estavam contentes com o trabalho do mestre africano. Admiravam sua eloqüência, embora estranhassem a pronuncia e o sotaque cartaginês.

Com freqüência recorriam a ele quando se devia pronunciar algum panegírico de príncipe ou dos mais distintos magistrados do império. “Recitava - nos diz ele- uma série de mentiras, certo de ser aplaudido por homens que conheciam perfeitamente a verdade” (Conf. IV, 6, 9)

Agostinho chegou a Milão o ano 384. Em 385 chegou também sua mãe, para grande surpresa dele. Lá, ele teve ocasião de conhecer o famoso bispo Ambrósio, defensor incansável dos fracos e oprimidos, guardião zeloso dos interesses da Igreja e da fé. Sentia-se, por toda parte, o peso de sua autoridade. Poucos homens tiveram, como ele, o sentido exato da justiça. O povo o amava muitíssimo e estava pronto a defendê-lo em todo momento. As virtudes do famoso bispo eram proclamadas por todo o povo milanes. Somente uns poucos adversários não cessavam de atacá-lo.

Assim que chega a Milão, Agostinho decide visitar o ilustre bispo, médico de almas. Queria encontrar uma pessoa a quem confiar suas angústias, com a esperança de receber algum alívio. Para sua infelicidade a entrevista durou muito pouco. Ambrósio estava sempre muito ocupado, atendendo às pessoas que a ele recorriam em busca de favores, de conselhos e recomendações. Com paternal benevolência, contudo, o recebeu. Mas logo o despediu.

Embora não pudesse manter longa conversa com o bispo, Agostinho começou a freqüentar a Igreja onde o bispo pregava, para ouvir-lhe. Assim, pouco a pouco, a doutrina que pregava foi entrando no coração de Agostinho. Desta forma foi descobrindo o valor da Bíblia, cujo significado espiritual exige certa preparação. Neste livro, que antes havia rejeitado, Agostinho acabou por encontrar verdadeiros encantos.

Já haviam passado 11 anos desde que o jovem estudante de Cartago havia se sentido perturbado em seu interior com a leitura do “Hortênsio” de Cícero. Desde então, havia brilhado em seu interior a busca da sabedoria e a esperança de romper com as frivolidades de suas paixões.

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

4ª. EM BUSCA DA VERDADE - PROFESSOR EM TAGASTE - O AMIGO FIEL

(De 18 a 21 anos)

Agostinho não foi a Cartago só para se divertir. A lembrança da morte do seu pai, que aconteceu pouco tempo depois de sua chegada na cidade, os sacrifícios que implicavam seus estudos para a economia da casa, os desvelos e cuidados da mãe e o agradecimento que devia a Romaniano, amigo e colaborador de sua família, o fizeram refletir. Assim, ele sempre quis lhes mostrar seu reconhecimento por médio do êxito nos estudos.

Estudo muito e leu muito também, compreendendo sem esforço as matérias mais difíceis. Ele atribui a Deus sua grande inteligência e nos diz que aprendia sozinho (autodidata), sem sentir dificuldade alguma em assimilar as ciências que seus colegas não compreendiam senão a custa de um grande esforço.

Seguindo o programa normal do curso, chegou-me às mãos o livro de um tal Cícero, cuja linguagem, mais do que o coração, é quase unanimemente admirado. O livro é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio. Devo dizer que ele mudou os meus sentimentos e o modo de dirigir-me a ti. Ele transformou as minhas aspirações e desejos. Repentinamente, pareceram-me desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a aspirar com todas as forças à imortalidade que vem da sabedoria. Começava a levantar-me para voltar a ti” (Conf. III, 4, 7).

No entanto, o Hortênsio não lhe deu a paz buscava: o nome de Cristo não aparecia em suas páginas. Embora afastado de toda prática religiosa, Agostinho havia ouvido demais o nome de Cristo para deixar-se seduzir pela literatura pagã. Inclusive em Cartago, ia à Igreja, atraído por uma espécie de instinto.

Sentiu então o desejo de ler a Bíblia, mas foi um grande fracasso: o admirador da eloqüência clássica não podia suportar a leitura daquelas páginas escritas em estilo tão humilde.

Resolvi por isso dedicar-me aos estudos das Sagradas Escrituras, para conhecê-las. E encontrei um livro que não se abre aos soberbos e que também não se revela às crianças. Humilde no começo, mas que nos leva aos píncaros e está envolta em mistério, à medida que se vai à frente. Eu era incapaz de nele penetrar ou de baixar a cabeça à sua entrada” (Conf. III, 5 9).

Agostinho não encontrava paz para sua alma atormentada. Sentia a necessidade de crer; buscava a fé. O ensino de Mônica já não era senão um fraco eco. Indeciso entre a filosofia e a religião, terminou caindo na heresia.

Havia, em Cartago, certos pregadores de mentiras que iam gritando por toda parte: “a verdade, a verdade!”. Era precisamente o que Agostinho buscava.

A pregação maniqueia apresentava-se, muitas vezes, com aspecto bom e persuasivo aos olhos de Agostinho, desejoso de achar uma explicação ao mistério do universo, sem recorrer a revelações sobrenaturais, a não ser de acordo com as exigências do entendimento e da razão.

Os maniqueus faziam as promessas mais atraentes. Pretendiam saber tudo e explicar tudo: desde a criação do mundo até os mínimos detalhes de seu fim.

É obvio que uma doutrina como essa, com essas garantias, estimulou o espírito de Agostinho. Quando se propôs a ler a Bíblia não encontrou senão doutrinas misteriosas; e quando pedia explicações, diziam-lhe que tinha somente que crer.

Com bonitos discursos os maniqueus lhe prometiam explicações a todos os problemas. Falavam com ênfase de dois princípios: o do bem e o do mal, que se enfrentam numa luta sem quartel e cuja evidência descobriam em toda parte.

Agostinho entrega-se com todo entusiasmo ao maniqueismo e termina os estudos em Cartago. Em vez de ficar na grande metrópole, onde poderia brilhar entre os mais famosos, preferiu voltar a Tagaste e abrir, entre seus conterrâneos, uma escola de gramática.

Sua mãe recebeu sua chegada com alegria e também com certa inquietude e tristeza. A conduta do filho, a quem tanto amava, não deixava de preocupar-lhe. Via-se obrigada a permitir ou tolerar que vivesse com uma concubina. Ela própria havia sofrido, durante longo tempo, as infidelidades do marido. Agora não podia reprovar, em seu filho, as debilidades da carne e dos atrativos da paixão.

Não podia, contudo, suportar sua adesão ao maniqueismo. Por isto, recusa recebê-lo em sua casa. Agostinho, então, se hospeda na casa de seu amigo Romaniano.

Desde seu regresso a Tagaste dedicou seus esforços a ensinar gramática e a pregar por toda parte a doutrina maniquéia, chegando a conquistar várias pessoas de relevo social: Romaniano, seu rico benfeitor, Alípio, um jovem que deve ter sido seu amigo íntimo, Honorato, distinto cidadão.

Durante este tempo, Mônica não cessava de rezar por aquele jovem prodígio. Sua vida sempre fora piedosa e caritativa, mas a morte de seu marido fez com que se consagrasse inteiramente à oração e prática de boas obras. Por isso, não podia admitir que Agostinho se constituísse em inimigo da Igreja e arrastasse atrás de si, pelo mesmo caminho, os amigos e conhecidos.

A narração seguinte, do próprio Agostinho, nos fala de tudo quanto sofreu Mônica.

Nesse sonho, (Mônica) viu-se de pé sobre uma régua de madeira, e um jovem luminoso e alegre lhe foi sorridente ao encontro, enquanto ela estava triste e amargurada. Perguntou-lhe os motivos da tristeza e das lágrimas cotidianas, não por curiosidade, mas para instruí-la como acontece muitas vezes. E, respondendo, ela disse que chorava minha perdição. Ele a confortou, aconselhando-lhe que prestasse atenção e visse que onde ela se encontrava, ai estava também eu. Ela olhou e me viu diante de si, de pé, na mesma régua”. (Conf. III, 11, 19)

Este sonho, para Mônica, foi de grande consolo. Apressou-se a contara a Agostinho. Este, gozador como todos os jovens, respondeu a sua mãe que a visão significava que ela se converteria ao maniqueismo. Mas, a mãe respondeu-lhe, sem vacilar, que esse não podia ser o sentido do sonho. Não era ela que se aproximava dele, mas Agostinho dela. Este acontecimento deve ter impressionado vivamente o jovem.

Mônica, porém, não se contentava em só rezar pelo seu filho. Pedia conselhos por toda parte. E com esta finalidade foi visitar um bispo, especialista no estudo da Sagrada Escritura. Este bispo, muito hábil em controvérsias, sobre a Bíblia, havia conduzido muitos pecadores ao caminho da verdade. No entanto, não aceitou o convite de Mônica para falar com seu filho. Respondeu-lhe simplesmente: “Agostinho se converterá”.

Minha mãe, porém, não se rendeu a essas palavras, mas insistiu suplicando-lhe com muitas lágrimas, que me fosse ver e tivesse uma conversa comigo, até que o bispo, já um tanto aborrecido, respondeu-lhe: “Vá e viva em paz, pois é impossível que possa perecer um filho de tantas lágrimas”. (Conf. III, 12, 21)

As preces, exortações e os exemplos de sua mãe não eram estéreis no coração e alma de Agostinho. Externamente parecia o mesmo: continuava com suas aulas de gramática e atendia os novos prosélitos que ia fazendo para o maniqueismo. Mas, no fundo, sentia-se conturbado. A segurança de Mônica e o fervor de suas orações acabaram por inquietá-lo. Não sabia muito bem onde se encontrava. Um triste acontecimento produziu nele uma sacudida que seria decisiva.

Em Tagaste, tivera um amigo particularmente muito querido. Cresceram e brincaram juntos. Estudaram, desde a infância, na mesma escola e participaram dos mesmos entretenimentos.

Aconteceu que este amigo caiu gravemente enfermo. Um dia que estava inconsciente e banhado em suor, temendo um fatal desenlace, administraram-lhe o sacramento do batismo, sem que ele pedisse e nem sequer se desse conta. Agostinho começou a escarnecer daquele batismo e pensou que seu amigo faria o mesmo quando recobrasse a consciência.

De fato, quando o doente pode falar, Agostinho quis fazer uma gozação com ele, mas para sua surpresa, no mesmo instante faz uma cara terrível como se tratasse de um inimigo; e com estranha e súbita clareza fez-lhe ver que se queria ser e continuar sendo seu amigo devia deixar de falar-lhe daquele modo. Estupefacto e perturbado, Agostinho escutou a reprovação do amigo e pensou deixar aquelas gozações, ao menos durante a enfermidade. Mas aquele amigo não se curou. Teve uma recaída e, poucos dias depois, morreu. A morte deste amigo o desesperou. Eis aqui parte do relato:

O sofrimento encheu-me de trevas o coração, e eu não via senão a morte em toda parte. A pátria tornou-se para mim um tormento; a casa paterna, motivo de infelicidade, e tudo o que tivera em comum com ele, agora, em ele, transformava-se em sofrimento ilimitado. Meus olhos o procuravam por toda parte sem encontrá-lo; eu odiava o mundo inteiro me aborrecia, porque o amigo não mais existia, e ninguém podia dizer-me: ‘Ai vem ele’, como, quando em vida, se ausentava por algum tempo. Tornei-me um grande problema para mim mesmo e perguntava à minha alma por que estava tão triste e angustiado, mas não tinha resposta. Se eu lhe dizia: ‘Confia em Deus!’, ela não me obedecia, e com razão, pois a pessoa queridíssima que havia perdido era melhor e mais real que o fantasma no qual eu pedia que ela esperasse. Somente as lágrimas me eram doces e substituíam o amigo no conforto do meu espírito” (Conf. IV, 4, 9)

Dificilmente podemos imaginar o estado de ânimo que aquela morte lhe produziu. Não era a primeira vez que se encontrava com a morte. Já tinha visto seu pai expirar no nome do Senhor, pois Mônica conseguiu convertê-lo na última hora. Mas, não havia experimentado tão grande emoção como quando morreu seu amigo.

Aconteceu, no entanto, que sua estada em Tagaste ficou insuportável. Sentia a urgência de mudar de lugar. Tagaste, onde havia ensinado à gramática, trazia muitas e tristes recordações. Com a rapidez própria de seu temperamento impulsivo, concebeu uma idéia atrevida: regressar a Cartago e lá abrir uma escola de retórica. Ao final do ano 375 já estava de novo na cidade onde havia de permanecer oito anos.

 

O MANIQUEÍSMO

O maniqueismo recebeu este nome de Manês ou Mani, seu fundador, que viveu aproximadamente no ano 216. Ele pretendeu dar solução aos problemas de universo, sobretudo, conhecer e ensinar qual a origem do bem e do mal. Por isso, segundo os maniqueus, o mundo e tudo o que ele contém se acha integrada por dois princípios soberanos e co-eternos: um bom e outro mal. O corpo do homem não procede do Deus bom, mas do mal. Existe no homem uma partícula do Deus bom e uma substância má do Deus mal, a qual se identifica com a concupiscência. As virtudes são triunfos do princípio bom e os vícios, vitórias do princípio mal. Seus seguidores se dividiam em duas classes: os ‘eleitos’ ou ‘santos’, e os ‘auditores’ ou ‘ouvintes’. Não tinham comunicação alguma entre si. Os eleitos eram poucos, mas estavam encarregados de entreter os ouvintes. Agostinho não passou nunca da categoria de ‘ouvinte’, mas chegou a conhecer a fundo toda a doutrina e sua conduta. Por isso, depois de convertido, pode refutar completamente os maniqueus, como o martelo que os desfez.

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3ª.- OS ANOS DIFÍCEIS (16 - 17 anos de idade)

Terminado o estudo de gramática, Agostinho se viu obrigado a voltar para sua casa de Tagaste, onde permaneceu um ano inteiro, Em Madaura não havia professores de retórica que pudessem ensinar-lhe o caminho do porvir e da glória; estes estavam em Cartago. Mas a viagem era longa e a vida muito cara para as possibilidades financeiras de seus pais. Seu pai Patrício, por meio de grandes sacrifícios, podia assegurar a seu filho a educação nas escolas de Madaura; mas para os estudos em Cartago precisava recorrer à generosidade de algum amigo. Enquanto cuidava disso, decorreu um ano.

Entretanto, Agostinho, livre dos professores, ocioso e empurrado pelas más companhias, começou a entregar-se aos prazeres com todo o ardor de sua natureza apaixonada.

Colocado na funesta ladeira do vício, o jovem Agostinho deixou-se rolar morro abaixo. E, como seus companheiros se vangloriavam de suas próprias faltas e se orgulhavam tanto mais e quanto maiores e mais vergonhosos fossem seus pecados, Agostinho se esforçava em imitar-lhes para não ser inferior a eles. Estes desocupados e ociosos passavam as noites brincando nas ruas e praças. E, logo, cansados de jogos e diversões, se entregavam a coisas menos nobres. Agostinho nunca deixava de estar entre eles.

Uma tarde, o filho de Mônica, acompanhado dos amigos de sempre, subiu numa árvore carregada de pêras, num jardim perto do jardim de seu pai. As pêras não eram bonitas, mas estavam maduras. Agostinho podia encontrar melhores no jardim de seu pai; porém, pelos simples gosto de praticar atos de vandalismo, derrubaram ao chão todas as pêras e deixaram a marca de seus dentes em cada uma delas.

Eu, miserável, o que foi que amei em ti, furto meu, noturno delito dos meus dezesseis anos? Não eras belo, pois eras roubo! Mas, realmente és alguma coisa, para que eu possa dirigir-me a ti? As pêras que roubamos, sim, eram belas por serem criaturas tuas, ó Bom Deus, criador de toda beleza, sumo bem e meu verdadeiro bem! Sim, eram belas aquelas frutas, mas não era a elas que minha alma infeliz cobiçava; eu as possuía em abundância e melhores. Eu as colhi somente para roubar, e uma vez colhidas, atire-as fora para saciar-me apenas com a minha maldade, saboreada com alegria. Se alguma tocou meus lábios, foi o meu crime que me deu sabor”. (Conf. II, 6, 12)

Sua mãe, por todos os meios, se encarregava de conduzir seu filho pelo bom caminho.

Envergonhava-me de atender as suas solicitações, porque me pareciam conselhos de mulher. No entanto, eram teus os conselhos, eu não sabia! Eu estava convencido de que tu te calavas, e que era ela quem falava; mas, por meio dela, eras tu que me falavas; e, nela, eu te desprezava, eu teu servo, filho de tua serva”. (Conf. II, 3, 7)

Entretanto, Mônica chorava e rezava por seu filho. E o jovem continuava com suas diversões sem pensar em outras coisas!

Para compreender o verdadeiro retrato de Agostinho não podemos nos esquecer de que se trata de um jovem pagão. Certamente o exemplo e os conselhos de sua mãe supõem uma grave acusação ante a atitude do jovem. Ao mesmo tempo, porém, temos que levar em conta a influência dos maus exemplos que ele via em seus companheiros, e as dificuldades que tinha um jovem pagão de evitar as faltas.

Sua estada em Madaura, cidade onde pode viver livremente, o despertar das paixões precisamente no ano que permanecia ocioso em sua cidade natal, a companhia de amigos que não eram os melhores da cidade, tudo isso nos faz compreender com mais justiça, as faltas que o mesmo Agostinho recorda em suas Confissões.

Mônica, no entanto, não podia permanecer alheia a isto sem uma profunda preocupação. Falou-lhe seriamente e recomendou-lhe que evitasse toda fornicação. Como Agostinho admirava e venerava sua mãe, os conselhos lhe pareceriam certos. Com a sua idade e com os amigos que tinha, porém, era muito difícil levar isto em consideração.

Não podemos determinar até que ponto Agostinho caiu. Ele nos confessa as tristes recordações desse ano de “pecado” e declara que se precipitou no abismo, em grande parte, porque sentia vergonha de ser melhor que os companheiros de sua idade. Os jovens de Tagaste, certamente, não eram santos; e o filho de Patrício estava contente com a companhia deles. Sentia-se feliz com eles e passava os dias e as noites entregues, por completo, às diversões, ao jogo, ao furto e mentiras próprios daqueles jovens transviados.

Mas eu o ignorava para a minha perdição, com cegueira tal, que me envergonhava diante de meus companheiros, de parecer menos depravado que os outros, quando os ouvia exaltando as próprias infâmias, tanto mais dignas de glória quanto mais infames eram. Eu queria fazer o mesmo, não só pelo fato em si, mas pelo louvor que disso resultava.

Nada é tão digno de censura como o vício! No entanto, para não ser censurado, eu mergulhava ainda mais no vício! Quando não podia me igualar a meus companheiros corruptos, fingia ter praticado o que não praticara, para não parecer desprezível pela inocência, ou ridículo, por ser casto”. (Conf. II, 3, 7)

Ao ler este trecho, que revela as confidências de sua alma, temos a impressão de que, no meio de seus colegas, Agostinho era o melhor e o mais reservado. Podemos mesmo pensar que, muitas vezes, do fundo de sua consciência se elevava a voz do remorso que fazia descobrir a gravidade de suas faltas. Só um estúpido respeito humano o impedia sair daquele estado.

A custa de privações e economias, e com a ajuda de um amigo, os pais de Agostinho conseguiram reunir finalmente o dinheiro necessário para que pudesse realizar seus estudos na grande metrópole.

Não é necessário imaginarmos o entusiasmo do jovem provinciano ao chegar a Cartago, a esplêndida Cartago, que estava no auge de seu poder e riqueza.

Nesta cidade cosmopolita, se encontravam homens de toda religião, raça e língua. E os jovens chegaram em grande número para terminar seus estudos.

Quando Agostinho chegou em Cartago, logo se viu envolvido entre os do grupo dos “destruidores”, os que hoje chamamos “arruaceiros” ou “rebeldes”, que sobressaiam por qualquer coisa na cidade. Era impossível librar-se deles, já que eram de sua mesma idade, e seguiam os mesmos estudos. Mas não gostava da companhia deles. Seus costumes grosseiros, a ausência de delicadeza, sua tendência à desordem pública, lhe causaram um grande desagrado. O jovem Agostinho tinha suas fraquezas, mas ao mesmo tempo possuía um espírito elevado e era o suficientemente inteligente para não se deixar levar por uma vida de ociosidade.

Entretanto, se em Tagaste havia conhecido as primícias do pecado, em Cartago, seu temperamento ardente e empurrou até os mais baixos prazeres. Não pode resistir às seduções da cidade grande.

Contudo, inclusive em suas próprias faltas, Agostinho conservou sempre certa reserva. Não demorou em unir-se a certa mulher, com quem viveu maritalmente e a quem guardou fidelidade. Esta mulher logo lhe deu um filho, que chamou Adeodato (“dado por Deus”). Talvez Agostinho não o quisesse, mas como Deus lho havia dado, não pode deixar de amá-lo com todo seu coração. Sempre o conservou consigo e o educou com sumo cuidado.

Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos. Ainda não amava, e já gostava de ser amado, e, na minha profunda miséria, eu me odiava por não ser bastante miserável.

Desejando amar, procurava um objeto para esse amor, e detestava a segurança, as situações isentas de risco. Tinha dentro de mim uma fonte de alimento interior, fome de ti, ó meu Deus. Mas, não sentia essa fome, porque não me apeteciam os alimentos incorruptíveis, não por estar saciado, mas porque, quanto mais vazio, mais enfastiado eu me sentia.

Era para mim mais doce amar e ser amado, se eu pudesse gozar do corpo da pessoa amada. Assim, eu manchava e turbava a pureza delas com a espuma infernal das paixões. Não obstante eu ser feio e indigno, apresentava-me num excesso de vaidade, como pessoa elegante e refinada. Mergulhei, então, no amor em que desejava ser envolvido.

Deus meu, misericórdia minha, como foste bom em derramar tanto fel sobre meus prazeres! Fui amado e cheguei ocultamente às cadeias do prazer; mas, na alegria, eu me via amarrado por laços de sofrimento, castigado pelo ferro em brasa do ciúme, das suspeitas, dos temores, das cóleras e das contendas”. (Conf. III, 1, 1)

Sempre se considerou como “injustas” as referências a Patrício, e demasiadas ‘indulgentes” com Mônica. Destacaram-se os elogios que Agostinho fez de sua mãe e se afirma, quase sempre, que não se expressou bem sobre o seu pai. Mas de um autor se refere à dupla herança de Agostinho, na qual se havia misturado a sensualidade exagerada de seu pai e o suave misticismo materno. Segundo eles, a influência de seus pais gerou na alma de Agostinho aquele dualismo que o encadeou durante nove anos à heresia maniqueia.

Tudo isto é demasiadamente simplista. Certamente, Agostinho fala melhor de Mônica que de Patrício; porém, em mais de uma ocasião elogiou seu pai e censurou sua mãe. Narra, com legítimo orgulho, que aquele fez enormes sacrifícios para enviá-lo a Cartago, apesar de sua pobreza; esforço que outros, mais ricos, não faziam pelos seus filhos. Critica, ao contrário, a cristã Mônica por não haver tentado pôr freio à sensualidade do adolescente. Na realidade, tanto Patrício como Mônica acalentavam ambições terrenas a respeito do filho, e estavam decididos a não permitir que se opusessem obstáculos em seu caminho. Por outro lado, não era a primeira vez que Mônica relegava a um segundo plano o progresso moral de seu filho. Não havia ela, afinal, retardado seu batismo?

O que não se pode ocultar é o orgulho de Agostinho pela atitude sacrificada de sues pais nesta circunstância. Supõe Agostinho que sua mãe não queria que ele se casasse nessa época porque temia fosse prejudicada sua formação intelectual que era, no modo dela pensar, uma ajuda em sua posterior evolução espiritual.

 

O VERDADEIRO AGOSTINHO

A insistência de Agostinho em acusar-se de haver sido um “transviado” durante a adolescência e juventude costuma deixar a impressão de que foi um grande pecador. Mas a verdade é que fica difícil levar a serio as necessidades que tinha quando contava com seus quinze anos. Adolescente ocioso, freqüentava os banhos públicos e corria pelas ruas, quando chegava a noite, com companheiros pouco recomendáveis. Não era, porém, tão viciado como seus colegas, o que já é um indício de dignidade moral e aspiração pelo melhor. Um dos seus futuros adversários, o bispo donatista Vicente de Cartena, conta que Agostinho era conhecido entre os estudantes como um rapaz tranqüilo e exemplar. Juízo este muito mais verosímil que o de muitos autores que, por terem tomado, exageradamente ao pé da letra a retórica agostiniana, pintam-no com um estudante indecente e bagunceiro.

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2.- NASCIMENTO, INFÂNCIA E PRIMEIROS ESTUDOS.

(Até os 15 anos de idade)

NASCIMENTO

Agostinho nasceu o 13 de novembro do ano 354. Embora nascido de uma mãe cristã, não foi batizado imediatamente. Era comum, sobretudo na Igreja de África, o costume de se batizar em uma idade mais avançada, porque se acreditava que os pecados cometidos depois do sacramento do batismo não podiam ser perdoados tão facilmente como os cometidos antes. Costume perigoso que a Igreja local se apressou em abolir. Muitos jovens, de fato, animados às vezes por seus pais se abandonavam aos vícios, com a certeza de que, um dia, a água do Batismo lavaria todas as manchas do pecado (Cfr. Confissões I, 11, 18)

Mônica, mãe de Agostinho, se conformou com o costume de seu país e com a tradição da Igreja. De qualquer maneira, o menino foi inscrito imediatamente no número dos “catecúmenos”. Segundo o rito, foi feito o sinal da cruz sobre sua testa e se colocou sal em sua boca. Mônica o alimentou na fé e, desde cedo, o fez gostar do nome de Cristo.

OS PAIS DE AGOSTINHO

Entre os pais de Agostinho havia certa divisão: seu pai Patrício era pagão, enquanto Mônica era cristã. Existia, sobretudo, uma grande diferença de caráter: e Mônica teve necessidade de muita paciência e habilidade para conviver com seu esposo.

Meu pai era, por um lado, muito benigno e amoroso; por outro, muito iracundo e colérico. Quando ela o via irado, tinha o cuidado de não lhe contradizer nem por atos, nem por palavras. Depois, quando a ocasião lhe parecia oportuna e, passado aquele aborrecimento, o via sossegado, então lhe mostrava como tinha se irritado sem refletir” (Conf. IX 9, 19)

Finalmente, a virtude de Mônica restabeleceu a felicidade no lar e, além disso, teve o consolo de ver seu marido abraçando a verdadeira fé e progredindo no conhecimento de Deus.

Patrício pertencia ao grupo de dirigentes do município e tinha o título de “decúrio”. Não sabemos exatamente qual era sua posição econômica e social. Podemos supor, contudo, que suas propriedades eram bem modestas, já que nos constam suas grandes dificuldades em reunir o necessário para enviar Agostinho ao que podemos chamar de “universidade” de Cartago.

Certamente, você gostaria de saber algo mais sobre a família de Agostinho. De fato, houve outros filhos no lar de Patrício e Mônica. Eles tiveram pelo menos dois filhos e uma filha. Navigio, que se converteu junto com Agostinho, e uma irmã, Perpétua, que se casou, ficou viúva e tornou-se superiora do mosteiro de Hipona. A figura de Aurélio Agostinho, como o chamaram desde o princípio, se destaca, rodeado de uma intensa luz. Seus irmãos ficaram na penumbra.

A INFLUÊNCIA DE MÔNICA

Em seus primeiros anos, Agostinho demonstrava ser um menino vivo e muito inteligente. Como todas as crianças, gostava de brincar entre seus companheiros, se destacava pela facilidade de palavra e pelo encanto de sua conversa. Era, sem dúvida, o “cabeça”, da turma: característica de futuro dominador de almas...

Entretanto, sua mãe o instruía na fé. Falava-lhe de Deus e da humildade de Jesus ao se fazer homem e morrer na cruz por nós.

Estas lições ficaram vivamente impressas em seu coração e em sua fantasia de criança, sobretudo ao ver a incredulidade de seu pai Patrício ser vencida pela piedade de sua mãe. Mônica possuía o dom da persuasão: suas palavras, suas imagens, tinham uma força sedutora tão grande que, dificilmente se podia esquecer.

Em certa ocasião, caindo Agostinho gravemente enfermo, com uma violenta febre e fortes dores no estômago, a ponto de temerem por sua vida pediu, com insistência, o batismo. Este gesto parece estranho a uma criança; mas, certamente, trata-se do efeito dos ensinamentos da mãe. Mônica quis satisfazer o desejo do filho, mas logo o doente começou a melhorar e o batismo foi adiado para outra ocasião.

A influência de Mônica na formação de Agostinho foi extraordinária. Isso se deve a educação que ela mesma recebeu em sua casa paterna.

NA ESCOLA DE TAGASTE

Já curado, Agostinho voltou a suas brincadeiras e seus amigos. E, quando chegou a idade de ir à escola de Tagaste, começou a aprender os primeiros rudimentos do alfabeto e da leitura. Mais tarde recordará, com tristeza, esses primeiros anos: os bancos da escola, onde devia permanecer sentado horas e horas, sempre sob a ameaça da varinha de um severo professor; o repetir monótono da cantilena: “um e um, dois; dois e dois, quatro...”.

Agostinho detestava a escola e o que nela se ensinava. Os castigos se repetiam todos os dias, sem que se passasse um só dia em que não recebesse golpes da régua do professor. Em sua casa, queixava-se aos pais, mas eles escarneciam dele. Inclusive sua boa mãe ria dele. E o pobre menino não sabia a quem recorrer. Lembrava-se, então, de ter ouvido falar de Deus, daquele Deus infinitamente bom e grande, que protege os pequenos e oprimidos. E com toda a simplicidade de seu coração rezava: “Ó, meu Deus! Não deixe que eu seja castigado hoje na escola”.

Por outro lado, tinha uma paixão tão grande pelo jogo, que isto lhe induzia a enganar seus professores e pais, cometendo inclusive outros atos pouco recomendáveis: “Cometia também furtos na despensa e na mesa de meus pais, ora dominado pela gula, ora para ter com que pagar aos companheiros que vendiam seus jogos, mas que se divertiam tanto quanto eu. E, até no jogo, cometia fraudes, dominado pelo meu afã de sobressair” (Conf. I, 19, 30).

NA ESCOLA DE MADAURA

Assim, Agostinho foi enviado para estudar gramática na vizinha cidade de Madaura. Talvez fosse a primeira vez que o menino Agostinho saia de sua cidade Tagaste.

Madaura apresentava o aspecto aristocrático de uma grande cidade: rica em monumentos, sede importante de estudos e cultura... Por toda parte se via arcos de triunfo, templos, termas, pórticos, estatuas.

Agostinho vivia num mundo maravilhoso, onde tantas lendas e tantas obras de arte excitavam sua natural tendência à admiração da beleza. A vida em Madaura não era feita para um jovem católico que quisesse perseverar na sua fé. Lá, o cristianismo era considerado como uma religião de povos bárbaros. A maior parte da população era considerada pagã, como também seus costumes e festas.

Neste ambiente, fora de casa, o filho de Mônica ia esquecendo os ensinamentos de sua mãe e, ao mesmo tempo, se distanciava pouco a pouco do cristianismo.

O estudo dos diferentes autores se efetuava de acordo com certos métodos tradicionais: era lida uma passagem em voz alta que, depois, era recitada de memória. Dava-se a máxima importância à dicção e pontuação. A pontuação, às vezes, não era exata; então era preciso a ajuda do professor. Como os livros eram copiados a mão, é fácil compreender porque havia muitas variações. O professor escolhia aquela que fosse do seu agrado. Desde cedo, brilhou Agostinho entre seus colegas. E seus mestres descobriram nele um menino de futuro, para não dizer um menino “prodígio”. Um dia, teve que declamar um discurso que ele mesmo havia composto.

O discurso tratava da dor e da cólera de Juno que não podia impedir que os Troianos chegassem a Itália. Era um tema clássico. O jovem orador declamou de maneira tão real e emocionante, que seus companheiros não puderam deixar de aplaudir. Patrício e Mônica podiam se sentir orgulhosos de seu filho (Pelo menos de suas qualidades intelectuais).

 

VALOR HISTÓRICO DAS CONFISSÕES

As Confissões de Santo Agostinho não são uma obra autobiográfica, rigorosamente falando, mesmo quando fala a seu favor ou contra si mesmo. Santo Agostinho era de temperamento sincero e amigo da verdade. Quando escreve suas Confissões já se acha nos cumes da santidade. Se, às vezes, se encontram nelas frases de extremo rebaixamento, declarando-se “o mais pecador dos homens”, “um abismo de corrupção” ou “um monstro de iniqüidades”, estas frases não têm, nele, mais sentido que o que tem na boca dos santos; não implicam senão um aspeto parcial e relativo da realidade objetiva. Nas Confissões, temos que distinguir também o “fato” do “comentário”. Santo Agostinho expõe normalmente o fato de modo lacônico e rigoroso e, sobre ele, se estende, em seguida, em amplos e sutis comentários. Veja, por exemplo, o fato do roubo das peras, narrado no capítulo 4 do livro II, ao qual segue um comentário de vários capítulos. Assim começa o livro II:

Quero, agora, recordar as minhas torpeças passadas, as corrupções de minha alma, não porque as ame, ao contrário, para te amar, ó meu Deus. É por amor do teu amor que retorno ao passado, percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros. A recordação é amarga, mas espero sentir a tua doçura, que não engana, doçura feliz e segura; e quero recompor a minha unidade, depois dos dilaceramentos que sofri, quando me perdi em bagatelas, ao afastar-me de tua unidade”.

20 lições para conhecer a Santo Agostinho

 

1ª.- A SUA PÁTRIA

PRÉ-HISTÓRIA AFRICANA

Antigamente, a Europa estava unida à África. De Gibraltar -sul da Espanha- se podia ir a pé até Tanger - Norte da África. A costa de uma e outra, assim como a flora e a fauna, não tinham grande diferença.

Tempos depois, no decorrer dos séculos, o mar abriu um caminho através de Gibraltar e, com a mudança que isso supõe, modificou-se o aspecto das terras, deixando de ser frescas e úmidas. O sol foi torrando-as a apareceu o atual deserto do Saara. O litoral continuou sendo fértil. Durante séculos, habitou nestas regiões um povo que, em sua maior parte, tinha olhos azuis, pele e cabelos escuros.

Historicamente não podemos precisar com exatidão quando isso aconteceu, nem quando este povo se assentou nas costas africanas. É muito provável que viessem da Europa pelo Estreito de Gibraltar. Talvez cruzassem pelas ilhas do Oeste da Itália... De qualquer maneira, eles se assentaram de modo permanente no Norte da África. Conservaram suas tradições e sua própria língua, e suportaram a dominação de sucessivas culturas. Este povo tinha o nome de “Berberes”.

Herdaram o nome de Berberes dos Romanos, que deram a algumas tribos um nome genérico, mais ou menos equivalente a “bárbaros”, embora já os conhecessem com o nome de “Afri” -os africanos- e sua terra se chamava África.

É possível que todos estes povos pertencessem ao mesmo grupo racial. No decorrer dos anos experimentaram profundas mudanças e se misturaram com seus sucessivos conquistadores e povos que chegaram até seu litoral.

Juntamente com os Berberes, existiam os Númidas -no princípio simples nômades- e os Mouros, que eram de rosto mais vermelho e escuro. Em todos eles se poderiam descobrir as marcas características dos Fenícios, Gregos, Romanos, Judeus e outros povos com os quais mantiveram contato. No entanto, apesar de todos os povos conquistadores eles conservaram substancialmente o mesmo caráter até nossos dias.

Não há estudos profundos da língua desse povo, embora se continue falando em muitas partes a dos Berberes de nossos dias. Os filólogos parecem concordar que essa língua pertence à mesma família da língua falada pelos antigos Egípcios.

PÁTRIA DE SANTO AGOSTINHO

Santo Agostinho pertencia a este povo, ou seja, era de raça Berbere. Como estrela refulgente, se levantará no norte da África e contribuirá para engrandecer a Igreja nessa região geográfica, onde o cristianismo era já florescente.

Em seu tempo, a influência dos romanos se fazia sentir mais viva, tanto na língua como no aspecto cultural e religioso.

Se, em todos os povos do norte da África, se pode afirmar que existe uma estreita relação com o meio-ambiente e o tempo dos romanos, temos que confessar que isso é muito mais exato aplicado ao caso concreto de Agostinho. Por isso, o consideramos cidadão romano.

Santo Agostinho viveu quase toda a sua vida na África; somente esteve cinco anos na Itália (Roma e Milão); Tagaste e Hipona são os dois lugares chaves na existência do grande Doutor da Igreja Universal. A partir da cidade de Hipona, ele se interessa por todas as questões de seu tempo; mantêm relações com o Oriente e Ocidente. Recebe mensageiros da Espanha e Palestina; nunca, porém, sentiu a necessidades de sair de sua pátria, nem para visitar os amigos.

ÁFRICA ROMANA

Nos finais do século IV depois de Cristo, o Norte da África estava completamente submetida à dominação romana. De fato, no ano 146 a.C., os romanos, vencedores em Cartago, organizaram lá a mais antiga de suas províncias de ultramar; depois estenderam mais e mais seus domínios.

Com muita freqüência, estes povos se expressam em grego, que era o melhor meio de ser compreendido em todo o mundo, algo assim como o que acontece com o inglês hoje em dia. Em todas as cidades de alguma importância, e, sobretudo em Cartago, o elemento grego tem uma grande influência.

No entanto, não é o grego, mas o latim, a língua da civilização e da literatura da África romana. Aqueles que acreditavam ter uma boa educação se expressavam em latim.

O norte da África era considerado como um dos principais celeiros de Roma. Por isso, foram para lá comerciantes, industriais, importadores e grandes famílias da nobreza romana. Devido a isto, o norte da África vai se latinizando pouco a pouco; debilita-se o elemento nativo e cresce o poder dos conquistadores, ou seja, o progresso da conquista é paralelo ao avanço da romanização.

Quando o cristianismo chega a África, lança suas raízes principalmente entre os latinos, inclusive com maior força que na própria Roma. Tradicionalmente, a Igreja da África é uma Igreja Latina.

ÁFRICA CRISTÃ

Não se sabe com segurança quando o Evangelho chegou pela primeira vez ao Norte da África, pois não existem documentos a respeito disso.

É provável que Cartago e as principais cidades da costa, tivessem escutado logo a mensagem de Cristo, pois já no ano 180, aparecem documentos que nos mostram a Igreja africana com um longo passado e numerosíssimo grupo de fieis:

“No século III, Cipriano era bispo de Cartago (248). Proclamou a colegialidade para lutar contra as cismas ou enfrentar-se passageiramente com Roma (cuja dignidade ele reconhecia) a propósito dos sacramentos. Morreu mártir em 258. O século IV será marcado pela figura do bispo de Hipona, Santo Agostinho. Nascido em Tagaste e batizado em Milão em 387, foi ordenado sacerdote e bispo em 394. Sua atividade de pastor e pregador será determinante para a vida das Igrejas da África do Norte, que infelizmente desapareceram depois dele” (Imagens da Fe, nº 160, p. 4)

Esta Igreja tem uma característica própria: é urbana e latina, ou seja, desenvolve-se, sobretudo nas grandes cidades, pois o elemento nativo não a deixa chegar facilmente até o campo. É latina, enquanto lança suas raízes especialmente entre gente que fala latim, mais que a língua grega. Este fenômeno se explica porque toda a sua força era trazida de Roma, onde o latim era a língua principal.

Durante os séculos III e IV a Igreja africana era muito forte e o episcopado muito bem organizado. O número dos bispos era realmente numeroso; por exemplo: no ano 220, se reúnem 90 bispos africanos para julgar um colega seu. No ano 256, com São Cipriano à frente, se reúnem 87 bispos para examinar o problema do batismo administrado pelos hereges.

No ano 335 se reúnem, em Cartago, 270 bispos donatistas e, em 394, se reúnem outros 310 na Numidia. No ano 411, numa grande conferência, se reúnem 286 bispos católicos e 297 donatistas (mais adiante veremos algo sobre eles).

Aparentemente, as cifras anteriores não têm muito interesse, mas demonstram que a Igreja africana era muito vigorosa e influente nos tempos de Santo Agostinho.

No entanto, nem tudo era cor-de-rosa; trabalhar com as massas populares nunca foi fácil, muito menos na África. Em muitas partes, elas se deixaram vencer pela cultura e o Evangelho. No norte da África, ao contrário, essas massas permaneceram rebeldes a tudo que tinha relação com a cultura romana, inclusive com o Evangelho. Se alguma vez se dobravam, era à força e aparentemente. Quando tinham oportunidade, se rebelavam e voltavam aos antigos ídolos.

Havia, certamente, muitas igrejas e uma multidão de fieis, mas também um cristianismo muito superficial. Dificilmente aceitavam a Cristo e, facilmente, o abandonavam.

A ÁFRICA NOS TEMPOS DE AGOSTINHO.

Este caráter do cristianismo africano se manifestou cedo, inclusive com cismas e heresias, como no caso dos “donatistas”, assim chamados devido a seu fundador, o bispo Donato. Como aconteceram estas coisas?

Quando morreu Mensúrio, bispo de Cartago, escolheram como sucessor o bispo Ceciliano. Mas alguns opositores não quiseram reconhecê-lo, dentre eles Donato, que era um dos bispos de Numídia. Num concílio que se realizou em Cartago -ano 312- depuseram Ceciliano. Para ocupar seu lugar escolheram a Majorino, ao qual sucedeu o próprio Donato, que organizou muito bem a oposição e deu nome à seita dos donatistas. Ensinavam, entre outras coisas, que os sacramentos administrados por sacerdotes indignos eram inválidos.

O donatismo tem muita importância na história agostiniana porque Santo Agostinho, sendo já bispo, lutou contra eles. Santo Agostinho afirmava, por exemplo, que Cristo é o autor dos sacramentos e os sacerdotes e bispos são simples ministros ou canais pelos quais a graça se comunica aos homens. Esta tem sido sempre a doutrina verdadeira da Igreja.

É nesta situação, ou seja, quando a Igreja da África se encontrava dividida, que vem ao mundo Agostinho, na pequena cidade de Tagaste, atual Souk-Ahras, na Numídia.

Leitura

AS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO

Quando se fala de Santo Agostinho, sempre se associa sua vida com o seu famoso livro autobiográfico: as “Confissões”.

Este gênero literário é famoso. Existem confissões filosóficas e confissões piedosas, como também existe uma infinidade de confissões para atrair um público ávido de sensacionalismo. Em qualquer livraria ou banca de revistas, o leitor atual, membro da sociedade de consumo, também encontra este falso alimento para aumentar a onda de erotismo que se estende pelo mundo. E compra este subgênero literário para matar o tempo.

As “Confissões” de Santo Agostinho não se parecem com este gênero de literatura fácil que se lê e joga no lixo. Não creia que você vai encontrar relatos impressionantes, cenas escabrosas, como as que se lê em alguma novela, ou algo semelhante ao estilo de uma fotonovela.

Para Agostinho, a palavra “Confissões”, mais que confessar pecados, significa “adorar a Deus”. É um verdadeiro hino de louvor de um coração arrependido. Eis suas próprias palavras: ‘Recebe, Senhor, o sacrifício destas confissões, por médio desta língua que me destes e que excitas, para que louve o teu nome... Louve-te minha alma, para que possa chegar a amar-te; que te confesse todas as tuas misericórdias e por elas te louve. Não cessa em teu louvor, nem cala teus louvores, a criação inteira; nem as cala o espírito, que fala pela boca de quem se converte a Ti...’ (Conf. V, 1, 1).

Apesar de narrar seus extravios, seus erros e seus pecados, a intenção é mostrar sua pequenez comparada com a grandeza e a misericórdia de Deus. É mais uma oração dirigida a Deus que um discurso aos homens. Continuamos com suas próprias palavras: ‘Permita-me, no entanto, falar ante tua misericórdia, a mim, que sou pó e cinza; deixa-me falar, pois falo à tua misericórdia e não a um homem escarnecedor que pode rir-se de mim. Talvez apareça risível ante teus olhos, mas Tu te voltarás a mim cheio de misericórdia’ (Conf. I, 6, 7)